O funcionamento do sistema jurisdicional contemporâneo não se limita ao Poder Estatal; abrange os Mecanismos Alternativos de Solução de Conflitos (MASCs) ou Multi-door Courthouse. Ao contrário do Poder Judiciário, esses sistemas permitem uma maior adaptação do método a partir do conflito de interesses a ser resolvido. Nesse sentido, transita-se do direito de acesso aos tribunais para o "direito do acesso ao direito"1 com o propósito da aplicação da "justiça coexistencial focada na pacificação e na continuidade das relações sociais"2.
Esses mecanismos adequados de composição conflitual dividem-se em autocompositivos (como a negociação, mediação e conciliação) e heterocompositivos, sendo a arbitragem e o Poder Judiciário parte deste último. A alternatividade desses meios relaciona-se à abordagem que prioriza os interesses para a obtenção consensual da resolução dos litígios, onde a intervenção das partes na construção da solução ou na escolha do procedimento é o principal diferencial quando comparado ao sistema tradicional de justiça.
Dentre os métodos mencionados, a arbitragem destaca-se como um instrumento mais célere, informal, técnico, confidencial e definitivo, uma vez que a sentença arbitral é irrecorrível. O Poder Judiciário deixa de ser exclusivo e passa a ser um dos instrumentos disponíveis para a solução do conflito, alterando o monopólio único do acesso à justiça dos tribunais para a lente do acesso aos direitos pela via adequada de composição.
Atenção, não se trata de substituir o sistema tradicional de Justiça, mas sim complementá-lo com outras formas que se apresentem mais apropriadas para certos tipos de litígios que exigem uma decisão mais técnica, rápida e confidencial.
Os ADRs são parte integrante do nosso sistema de justiça, sendo inconcebível pensá-lo sem incluí-los, pois, "é fundamental essa rede jurisdicional de auxílio, apoio e interação, dentro de um sistema multiportas projetados para obter o máximo de efetividade em cada situação, utilizando, para tanto, a ferramenta mais adequada"3.
A interlocução do Poder Judiciário na arbitragem
Os MASCs são importantes para o nosso sistema jurídico, sendo crucial o suporte, assistência e interação com o Poder Judiciário. O STJ exerce um papel relevante no apoio à arbitragem, manifestando-se em seus acórdãos que "a convenção de arbitragem prevista contratualmente afasta a jurisdição estatal, impondo ao árbitro o poder-dever de decidir as questões decorrentes do contrato"4, além disso, "negar a aplicação à convenção de arbitragem significa, em última análise, violar o princípio da autonomia da vontade das partes e a presunção de idoneidade da própria arbitragem, gerando insegurança jurídica"5.
Essa interação visa promover o acesso substancial à justiça, evidenciado em 2015 pelo legislador no CPC (lei 13.105/15), que promoveu os meios alternativos de resolução de litígios e reconheceu a importância da cooperação entre o Poder Judiciário e a arbitragem6.
Destaca-se o relevante papel do CNJ, que regulamentou a cooperação judiciária nacional através da Regulamentação 350/20, abrangendo tanto dentro quanto fora do âmbito do Poder Judiciário. Posteriormente, esse ato normativo foi alterado, sendo a última modificação realizada pela Resolução 499/23. Sublinha-se o artigo 16, que trata da cooperação interinstitucional, estabelecida entre diversas instituições, tanto do sistema de justiça quanto externas a ele, com o propósito de promover o aprimoramento da administração da justiça, a celeridade e a efetividade da prestação jurisdicional, incluindo, entre outras, os tribunais arbitrais e árbitros7.
A lei de Arbitragem (lei 9.307/96) estabelece as formas de interlocução entre o Poder Judiciário e a arbitragem, definindo os momentos de assistência que se dividem em antes de instituída a arbitragem, durante o procedimento arbitral e após a conclusão da arbitragem. Os artigos 6º e 7º da lei abordam a solução para os casos de uma cláusula compromissória vazia8 e a recusa de uma das partes em firmar o compromisso arbitral. A parte interessada, através da ação judicial de execução da cláusula compromissória, artigo 7º, requer ao Judiciário a citação da parte resistente para então, em comum acordo, elaborarem o compromisso arbitral, não havendo consenso caberá ao juiz esse encargo.
O artigo 7º, § 4º, os artigos 13º, § 2º e 16º, § 2º versam sobre a atuação do Judiciário para nomeação do árbitro em diferentes contextos. No artigo 7º, § 4º, a nomeação poderá ocorrer quando a cláusula compromissória nada dispuser, após ouvida as partes. No artigo 13º, § 2º, quando a designação de árbitros se der em número par9 e não houver consenso entre as partes ou os árbitros já nomeados, para a nomeação de mais um. O artigo 16º, § 2º, indica aqueles casos em que não há disposição na convenção de arbitragem e ausente o consenso entre as partes para a nomeação do árbitro a ser substituído.
