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A inconstitucionalidade no PL que altera a lei dos emolumentos do TJ/MS

O PL impõe um verdadeiro “pedágio” aos usuários dos serviços notariais, com a previsão de cobrança de custas (repasses para os Fundos), sem a ocorrência de um fato gerador.

22/12/2023

1. Introdução

Dispõe o artigo 236 da Constituição Federal que “os serviços notariais e de registro são exercidos em caráter privado, por delegação do Poder Público”. Assim, a atividade é exercida por particulares em colaboração com a Administração Pública, cuja remuneração se dá por meio da cobrança dos emolumentos. O §2º do dispositivo constitucional citado, diz que caberá à lei federal o estabelecimento das normas gerais para fixação de emolumentos relativos aos atos praticados pelos serviços notariais e de registro.

A lei que disciplina as normas gerais dos emolumentos é a lei 10.169/00, que diz que cabe aos Estados e ao Distrito Federal a fixação dos valores dos emolumentos relativos aos atos praticados pelos respectivos serviços notariais e de registro.

No Estado do Mato Grosso do Sul, no âmbito da sua competência legislativa, foi aprovado pela Assembleia Legislativa o projeto de lei Estadual 338/23, pendente de Sanção do Executivo, que fixou novos valores dos emolumentos para os atos praticados pelos serviços notariais e registrais do Estado pantaneiro.

Ocorre que no corpo do diploma legal aprovado, foi introduzido um dispositivo revestido de flagrante inconstitucionalidade e impropriedades, que viola os princípios tributários que regem a espécie tributária Taxa, bem como invade a competência da União para legislar sobre os registros públicos, já que pela via oblíqua aniquila o disposto no artigo 8º da lei 8.935/94, bem como impõem condições à transferência da propriedade, não prevista na lei 6.015/73.

2. Conceito e natureza jurídica dos emolumentos

Os emolumentos notariais e registrais constituem a remuneração pecuniária devida pelos usuários dos serviços por cada ato praticado. Essa remuneração é vinculada à complexidade e valor econômico dos atos praticados. O conceito de emolumentos abarca a ideia de contraprestação, estabelecendo uma relação direta entre o serviço prestado e a remuneração devida ao tabelião, sendo fixados por tabelas, geralmente estipuladas por legislação estadual específica, buscando equilibrar a justa remuneração do serviço com a acessibilidade aos usuários.

Com relação à natureza jurídica dos emolumentos, após muita discussão sobre o assunto, o STF já consolidou o entendimento no sentido de se tratar de tributo da espécie taxa remuneratória de serviços públicos.

Anotação Vinculada - art. 145, inc. II da Constituição Federal - "A jurisprudência do STF firmou orientação no sentido de que as custas judiciais e os emolumentos concernentes aos serviços notariais e registrais possuem natureza tributária, qualificando-se como taxas remuneratórias de serviços públicos, sujeitando-se, em consequência, quer no que concerne à sua instituição e majoração, quer no que se refere à sua exigibilidade, ao regime jurídico-constitucional pertinente a essa especial modalidade de tributo vinculado, notadamente aos princípios fundamentais que proclamam, entre outras, as garantias essenciais (a) da reserva de competência impositiva, (b) da legalidade, (c) da isonomia e (d) da anterioridade." [ADI 1.378 MC, rel. min. Celso de Mello, j. 30-11-1995, P, DJ de 30-5-97.

A taxa, conforme estabelecido na Constituição Federal brasileira (artigo 145, II), deve ter um fato gerador vinculado a uma atividade estatal específica, prestada diretamente ou indiretamente ao contribuinte. Em outras palavras, a taxa está associada a um serviço público ou a uma atividade estatal que beneficia diretamente aqueles que são submetidos à sua incidência.

Nota-se que o requisito da prestação do serviço de forma específica e individual ao contribuinte é critério fundamental para a ocorrência do fato gerador da taxa, ou seja, o pagamento do tributo deve estar diretamente relacionado com a utilização do serviço prestado.

O fato gerador da taxa é um conceito fundamental no âmbito do direito tributário, sendo responsável por definir a ocorrência que dá origem à obrigação tributária. A análise do fato gerador é de fundamental importância para compreender a natureza e a incidência específica da taxa, que se diferencia de outros tributos, como impostos e contribuições.

A caracterização do fato gerador da taxa se dá pela atuação do Estado, seja na esfera federal, estadual ou municipal, que deve realizar ou disponibilizar um serviço público específico. Este serviço pode abranger desde a prestação direta, como coleta de lixo, fornecimento de água, até atividades indiretas, como a fiscalização de atividades comerciais ou a emissão de alvarás.

No caso de serviços notariais e de registros nos atos que envolvem operação imobiliária, dois são os fatos geradores, ou seja, são devidas duas Taxas distintas. Tal formato de cobrança está em conformidade com o sistema de registro de imóveis adotado pelo sistema brasileiro, qual seja, o sistema do título e modo. Assim, para a transmissão de um imóvel se faz necessária a confecção de um título, bem como um modo de transmissão, consubstanciado no registro junto ao Serviço de Registro de Imóveis.

