Na última semana veio à tona a notícia de que não foi possível a realização do divórcio da apresentadora Ana Hickmann na vara de família, o que infelizmente alimentou vários boatos de que não teria sido aceito, pois, tal apresentadora não seria vítima de violência doméstica, de que a violência sofrida teria sido inventada, etc.
Bem, não estou aqui para expressar juízo de valor se a apresentadora foi ou não vítima, pois cabe ao magistrado decidir, mas venho falar sobre a causa de o divórcio não ter ocorrido na vara de família.
Em primeiro lugar, seria possível que o divórcio ocorresse na vara de violência doméstica? Vamos ver o que diz o Caput do artigo 14-A da lei Maria da Penha:
“Art. 14-A. A ofendida tem a opção de propor ação de divórcio ou de dissolução de união estável no Juizado de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher.”
É perceptível pelo artigo 14 que a vara de violência doméstica, é sim, competente para julgar a ação de divórcio, mesmo sendo complexa a decisão sobre a guarda dos filhos, já que não há qualquer vedação sobre a vara de violência doméstica decidir sobre a guarda de absolutamente ou relativamente incapazes frutos do casal. É importante destacar que, inclusive, se não houver acordo do casal sobre a guarda dos filhos não será aplicada a regra da guarda compartilhada caso haja comprovado risco de violência doméstica (Não importando se o risco seja para a mãe dos filhos pela lei Maria da Penha ou para os filhos pela lei Henry Borel), a guarda se houver tal risco será unilateral em favor da parte não agressora, conforme diz o recente parágrafo 2º do artigo 1.584, II do Código Civil.
“Art. 1584, II, § 2º: Quando não houver acordo entre a mãe e o pai quanto à guarda do filho, encontrando-se ambos os genitores aptos a exercer o poder familiar, será aplicada a guarda compartilhada, salvo se um dos genitores declarar ao magistrado que não deseja a guarda da criança ou do adolescente ou quando houver elementos que evidenciem a probabilidade de risco de violência doméstica ou familiar.
É definido como cinco dias o prazo para a apresentação das provas de tal risco de violência doméstica, segundo o recente artigo 699-A do Código Civil:
“Art. 699-A: Nas ações de guarda, antes de iniciada a audiência de mediação e conciliação de que trata o art. 695 deste Código, o juiz indagará às partes e ao Ministério Público se há risco de violência doméstica ou familiar, fixando o prazo de 5 (cinco) dias para a apresentação de prova ou de indícios pertinentes.”
Até mesmo em casos nos quais não há violência doméstica, mas há forte animosidade entre os pais, a regra da guarda compartilhada pode ser afastada conforme recente decisão do STJ na REsp 1888868, do dia 04/12/2023.
"A guarda compartilhada é a regra, mas pode ser afastada em razão de animosidade existente entre os pais, que torne inviável a sua adoção".
Mas em relação ao fato de a vara de violência doméstica ter sido declarada como não competente para julgar o divórcio, isso deu-se a uma possível falta de provas ou indícios de que a apresentadora Ana Hickmann teria sofrido qualquer dos tipos de violência?
A resposta é não, como dito, cabe ao poder judiciário decidir o que ocorreu em termos de violência. O real motivo para a vara de violência doméstica não julgar o pedido de divórcio da apresentadora é o fato de haver bens a serem divididos pelo casal e a lei Maria da Penha proibir que a vara de violência doméstica seja competente para julgar o divórcio caso haja bens a serem divididos, conforme diz o parágrafo 1º do artigo 14-A:
“Art. 14-A. A ofendida tem a opção de propor ação de divórcio ou de dissolução de união estável no Juizado de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher.
§ 1º Exclui-se da competência dos Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher a pretensão relacionada à partilha de bens.”
Logo, a competência para julgar o pedido de divórcio de Anna Hickmann é da vara de família, mas o fato de haver possível violência doméstica mudaria algo na vara de família?
A resposta é sim.
Existe o direito a prioridade na tramitação dos processos quando uma das partes é uma mulher vítima de violência doméstica e familiar, nos termos da lei Maria da Penha, conforme prevê o artigo 1.048, III do Código de Processo Civil:
Art. 1.048. Terão prioridade de tramitação, em qualquer juízo ou tribunal, os procedimentos judiciais:
III - em que figure como parte a vítima de violência doméstica e familiar, nos termos da lei 11.340/2006 (Lei Maria da Penha).
Espero que com esse texto, mulheres que se encontram na mesma situação que a apresentadora Ana Hickmann possam entender que, mesmo que haja a necessidade da divisão dos bens e, por isso, não possa a vara de violência doméstica julgar a ação de divórcio, tenham tais mulheres o direito a prioridade em qualquer juízo ou tribunal.
Quando o Estado trata com respeito as mulheres em situação de violência, consequentemente trata toda a sociedade com dignidade e Justiça.