O artigo 22-A disciplina a concessão de medida cautelar ou de urgência antes de instituir a arbitragem. Destaca-se que algumas instituições arbitrais possuem o árbitro de emergência para apreciação de tutelas de urgência, afastando a atuação do Poder Judiciário nesses casos, "no sentido de que a tutela de urgência proferida pelo árbitro de emergência possui a mesma natureza de urgência proferida pelo árbitro durante o processo arbitral"10.
Após a instituição da arbitragem, o artigo 20º trata da arguição de incompetência, suspeição ou impedimento do árbitro, bem como da nulidade, invalidade ou ineficácia da convenção. No § 1º, a lei aponta que haverá a substituição do árbitro(os) no caso de acolhimento da arguição de suspeição ou impedimento. Ainda, o mesmo parágrafo, estabelece a atuação do Judiciário como julgador da causa quando da incompetência do árbitro ou tribunal, da ocorrência da nulidade, invalidade ou ineficácia da convenção.
Durante a fase instrutória do procedimento arbitral, o artigo 22º, § 2º, versa sobre o depoimento pessoal e a ausência da testemunha devidamente intimada. Apesar de os árbitros serem ser equiparado a juiz de fato e de direito, artigo 18º, ele não possui poder jurisdicional para praticar certos atos inerentes à jurisdição, como medidas coercitivas contra as partes ou terceiros, e atos constritivos e executórios. A cooperação entre árbitro e juiz, prevista no artigo 22-C11, permite ao árbitro requerer à autoridade judiciária a determinação de ações específicas, como a condução coercitiva da testemunha renitente.
A jurisdição arbitral se encerra após o proferimento da “sentença arbitral que em tudo se equipara à sentença prolatada por órgão jurisdicional”12, a qual sendo condenatória constitui título executivo13. Portanto, a arbitragem é desenvolvida em instância única e a decisão promulgada será definitiva14, cabendo exclusivamente a impugnação pela ação de nulidade.
O exercício desse controle de validade poderá ser pleiteado no Judiciário por duas vias previstas no artigo 33º: i) ação de nulidade §§ 1º e 2º e ii) impugnação ao cumprimento da sentença arbitral. A ação de nulidade é um meio para "desconstituir os efeitos da decisão arbitral por inobservância ou infração de matérias de ordem pública que o sistema legal impõe como indispensáveis à manutenção da ordem jurídica"15. São oito os fundamentos da ação anulatória que dizem respeito ao error in procedendo enumerados taxativamente no artigo 32º da lei de Arbitragem.
A verificação da existência de vícios formais e procedimentais pelos tribunais estaduais no processo de impugnação não pode atingir o mérito do litígio, "o inconformismo do vencido, com a solução jurídica dada ao conflito pelo árbitro, não é causa de invalidação da sentença arbitral"16.
Devido às características intrínsecas da arbitragem, concebida de acordo com a vontade das partes e resultando em uma decisão rápida e técnica, espera-se o cumprimento espontâneo da sentença arbitral condenatória. No entanto, alguns insatisfeitos recusam-se a acatar tal sentença, tornando essencial o respaldo do Poder Judiciário para impor ou exigir seu cumprimento, conforme estipulado pelo artigo 31º17.
Ressalta-se novamente que o árbitro carece de poderes coercitivos ou executórios, uma vez que essa jurisdição é reservada ao Judiciário. Nesse sentido, a imposição de obrigações de pagar, dar, fazer e não fazer é efetivada por meio da sentença condenatória. Esse título executivo judicial possibilita o acesso ao Poder Judiciário diante da resistência do vencido em cumprir as determinações do juízo arbitral.
O artigo 33, §4º, oferece um meio de corrigir vícios decorrentes de uma sentença arbitral citra petita. Nesse contexto, a parte interessada recorre ao Judiciário para solicitar que se prolata uma sentença arbitral complementar. Por fim, a lei de Arbitragem trata da colaboração do Judiciário no reconhecimento e execução de sentença arbitral estrangeira no Brasil. A homologação é essencial para conferir eficácia à sentença arbitral estrangeira em território nacional, a parte interessada deve apresentar uma petição inicial ao STJ, conforme estabelecido pelo artigo 35º18.