Seguindo neste raciocínio temos que haverá uma cobrança de emolumentos (taxa) quando da elaboração do título (lavratura da escritura pública) e uma outra cobrança de emolumentos (taxa) quando do registro do título. Ou seja, dois são os fatos geradores, sendo distinto um do outro. Haverá uma primeira cobrança pela prestação do serviço notarial prestado pelo Tabelião de Notas e uma segunda cobrança pela prestação do serviço registral prestado pelo Registrador de Imóveis.

Importa anotar que na maioria dos Estados da Federação os emolumentos são compostos por parcelas de valores devidos a fundos ligados à fiscalização da atividade notarial e registral, tais como Fundo do Tribunal de Justiça, do Ministério Público, Defensoria Pública, Procuradoria do Estado etc. Ressalte-se que a natureza jurídica destas parcelas repassadas aos fundos também é tributária, cujo fato gerador é a prática do ato notarial ou do ato registral.  

3. Do princípio da liberdade de escolha do cidadão

O artigo 8º da lei 8.935/94 traz um princípio importante que rege a atividade notarial, qual seja, o princípio da livre escolha do tabelião. Assim, o referido artigo traz que é livre a escolha do tabelião de notas, qualquer que seja o domicílio das partes ou o lugar de situação dos bens objeto do ato ou negócio.

O princípio da liberdade de escolha do tabelião é um pilar fundamental no âmbito notarial, refletindo a autonomia conferida aos cidadãos na seleção do profissional responsável por atos de grande relevância jurídica. Este princípio, intrinsecamente ligado ao exercício da autonomia privada, desempenha um papel importante na configuração do sistema notarial contemporâneo.

A liberdade de escolha do tabelião está intimamente vinculada à autonomia privada, proporcionando aos indivíduos a capacidade de personalizar os serviços notariais conforme suas preferências e exigências específicas. Esse aspecto contribui para uma maior adequação dos serviços às necessidades dos usuários, conferindo uma dimensão personalizada ao exercício da função notarial.

A importância liberdade de escolha do cidadão pelo Tabelião de notas de sua confiança, recentemente foi confirmada nas razões do veto à alteração, introduzida pela lei 14.711/23, do §6º da lei 8.935/94, em que buscava introduzir um sistema de distribuição do serviço por meio de entidade de classe de âmbito nacional, cujo texto de lei vetado dizia o seguinte: “§ 6º Os serviços referidos no § 5º deste artigo e os prestados sem caráter de exclusividade serão, se possível, distribuídos pela entidade de classe de âmbito nacional aos tabeliães da circunscrição delegada que abranja o endereço do imóvel ou a sede social ou domicílio eleitoral ou comprovado da parte, ou na falta deles, a outros do mesmo Estado da Federação, com vistas a atender critérios qualitativos, quantitativos, de moralidade e de eficiência.”

Dentro do processo legislativo da lei 14.711/23, o Ministério da Justiça e Segurança Pública e a Advocacia-Geral da União, fundado no princípio da livre escolha do cidadão pelo tabelião de sua confiança, apresentaram as seguintes razões para o veto do dispositivo:

“A proposição legislativa, no que se refere ao § 6º, contraria o interesse público ao atribuir à entidade de classe de direito privado competência para restringir a oferta de serviços e, consequentemente, a liberdade de escolha do cidadão, tendo em vista que a legislação vigente dispõe que o tabelião de notas poderá ser escolhido livremente, qualquer que seja o domicílio das partes ou o lugar de situação dos bens objeto do ato ou negócio.”1

Ao permitir a escolha do tabelião, o sistema notarial resguarda os direitos individuais, assegurando que os cidadãos tenham a oportunidade de eleger um profissional em quem confiem para a realização de atos notariais, muitos dos quais possuem implicações significativas em suas vidas pessoais e patrimoniais.

5. Da inconstitucionalidade da exigência de pagamento de parcela dos emolumentos sem a ocorrência do fato gerador

O PL Estadual 338/23 do Estado do Mato Grosso do Sul, sob a ementa “Dispõe sobre a fixação de emolumentos devidos pelos atos praticados pelos serviços notariais e de registro e dá outras providências”, além da estipulação de novos valores e faixas de cobrança dos emolumentos, instituiu no artigo 32 uma condição para a prática do registro de imóveis a comprovação do recolhimento integral das parcelas destinadas ao Funjecc, Funadep, Fund-PGE e FeadMP, inclusive para os atos lavrados em outro Estado da Federação, conforme se observa in verbis:

Artigo 32, §2º: Constitui condição necessária para os atos de registro de imóveis a demonstração ou declaração no instrumento público a ser registrado do recolhimento integral das parcelas destinadas ao Funjecc, Funadep, Fund-PGE e FeadMP, com base de cálculo a ser apurada conforme a Tabela I-A, inclusive na hipótese de documento lavrado em outra unidade da federação, devendo constar esta obrigação nas certidões de propriedade e de ônus reais.

