Migalhas de Peso

A tradição de “políticos” na composição do STF

Os Ministros do STF mencionados compartilham o histórico de ocupar cargos-chave no Executivo federal ou ter mandatos políticos antes de suas nomeações. Alguns até retornaram ao Executivo ou foram cogitados para eleições após deixarem o cargo no Supremo.

14/12/2023

Epitácio Pessoa, Aliomar Baleeiro, Paulo Brossard, Maurício Corrêa e Nelson Jobim ... O que esses Ministros do STF têm em comum?

Todos ocuparam postos-chaves no Executivo federal ou tiveram mandados políticos antes de serem nomeados Ministros do STF. Alguns, inclusive, voltaram a ocupar postos no Poder Executivo e foram cotados para disputar eleições majoritárias, após deixarem a toga.

O Ministro Epitácio Pessoa foi mais longe: virou Presidente da República, embora naquela época peculiar da Primeira República, como era o candidato oficial, sequer precisou estar no Brasil para disputar a eleição contra um dos maiores de nossos juristas, Rui Barbosa.

Rui Barbosa que, aliás, não foi Ministro do STF, como não foi Clóvis Bevilácqua, que se negou a ser indicado, tornando mentirosa a ideia de que ninguém recusa assento na Corte de Justiça maior da República brasileira, um daqueles sensos comuns repetidos até elevados à falsa verdade.

Fato é que nem sempre aqueles professores e estudiosos, vistos como os maiores juristas teóricos de sua época – algo difícil de beirar à unanimidade, salvo nos casos raros como dos dois apontados -, por circunstâncias de momento ou mesmo por desejo pessoal, chegam a ser Ministros do STF.

Causa espanto, portanto, a perplexidade que se coloca em certo setor da população na indicação do Senador Flávio Dino para uma vaga na Corte Constitucional brasileira, quanto mais por ele ter uma trajetória como magistrado e professor de Direito, além de ser óbvio que, mesmo um Ministro da Justiça ocupando um cargo político, é oportuno – para não dizer imprescindível – que seu ocupante tenha notável saber jurídico para bem exercê-lo.

Aliás, a menção ao Ministro do STF e Presidente da República Epitácio Pessoa cabe bem, porque, assim como ele, o Senador Flávio Dino há alguns anos tem um pé na política, sem deixar o outro firmemente posto sobre o direito.

Antes de ser apontado como um defeito, essa ambivalência pode se mostrar como uma virtude pública para a composição do STF, que, sim, tem uma importante função política na estrutura dos Poderes da República.

Ainda que a ética da legalidade deva imperar nas decisões do STF, nas precisas palavras do Ministro Eros Grau, existem interpretações possíveis para um mesmo texto jurídico, de modo que a experiência política de alguém que foi deputado federal, presidente de uma importante empresa pública brasileira, governador de Estado, senador da República e Ministro de Justiça torna-se um ativo para o Tribunal, na medida em que essa reserva de conhecimento pessoal pode levar à melhor interpretação possível dos dispositivos constitucionais.

Importância que é perene, mas que se revelará também intensa, ao se discutirem temas de segurança pública, relação entre poderes e federalismo, por exemplo.

Se o Brasil tem um constitucionalismo abrangente, com quase todos os temas relevantes tendo sido constitucionalizados ou podendo ser lidos constitucionalmente, a experiência de vida, sobretudo uma vivência pública, é mais do que bem-vinda no STF, desde que nos limites da Constituição, seguindo-se o que se pode chamar de ideologia constitucional.

E sempre foi assim.

Os nomes que mencionei no primeiro parágrafo deram testemunho de como é rica a contribuição de quem fez política para a própria jurisprudência do STF.

O deputado constituinte Aliomar Baleeiro, criador do capítulo das limitações constitucionais ao poder de tributar, na Constituição de 1946, deu seu contributo ao tema da tributação ao longo de seus anos no Tribunal, sabidamente.

O também deputado constituinte Nelson Jobim, relator da Constituição atual da República Federativa do Brasil, nas primeiras discussões sobre royalties pós-1988, explicou muito bem o que os legisladores constituintes pensaram sobre o tema, iluminando a Corte sobre esse complexo problema de federalismo fiscal.

Paulo Brossard, embora perdedor na análise da juridicidade do processo de impecheament do Presidente Collor, vaticinou que “o Senado tem o monopólio do arbítrio e do erro; o fato é que, bem ou mal, a Constituição elegeu o Senado e nenhum outro órgão, nem mesmo o STF, para processar e julgar determinados comportamentos de determinadas autoridade”, uma ideia que serviu de lastro para reafirmar a competência do Senado da República na determinação de quais sanções seriam impostas à Presidente Dilma Roussef.

