Migalhas de Peso

Democracia em ameaça: a PEC 8/21 e o acirramento da crise institucional

Causa espanto que, quando as instituições falham no diálogo, o povo se perde; e, quando o povo se perde, o autoritarismo costuma ecoar como uma voz sinistra de reestabelecimento da ordem

6/12/2023

Desde criança, não era segredo para amigos e familiares que as aulas de História me entretinham. Ainda hoje, parafraseando Bossuet, vejo tal ciência como um espelho daquilo que passou, instruindo com a experiência e corrigindo com o exemplo, para que não repitamos os mesmos erros de nossos antepassados.

O homem, no entanto, ou por cegueira deliberada ou por memória seletiva, parece esquecer das dores e traumas que nações inteiras enfrentaram para se construir o que hoje se conhece como uma república democrática, não valorizando longos anos de construção normativa e social necessárias ao estágio de civilização que hoje nos encontramos.

Nesta esteira, pode parecer um passado distante, mas a Revolução Francesa ocorreu há pouco mais de 200 anos. Apesar das induvidosas evoluções que a ciência e a tecnologia nos trouxeram de lá para cá, as condutas humanas, como citado, não parecem ter mudado no mesmo ritmo, pois o espírito de radicalismo ainda permanece vivo no coração da maioria.

A ordem na França monarquista era clara: ruptura institucional imediata. A abolição da monarquia era corrente e a instituição de uma constituinte necessária. Mas, talvez no afã de impingir mudanças mais rápidas do que a sociedade poderia comportar, açodaram-se a guilhotinar a monarquia e a eleger Robespierre como representante do povo, advogado e político respeitado por seu senso de ordem, moral e justiça.

A ruptura institucional às pressas, no entanto, não foi nada salutar. Tanto é verdade que historiadores denominam o que veio na sequência como a “Era do Terror”, com Robespierre condenando centenas de franceses à guilhotina. O ímpeto do povo francês era tamanho que não tardou para que o próprio Robespierre, então “voz da justiça” tivesse idêntico destino. Seria cômico, se não fosse trágico.

Após tanto ódio destilado contra a monarquia, curiosamente, o perdido povo francês pareceu voltar ao ponto inicial, elegendo um novo monarca que, desta vez, ao menos em tese, estaria sujeito à Constituição. É daí que o nome de Napoleão Bonaparte surge nos livros de História.

A Revolução Francesa construiu, com sangue e suor, após anos de sua ocorrência, a ideia de uma república democrática, e o sofrimento do perdido povo francês nos traz uma única certeza: seja Robespierre, seja Napoleão, é um erro romper com a ordem vigente e dar poder absoluto a uma só pessoa.

Mas o que um passado não tão distante nos ensina? E, afinal de contas, em que medida se relaciona ao título do presente artigo?

Não é de hoje que o Brasil vive uma inflamada e crescente tensão política, iniciada antes das eleições de 2018, com acirramento de ânimos entre partidários petistas e bolsonaristas. Aqui, qualquer semelhança entre jacobinos e girondinos não parece ser mera coincidência histórica.

Sendo as instituições reflexo do próprio povo, não tardou para que tal polarização refletisse nos três Poderes. O Executivo, até então liderado por Bolsonaro, atracou-se com o Judiciário, representado pelo STF. Não foi em apenas uma ou duas oportunidades que declarações polêmicas foram lançadas tanto de um lado, quanto do outro.

E, sem adentrar no mérito do acerto ou desacerto das decisões que a Suprema Corte passou a proferir durante tal período, é fato estatístico que em nenhum outro momento da história brasileira o chefe do Executivo teve tantos atos questionados e anulados por membros da Suprema Corte.

Foi neste contexto de crescente tensão que o Legislativo também entrou no embate, elaborando o texto da Proposta de Emenda Constitucional (PEC) 8/21, que, em síntese, “estabelece prazos para os pedidos de vista nos julgamentos colegiados do Poder Judiciário. Determina que somente pelo voto da maioria absoluta de seus membros ou dos membros do respectivo órgão especial os tribunais possam deferir medidas cautelares que: suspendam a eficácia de leis e atos normativos com efeitos erga omnes; suspendam atos dos presidentes dos demais poderes; suspendam a tramitação de proposições legislativas; afetem políticas públicas ou criem despesas para os demais poderes. Fixa prazo para o julgamento de mérito após o deferimento de pedidos cautelares em ações de controle concentrado de constitucionalidade e dá outras providências.”

A PEC, no entanto, não foi levada à votação no Senado Federal, casa de sua criação. Afinal, os ânimos pareceriam se aplacar com a chegada de um novo governo no ano de 2022, e as pautas políticas passaram a ser outras 

A crise institucional, no entanto, já estava instalada, e julgamentos da Suprema Corte que diziam respeito a atos cometidos ainda no governo anterior – ou em razão de partidários dele, como no caso da insurgência do 8 de janeiro –, trouxe novas cores à tônica da ruptura institucional.