O dispositivo possui algumas impropriedades e está dissonante do sistema jurídico e normativo que regula os serviços notariais, conforme se apresenta: 1ª) busca condicionar o exercício do direito constitucional à propriedade, com base em comprovação de recolhimento das parcelas que são repassadas pelos Tabeliães de Notas. Nota-se, a lei atribui ao Tabelião e ao Registrador a obrigação de providenciar os devidos repasses, cabendo ao usuário do serviço (contribuinte) efetuar o pagamento integral dos emolumentos (emolumentos + custas (fundos) quando da ocorrência do fato gerador (prática do ato notarial ou registral) diretamente para o notário ou para o registrador. A título de exemplo, o adquirente do imóvel constante do título, terá limitado o seu direito de propriedade por fato de terceiro, mesmo tendo quitado integralmente o valor dos emolumentos junto ao tabelião, caso este não promova o repasse no prazo estipulado pela legislação de regência; 2ª) cria a exigência de pagamento de taxa sem a ocorrência do fato gerador, pois, conforme já dito anteriormente o fato gerador dos emolumentos (bem como das parcelas destinadas aos fundos) é a prática do ato notarial. Assim, se o ato foi lavrado por Tabelião localizado fora do território do Estado do Mato Grosso do Sul, o fator gerador ocorreu no momento e no Estado em que o ato foi lavrado, local em que será recolhido integralmente a taxa devida. Ao se exigir o pagamento das parcelas para os fundos, mesmo para os atos praticados fora do Estado, haverá a cobrança de taxa sem que o fato gerador tenha ocorrido; 3ª) Estabelece uma Bitributação, uma vez que ao exigir o pagamento dos repasses aos fundos, a lei cria a figura da Bitributação, pois irá fazer com que o usuário do serviço (contribuinte) pague a taxa duas vezes pelo mesmo fato gerador; 4ª) Estabelece diferenciação tributária entre os atos lavrados em outras unidades da federação e os atos lavrados no Mato Grosso do Sul, pois ao prever a necessidade de duplo pagamento de emolumentos para os atos lavrados fora do Estado, estabelece diferenciação entre o serviço notarial prestado pelo Tabeliães do Mato Grosso do Sul e o dos demais Estados, em nítida violação ao artigo 152 da Constituição Federal, que veda aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios estabelecer diferença tributária entre bens e serviços, de qualquer natureza, em razão de sua procedência ou destino; 5ª) Viola o princípio da liberdade de escolha do Tabelião pelos usuários do serviço, pois busca instituir verdadeira reserva mercadológica, com o objetivo único de obrigar que todas as escrituras envolvendo imóveis localizados no Estado de Mato Grosso do Sul sejam lavradas exclusivamente por Tabeliães daquela unidade federativa, com a nítida violação ao artigo 8º da lei Federal 8.935/94. A título de exemplo, uma pessoa que possua domicílio na cidade de São Paulo, mas que tenha algum imóvel no Estado do Mato Grosso Sul, para que não sofra a Bitributação, será obrigada a abandonar o serviço de algum Tabelião da sua cidade ou Estado e lavrar o ato por algum tabelião sul-mato-grossense. Logo ao exercer o seu direito de livre escolha do tabelião, o usuário será penalizado pelo exercício de um legítimo direito previsto na legislação federal; 6ª) Cria a exigência de recolhimento dos repasses inclusive para o registro de títulos judiciais, pois ao utilizar o termo “documento lavrado em outra unidade da federação” não faz distinção entre a origem judicial ou extrajudicial do título, fazendo com que até para os títulos judiciais que envolvam imóveis localizados no mato grosso do sul o pagamento da taxa para os fundos deverá ser efetuado;  7ª) Estipula a compulsoriedade para o serviço notarial, a natureza do serviço notarial é serviço público que incide a taxa. Não se trata de serviço compulsório, cuja simples colocação à disposição faça surgir o fato gerador do tributo. Com a previsão de obrigatoriedade de recolhimento das verbas para os fundos, sem que o ato notarial tenha sido prestado por qualquer tabelião do Estado, o projeto de lei traz a compulsoriedade do serviço ser prestado dentro do Estado do Mato Grosso do Sul.

CONCLUSÃO

Após a análise profunda do PL 338/23, já aprovado pela Assembleia Legislativa, verifica-se que o objetivo das alterações legislativa não foi o barateamento ou implantação de qualquer benefício para o usuário do serviço, ao contrário, por meio de disposições que ferem diretamente o texto constitucional e os princípios tributários, bem como os princípios da atividade notarial, busca-se regular a atividade arrecadatória do Estado e limitar a liberdade dos usuários do serviço notarial, devendo ser objeto do controle de constitucionalidade pelo STF.

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1 Disponível em: http://planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2023-2026/2023/Msg/Vep/VEP-560-23.htm. Acesso em 21/11/23.

Fabio Silvino
Mestrando em Direito e Estado na Era digital pela Univem; Especialista em Direito Civil e Processual Civil. Especialista em Direito Notarial. Tabelião de Notas.

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