A função do Poder Judiciário evoluiu de um papel exclusivo para se tornar um dos meios disponíveis na resolução de conflitos. Além disso, dentro dessa rede de solução de controvérsias o Judiciário exerce um importante papel de auxílio, apoio e interação com o sistema arbitral para assegurar a efetividade do procedimento e a implementação das decisões arbitrais.
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1 E SILVA, Paula Costa. A nova face da justiça, 2009, pg.11.
2 FREEDIE, Didier. Justiça Multiportas: mediação, conciliação, arbitragem e outros meios de solução adequada para conflitos, 2016, V.9, pg.37.
3 PINHO, Humberto Dalla Bernardina, MAZZOLA, Marcelo. A cooperação como elemento estruturante da interface entre o Poder Judiciário e o juízo arbitral. Revista Eletrônica de Direito Processual – REDP, Rio de Janeiro, 2017, pag. 201. Disponível em: www.redp.uerj.br.
4 Princípio Kompetenz-kompetenz, STJ, REsp n.º 1.656.643/RJ, Rel. Min. Nancy Andrighi, julgado em 09.04.2019, DJe 12.04.2019.
5 REsp n.º 1.550.260/RS, Rel. Min. Paulo de Tarso Sanseverino, Rel. Acd. Min. Ricardo Villas Bo^as Cueva, por maioria, julgado em 12/12/2017, DJe 20.03.2018.
6 Indicamos como exemplo os artigos: 3º § 1º, o artigo 237, inc. IV, o artigo 337, inc. X e artigo 485, inc. VII do CPC.
7 BRASIL, Conselho Nacional da Justiça. Disponível em: https://atos.cnj.jus.br/files/compilado161236202305296474cef400a11.pdf.
8 Insta indicar que mesmo diante de uma cláusula compromissória vazia “já há pelas partes a renúncia à jurisdição estatal quanto à matéria objeto do contrato, e esta iniciativa vincula os contratantes”. CAHALI, Francisco José. Curso de arbitragem: mediação: Tribunal multiportas, 7. ed. São Paulo: Thomas Reuters, 2018, pg. 173.
9 De acordo com o artigo 13, §1º a nomeação dos árbitros pelas partes sempre será em número ímpar, normalmente os painéis arbitrais ou tribunais arbitrais são compostos por um ou três árbitros. BRASIL, Lei nº 9.307, de 23 de setembro de 1996. Dispõe sobre a arbitragem. 1996. Disponível em: https://legis.senado.leg.br/norma/551183.
10 CARRETEIRO, Mateus Aimoré. Tutelas de urgência e processo arbitral, São Paulo, 2017, pg.104.
11 O CPC no artigo 237, inciso IV, traz a carta arbitral como um dos meios de comunicação dos atos processuais e o artigo 260, § 3º estabelece os seus requisitos. BRASIL. Lei n° 13.105, de 16 de março de 2015. Código de Processo Civil. Diário Oficial da União - Seção 1 - 17/3/2015, Página 1. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/1937-1946/del1608.htm.
12 FERREIRA, Olavo Augusto Vianna; ROCHA, Matheus Lins; FERREIRA, Débora Cristina Fernandes Ananias Alves. Lei Arbitragem comentada, 2021, pg. 326.
13 Artigo 31 da Lei de Arbitragem. BRASIL, Lei nº 9.307, de 23 de setembro de 1996. Dispõe sobre a arbitragem. 1996. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9307.htm.
14 Não obstante, o afastamento recursal previsto na LArb não impede que, excepcionalmente, as partes estabeleçam recursos internos, ou seja, o reexame ocorrerá dentro da estrutura interna arbitral por outro tribunal arbitral ou árbitros (com novos membros escolhidos pelos contendores). Ainda, há a possibilidade de se valer do recurso semelhante aos embargos infringentes quando estiver diante de uma decisão não unânime, mas sempre internamente jamais externo. CARMONA, Carlos Alberto. Arbitragem e processo: um comentário à Lei n.9.307/96. 3 ed.,2009, pp. 24-25.
15 CARMONA, Carlos Alberto. Arbitragem e processo: um comentário à Lei n.9.307/96. 3. ed., 2009, pp. 409-412
16 CAHALI, Francisco José. Curso de arbitragem: mediação: Tribunal multiportas, 7. ed. São Paulo: Thomas Reuters, 2018, pg. 405
17 Combinado com o artigo 515, VII, do Código de Processo Civil.
18 Aplica-se a` homologação para reconhecimento ou execução de sentença arbitral estrangeira, no que couber, o disposto nos arts. 483 e 484 do Co'digo de Processo Civil, inteligência do artigo 36 da Lei de Arbitragem.