Foi neste contexto que, em 22 de novembro de 2023, o Senado Federal aprovou o texto da PEC 8/21, recebendo imediata reação de membros da Suprema Corte.

O conflito que já estava armado, agora parece estar próximo a eclodir. Se, de um lado, o Parlamento, representante máximo do povo, pretende impor limites à Suprema Corte; de outro, a instituição máxima do Judiciário, guardiã da Constituição Federal, provavelmente se prepara para anular – ou mitigar – a medida.

Curiosamente, tudo se faz em prol de “um bem maior”. Os defensores da PEC afirmam categoricamente que alguns atos da Suprema Corte ultrapassam suas atribuições e ferem a própria Constituição. Já para os opositores, a Constituição estabeleceu as funções do Tribunal e cumpre tão somente a ele interpretá-la, não podendo uma emenda violar a cláusula pétrea que veda a intervenção de um Poder sobre o outro. A propósito matérias recentes do Migalhas trazem opiniões de outros advogados que também consideram a matéria da PEC inconstitucional, por não poder um Poder regular o funcionamento do outro.

Bem ou mal, fato é que fundamentos para ambos os lados encontramos, assim como para quase tudo na vida. O único fato inconteste a que se chega é: quando se perde o diálogo, deixa de se existir o certo ou o errado, mas consensos que se perdem e colocam em xeque a democracia que, insisto, foi tão arduamente construída ao longo dos anos.

Se os franceses erraram ao se açodar nos atos da Revolução, o mesmo erro aqui não pode se repetir. Sim, o resultado foi proveitoso, construindo-se a ideia de Estado Democrático. Mas o custo foi alto, e no atual cenário social de evolução, não podemos estar dispostos a pagá-lo novamente.

A despeito do exposto, o acirramento da crise institucional tende a aumentar, e um preocupante cenário de ruptura pode se tornar uma realidade, colocando em xeque a democracia.

A razão maior do espanto, reitero, é que a História nos revela que cenários de crise desta natureza são propícios a duas coisas: decisões prematuras são tomadas, mas que, posteriormente, se revelam pouco acertadas; e, pior, vozes sinistras passam a ecoar em apoio a ideais ditatoriais e absolutistas, que na cabeça de alguns se revelam necessárias para o “reestabelecimento da ordem.”

A democracia, no entanto, não se constrói às pressas, tampouco com ataques de uma instituição à outra. A construção, a bem da verdade, é eterna, e se faz com o diálogo e constantes alterações que se prestam a comportar cada nova ideia validada pelo povo, representante supremo da nação.

Um Estado em crise, grife-se, somente é conveniente para oportunistas que, aproveitando-se de tal fragilidade, intentam dominá-lo e subvertê-lo, fazendo-o aparentemente em proveito do povo, ao argumento de que a intervenção é necessária para o reestabelecimento da ordem. Com efeito, os atos escusos e inescrupulosos de tais oportunistas se prestam exclusivamente aos próprios caprichos, não há dúvidas.

Nesta toada, os representantes máximos das instituições devem – ou deveriam – seguir o único caminho possível: o diálogo. Se no litígio entre particulares o Estado recomenda a autocomposição, que dirá em um atracamento entre instituições, sobretudo à luz do princípio basilar da interdependência dos poderes.

Não se está aqui a dizer que a Suprema Corte – ou qualquer outra instituição – seja absoluta, não podendo nem devendo encontrar limitações em suas funções. Tal proposta, à evidência, violaria o conhecido sistema de freios e contrapesos (check and balances) proposto por Montesquieu.

Ao reverso, o que se propõe é reconhecer que, a partir do diálogo institucional, seria possível implementar novas alterações e limitações à Corte no âmbito de seu próprio regimento interno, tal como ocorrido ao final do ano de 2022. O desgaste seria infinitamente menor, afastando o risco à democracia.

Novamente em comparativo ao litígio entre particulares, concessões múltiplas são indispensáveis, construídas paulatinamente, e não impostas de maneira abrupta por meio de uma PEC que, com toda certeza, será invalidada, no todo ou em parte, pela mesma instituição a qual tentou impor limites. Retorna-se ao status quo, mas com ainda mais tensão e propostas cada vez mais radicais e perigosas.

Em todo caso, acompanhemos de perto as cenas históricas dos próximos capítulos, sem jamais nos esquecer da lição atemporal do iluminista Voltaire, que nos ensina que divergência não deve ser sinônimo de desavença. Afinal, posso não concordar com uma única palavra que disseres, mas defenderei até a morte o direito que tens de dizê-la. Este é o mandamento basilar para a construção de uma democracia republicana.

Gustavo Castro
Advogado e sócio do escritório Castro Filho Advogados Associados. Especialista em Direito Tributário pela Escola Superior do Ministério Público. Atualmente é CFO do Ecossistema Brasília Educacional.

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