Além destes grandes Ministros, poderia citar que compuseram o STF o Ministro Hermes Lima, que foi um dos poucos Primeiros-Ministros da história brasileira e o Ministro Evandro Lins e Silva, antes chefe da Casa Civil do governo João Goulart, ambos fundadores do PSB .

Impossível não registrar também que o Ministro Francisco Rezek chegou a sair e voltar para o STF. ocupando o cargo de Ministro das Relações Exteriores do governo Collor neste interregno.

O Ministro Ayres Britto chegou a ser candidato a deputado federal muito antes de chegar ao Tribunal.

O Ministro Alexandre de Moraes foi Secretário de Segurança, presidente da Febem e secretário Municipal de Transportes, em São Paulo, e posteriormente Ministro da Justiça e Segurança Pública.

Todos eles “políticos”, mas, que chegando ao STF, por restrições pessoais e institucionais, num misto de virtude pública e privada, não fizeram política partidária ou de governo na Casa.

Muitíssimas vezes votaram contra ex-aliados, os governos que os indicaram e suas antigas filiações partidárias.

Daí as aspas no título do texto e no último parágrafo, porque todos somos seres políticos, enraizados e vivendo em sociedade, quanto mais nós, os com formação jurídica, que geralmente nos preocupamos mais com as coisas públicas.

Se a nenhum dos Ministros citados acima não se possa deixar de reconhecer o “notável saber jurídico”, a eles se acrescem a qualidade também notável de terem participado da gestão pública e de saberem como funciona o processo legislativo nacional.

Por isso, do ponto de vista histórico, da tradição mesma do STF, é um “não-problema” a questão de Flávio Dino ter filiação partidária, ter participado da gestão pública e ter ocupado mandatos como parlamentar.

O que se espera dele, institucionalmente, é o respeito à Constituição, prova pela qual o Senador Flávio Dino já passou, inclusive porque, ao contrário de outros ocupantes de cargos públicos, institucionalmente sempre se mostrou respeitoso à Carta-cidadã de 1988.

Curioso que historicamente o STF, em suas variadas composições, tendo “políticos” nelas, prestou-se mais a lutar contra abusos de dirigentes de ocasião do que a ser utilizado para os interesses próprios desses Ministros.

Como exemplos, têm-se o que ocorreu na época da presidência de Hermes da Fonseca, quando a doutrina brasileira do habeas corpus se consolidou para brecar abusos deste presidente da República, e o que se passou após o Golpe de 1964, quando Ministros que tinham sido deputados udenistas, notavelmente Aliomar Baleeiro, também impediram arroubos ainda mais autoritários da ditadura militar contra políticos à esquerda, do qual discordaram enquanto foram parlamentares.

A história ensina e, neste caso, traz boas lições sobre as razões desta velha tradição de “políticos” no STF.

Em verdade, os predicados do Senador Flávio Dino como político e jurista prático trazem um contributo importante para as futuras decisões do STF, juntando-se à do ex-advogado criminalista, Ministro Cristiano Zanin; à do ex-integrante do Ministério Público Estadual de São Paulo e ex-Ministro da Justiça e Segurança Pública, Ministro Alexandre de Morais; às de juízes de carreira ou desembargadores, como os Ministro Luiz Fux e Nunes Marques; às de procuradores de Estado, como os Ministros Luís Roberto Barroso e Edson Fachin; às dos três ex-Advogados-Gerais da União, Ministros Gilmar Mendes, Dias Toffoli, André Mendonça; e à da ex-Advogada-Geral do Estado de Minas Gerais, Ministra Cármen Lúcia.

Afinal, sobretudo nestes tempos estranhos, o que se espera de qualquer Ministro do STF está no belo poema de Antonio Cicero, citado pela Ministra Rosa Weber, ocupante da vaga para a qual se indiciou o Senador Flávio Dino: “guardar uma coisa é vigiá-la, isto é, fazer vigília por / ela, isto é, velar por ela, isto é, estar acordado por ela / isto é, estar por ela ou ser por ela”.

Daniel Giotti de Paula
Mestre em Teoria do Estado e Direito Constitucional pela PUC-Rio; Doutor em Finanças Públicas, Tributação e Desenvolvimento pela UERJ; e Procurador da Fazenda Nacional.

Veja mais no portal
cadastre-se, comente, saiba mais

Artigos Mais Lidos

Regulação do uso de IA no Judiciário: O que vem pela frente?

10/12/2024

Devido processo legal na execução trabalhista: Possíveis desdobramentos do Tema 1232 da repercussão geral do STF

9/12/2024

O que os advogados podem ganhar ao antecipar o valor de condenação do cliente?

10/12/2024

Insegurança jurídica pela relativização da coisa julgada

10/12/2024

A face oculta do imposto do pecado

10/12/2024