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O dia da infâmia, o golpismo estrutural e as mídias

É essencial à Civilização fazer com que o lamaçal chafurdado pelos extremistas se transforme num terreno minimamente sadio, com regras e responsabilizações. Aliás, como todo e qualquer ambiente que acolhe as relações humanossociais.

9/1/2024

Em artigo publicado no afamado The Washington Post exatamente um ano após o espetáculo golpista antidemocrático do dia 8/1/23, Dia da Infâmia, o Presidente Lula escreveu (em livre tradução):

A erosão da democracia é exacerbada pelo fato de as fontes de notícias e as interações sociais serem mediadas por redes digitais que foram concebidas para o lucro e não para a coexistência democrática. O modelo de negócio das Big Tech, que dá prioridade ao engajamento e à procura de atenção, promove conteúdos inflamados e fortalece o discurso extremista, favorecendo forças antidemocráticas que operam em redes mudialmente coordenadas.

O golpismo no Brasil, sabe-se bem, é de índole estrutural e tradicionalmente se lastreia em dois pilares: as corporações estatais detentoras do uso da força (em suas pulsões intervencionistas em busca de poder) e a selvajaria da mídia (representante, ou “presentante”, do mercado, no eterno afã da primazia do econômico sobre o social). São pilares que nem sempre se conformam com as exigências do Estado Democrático de Direito.

Pairando em todo período republicano, essa estrutura golpista ditatorial – que, de regra, traz ideias e propósitos fascistas –, ciclicamente, a depender do contexto, consegue emergir, prevalecer e subjugar o regime democrático. Por isso, a justiça transicional não pode ser relegada, notadamente seu eixo voltado à reforma das instituições de segurança.

A superação do golpismo estrutural pressupõe, é óbvio, que haja reformas igualmente estruturais, acompanhadas de regulação da mídia – em especial, das redes sociais pós-modernas –, cuja irresponsabilidade abala não somente a salubridade das relações sociais, mas contamina a higidez política de nações inteiras e, até mais que isso, compromete todo o desforço civilizatório do pós-guerra.

O 8 de janeiro de 2023, claro, vinha sendo gestado há tempos, dentro dessa ideia de ciclo antidemocrático, de golpismo estrutural, tudo a partir da instrumentalização das ferramentas de comunicação em massa.

Os insurretos, escancarando seus aliados, montaram “fronts” sob o abrigo hospitaleiro dos quintais de quarteis. Ficaram sob o cevo e proteção dos brasões da mesma instituição que, ironicamente, deveria prestar obediência e zelo a seus alvos, os três poderes constituídos da República.

Para ambientar o golpe, o terreno vinha sendo adubado, inclusive o jurídico. O intervencionismo militar há tempos convocara seus juristas de estimação. E não somente para rascunhar um arremedo de AI-5, com intervenção nas cortes superiores (em especial, o TSE). Meses antes, lançara-se uma abilolada tese de ressurreição do Poder Moderador (extinto desde a primeira constituição republicana), desta feita sendo cometido às forças armadas, numa torpe “reinterpretação” do artigo 142 da vigente Constituição.

Em paralelo às conhecidas distorções estruturais das corporações da força estatal, inclusive as policiais, nunca seus agentes se envolveram tanto e tão diretamente na seara política, inclusive ocupando cargos eletivos locais e nacionais.

No particular da esfera corporativa jurídica, o recente e midiático fenômeno do lavajatismo, mediante práticas de lawfare, mal disfarçou o arrivismo político de alguns de seus próceres, conforme revelado nas mensagens expostas pela desinfectante serendipidade da “Vaza-Jato”. Seus desvios e abusos foram capazes de soçobrar as bases econômicas do País, implodir valores nacionais, induzir descrédito internacional, gerar desemprego e outras carências sociais.

A “patrioticamente” sonhada intervenção militar escancarada (com “um civil no poder”) – ensaiada desde o quadriênio 19-22 –, apenas não se concretizou por detalhes, erros pontuais dos golpistas, sob o olhar quase passivo das forças democráticas e de sua militância analógica, anestesiada e anacrônica.

