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A reforma do Código Civil

A elaboração do Código Civil brasileiro de 2002 reflete um processo complexo, desde sua Comissão inicial até sua aprovação, destacando-se a influência de diferentes legisladores ao longo dos anos. Críticas generalizadas devem considerar o contexto e o valor da obra.

3/1/2024

1. Introdução: uma reforma ditada pela contemporaneidade

Joseph Kohler, em sua clássica obra Lehrbuch des burgerlichen Rechten, com sabedoria, afirmou que:

“Nenhum Código jamais caiu do céu e nenhum foi objeto de uma revelação instantânea, e todos aqueles que acreditaram criar algo do seu espírito, tão-somente serviram ao espírito da cultura em que viveram e da qual extraíram o seu pensamento. (“Kein Gesetzbuch ist je vom Himmel gefallen, und keines der Gegenstand einer augenbliklichen Offenbarung gewesen, und diejenigen, welche glaubten, etwas aus ihrem Geist zu schaffen, haben fast nur dem Geist der Kultur gedient, in der sie lebten und der sie ihr Denken entnahmen)”1.

De fato, um código tende a refletir o espírito da cultura (Geist der Kultur) da sua época.

É inegável o valor acadêmico da Comissão presidida pelo professor Miguel Reale2, responsável pela elaboração de um anteprojeto de Código Civil com o objetivo de substituir o diploma de 1916:

“No ano seguinte (1973), depois de receber inúmeras emendas, foi publicada a segunda edição revisada do Anteprojeto, submetida, porém, a nova revisão, com grandes modificações, para se transformar no efetivo ‘Projeto do Código Civil brasileiro’, enviado, através do Poder Executivo, pela Mensagem n. 160/75, ao Congresso Nacional, onde se transformou no PL 634/75.

Depois de anos de debates na Câmara dos Deputados, onde a matéria até se mostrou esquecida, ante a ausência de um clamor social que a exigisse, em 1984 foi aprovado o projeto, com sua transformação no PL 634/B, conforme publicação no Diário do Congresso Nacional de 17 de maio de 1984 (Suplemento n. 47)3”.

Após longa hibernação, o projeto seria retomado muitos anos mais tarde, especialmente pela atuação de dois parlamentares, o senador Josaphat Marinho e o deputado Ricardo Fiúza, convertendo-se, finalmente, na lei 10.406, de 10 de janeiro de 2002 (publicada no Diário Oficial da União de 11-1-2002), o novo Código Civil brasileiro.

Não é adequado, em meu sentir, disparar contra o Código de 2002 dardos de generalizada crítica, como se todo o diploma de nada servisse. Tal postura acadêmica denota desconhecimento ou, em certos casos, é fruto de profunda vaidade intelectual.

Como todo resultado do agir humano, marcado pela falibilidade, há, em sua densa arquitetura normativa, erros e acertos. No entanto, é forçoso convir que, por refletir o espírito da cultura de sua época e, aliado a isso, haver permanecido em hibernação legislativa por longos anos, é marcado por uma obsolescência profunda.

A efervescência tecnológica da virada do século, a reconstrução profunda dos standards familiares, a velocidade da comunicação são apenas alguns fatores que não puderam - ou não podiam – ser absorvidos por aquele importante diploma.

Dou-lhes um exemplo simples.

Vasculhe em sua memória os cinco últimos contratos que você pactuou. Certamente, não o fez por correspondência epistolar ou sequer utilizou uma chamada telefônica. Provavelmente, o negócio fora consumado pelo computador ou, simplesmente, pela tela do seu celular, utilizando um aplicativo. Aliás, por meio de um “app”, atualmente, nós comemos, passeamos, viajamos, compramos, jogamos,

trabalhamos, ou, até mesmo, podemos encontrar o amor das nossas vidas. Um enredo que causaria espanto até mesmo a George Orwell.

O Código de 2002 não pôde antever essa realidade. Mas é a realidade da vida de cada brasileiro.

A atualização das suas normas não podia mais tardar, inclusive diante da lúcida advertência feita por Otávio Rodrigues Jr., no sentido de que o Direito Privado vive um “renascimento” como esfera de desenvolvimento das relações jurídicas4.

Atento a tudo isso, o Presidente do Senado Federal, Senador Rodrigo Pacheco, instituiu uma comissão de juristas para apresentar um anteprojeto de atualização do Código Civil, presidida pelo eminente Ministro Luís Felipe Salomão (STJ), tendo, como relatores gerais, os professores Flávio Tartuce e Rosa Maria de Andrade Nery.

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1 Citado em alemão por Clóvis Beviláqua, em Código Civil dos Estados Unidos do Brasil Comentado, I, Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1916 - tradução livre de Pablo Stolze Gagliano.

2 Comissão formada por Jose' Carlos Moreira Alves (Parte Geral), Agostinho Alvim (Direito das Obrigac¸o~es), Sylvio Marcondes (Direito de Empresa), Ebert Chamoun (Direito das Coisas), Clo'vis do Couto e Silva (Direito de Fami'lia), Torquato Castro (Direito das Sucesso~es) e presidida por Miguel Reale.

3 GAGLIANO, Pablo Stolze e PAMPLONA FILHO, Rodolfo. Novo Curso de Direito Civil – Parte Geral, volume 1. 25ª edição. São Paulo: Saraiva, 2023, p. 51.

4 RODIGUES JR., Otávio Luiz. Direito Civil Contemporâneo – Estatuto Epistemológico, Constituição e Direitos Fundamentais. 3ª ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2023. p. 68.

Pablo Stolze Gagliano
Professor de Direito Civil da Faculdade de Direito da UFBA

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