Além do fortalecimento das instituições de força e repressão (e das incursões politiqueiras que assanharam alguns fardados/togados), o concerto golpista ainda cuidou de cooptar e fomentar outros setores dotados de poderio bélico. Foi armada a população civil simpática à “intervenção” militar (proprietários rurais, caminhoneiros etc); estimulados e vitaminados os clubes de tiro e os colecionadores de armas. Sem contar os canais e compadrios mantidos com as milícias em todo território nacional.

Mesmo depois de superado o ápice da urdidura golpista, o que se vê são estruturas corporativas que continuam rigorosamente as mesmas, assim como o vale-tudo da comunicação em redes sociais.

E o desafio reformista, cabe reconhecer, hoje é ainda maior do que outrora.

Além do atual ambiente parlamentar refratário, exasperado o perfil conservador do congresso nacional, os tempos são de “calcificação da polarização política” (para usar a expressão de Felipe Nunes e Thomas Traumann), em que os neofascistas, mitômanos, goebbelianos e outros antidemocratas dominam as redes sociais e rivalizam em tamanho com a soma de todas as forças do campo democrático, só que com muito mais agilidade, unidade e poder de mobilização.

Muito ao contrário do que sinalizam o empresariado, o mercado e a grande mídia, no eterno afã de emplacar seu representante predileto (um liberal dito “civilizado”; por fim, a tal “terceira via”), não há sequer, de fato, uma polarização entre a extrema-direita e a extrema-esquerda. A contraposição abissal hoje existente se dá entre a barbárie e a civilização; entre o neofascismo e a democracia.

A cristalização do abismo político é consequência do método comunicativo dominado pela ultradireita mundial, especialmente nas redes sociais, cujo modus operandi, sempre, consiste em semear o medo, emoldurar o “inimigo”, fomentar o ódio e direcionar a reação (abate ao inimigo). O golpismo antidemocrático utiliza-se dos chamados “gabinete do ódio” (GDO), que atua em rede, com difusas fontes replicadoras de seus “posts”, “cards”, teorias conspiratórias, mentiras e ficções muito mais sedutoras que a realidade maçante (fake news). Usa mensagens semioticamente poderosas.  Um GDO age sem qualquer compromisso com a verdade, com a ciência e com o bem-estar da população. Cresce com a incultura e a alimenta. Mimetiza o povão em seus piores instintos, com descuidos gramaticais deliberados, adágios preconceituosos e falsos moralismos. Seu amadorismo é só aparente: conta com planejamento, investimento e um complexo profissional qualificado, concreto e real como um iceberg, ainda que sua maior porção se mantenha submersa. E atua sem amarras ou fronteiras. Os artífices dessa nova comunicação personificam, assim como seus seguidores, a “valentia dos covardes”: escondem-se em seus teclados e se escoram em suas hostes para destruir os “inimigos” e respectivas reputações.

Nesse contexto de faroeste midiático, se, de um lado, é relevante que se tenha clareza quanto às medidas necessárias a alterar o quadro do golpismo estrutural, de outro, mais importante ainda é encontrar os meios para implementá-las.

Daí que é fundamental, prioritário, básico a qualquer reforma estruturante do País, que se busque, com toda energia política possível, a regulação das mídias sociais, conforme sinaliza o texto do Presidente Lula citado acima.

É essencial à Civilização fazer com que o lamaçal chafurdado pelos extremistas ultraliberais se transforme num terreno minimamente sadio, com regras e responsabilizações. Aliás, como todo e qualquer ambiente que acolhe as relações humanossociais.

As forças democráticas devem se ocupar intensa e prioritariamente da regulação das big techs e suas redes!

Uma vez reguladas essas mídias, sua utilização responsável, a sua agilidade e o seu alcance embalam grande potencial para abreviar o retorno ao patamar civilizado e sadio do debate político, arrefecendo o abismo do ódio. E isso, claro, tende a ressoar em nossas representações e produções parlamentares. Assim, além de manter o monstro neofascista trancafiado em sua jaula, será possível, enfim, como bônus, dar cabo ao golpismo estrutural entranhado nas corporações da República.

Paulo Calmon Nogueira da Gama
Mestre em Teoria do Estado e Direito Constitucional pela PUC-Rio

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