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Notas sobre a invalidade e a ineficácia da cláusula de imposição de procedimento arbitral (e/ou de foro exclusivo estrangeiro) no bill of lading

O debate surge sobre se o segurador sub-rogado deve ou não obedecer aos termos do Bill of Lading no transporte marítimo internacional, sendo alguns a favor de sua eficácia, enquanto outros argumentam que são ineficazes sem seu conhecimento prévio.

29/11/2023

A intersecção entre Direito dos Seguros, Direito Civil (Direito das Obrigações), Direito Marítimo e Direito Processual Civil gera muitos temas interessantes e polêmicos.

Um deles, talvez o mais recente, alvo de acalorados debates e de decisões conflitantes, é o da submissão ou não do segurador sub-rogado aos termos do Bill of Lading (a evidência instrumental do negócio de transporte marítimo internacional de carga), do qual não é parte.

Há quem entenda que os termos (e, por termos, destacamos a cláusula de imposição de procedimento arbitral e/ou de foro exclusivo estrangeiro) são ineficazes perante o segurador sub-rogado e há quem entenda que são eficazes, especialmente se houver ciência prévia a seu respeito.

Aqui, nestas breves notas, interessa-nos menos esse debate e mais um outro, que o antecede e que tem sido relativamente ignorado pela Justiça: o da invalidade dessa cláusula, por dirigismo negocial, e o da ineficácia, por desrespeito à forma legal.

Antes mesmo de discutir se, pela sub-rogação legal, o segurador deve ou não se submeter ao clausulado do Bill of Lading, há de se discutir se esse clausulado é válido e eficaz, legal em relação ao ordenamento jurídico brasileiro, especialmente a partir da natureza adesiva da negociação e, consequentemente, dos requisitos que a lei 9.307, de 23 de setembro de 1996 estabelece para casos assim.

Estamos convictos de que não, e isso afirmamos amparados em posicionamento antigo e ainda vigente da jurisprudência.

Com indisfarçável dose de orgulho, afirmamos que o fundador de nossa sociedade de advogados, o saudoso Rubens Walter Machado, foi um dos que ajudaram na formação desse posicionamento e seus argumentos, transformados em fundamentos de muitas decisões judiciais, mais do que nunca são reclamados e merecem especial atenção.

Para muito além de discutir se o Bill of Lading é instrumento contratual ou evidência de negócio jurídico, o que se tem por certo é que as cláusulas no seu anverso são unilateralmente dispostas pelo transportador, sem qualquer manifestação livre de vontade pelo contratante dos serviços, que é, a rigor, o embarcador (shipper).

Aquele que se vale do serviço de transporte é obrigado a aderir a verdadeiro combo de termos, condições e deveres unilateralmente ditados pelo prestador. Embora regular essa modalidade negocial e bastante comum em muitos setores, a verdade que não se pode negar é que, para uma das partes, não existe a livre manifestação de vontade, e por isso lhe falta validade.

Em outras palavras: ou se adere ao combo ou não se consegue o transporte da coisa, que normalmente é um bem e que, depois de embarcada, assume o nome de carga. Em nome da transparência, dizemos que essa forma talvez seja inevitável para o fluxo da Economia global, que requer dinamismo e praticidade.

Importante analisar porém, no caso dessa adesão, não mais a invalidade — que decorre do dirigismo, ou é desconsiderada a despeito dele —, mas a própria eficácia da cláusula indiscutida. E a ineficácia pelo descumprimento das regras formais previstas no art. 4º, § 2º da já lei 9.307/96, que trata da arbitragem no Brasil.

Art. 4º A cláusula compromissória é a convenção através da qual as partes em um contrato comprometem-se a submeter à arbitragem os litígios que possam vir a surgir, relativamente a tal contrato.

§ 2º Nos contratos de adesão, a cláusula compromissória só terá eficácia se o aderente tomar a iniciativa de instituir a arbitragem ou concordar, expressamente, com a sua instituição, desde que por escrito em documento anexo ou em negrito, com a assinatura ou visto especialmente para essa cláusula.

Depois de muito tempo em discussão no Supremo Tribunal Federal, a lei foi finalmente declarada constitucional e se afirmou, no grande debate jurídico que a circundou, a necessidade de se observar a forma legal, sempre e estritamente, quando do seu uso, especialmente em contratos de adesão, sob pena de absoluta ineficácia.

Eventuais problemas, que não ocorrem em todos os transportes, podem e devem ser dirimidos pela Justiça, observando-se a ortodoxia do Direito, a ordem Moral e os princípios da razoabilidade e da proporcionalidade, bem como a função social das obrigações e o bem comum, o que exige que o causador do dano responda pelos prejuízos daí decorrentes e não se esconda atrás do formalismo exagerado.

Ora, se aquele que busca o serviço não pode negociar livremente as disposições contratuais, como é que se pode ter como lícita uma cláusula que inibe o pleno exercício da jurisdição brasileira e impõe aquilo que, por essência, exige voluntariedade e ampla negociação prévia: o procedimento arbitral e/ou o foro exclusivo estrangeiro?

A cláusula não é lícita, porque manifestamente abusiva. Contraria o Código Civil, ofende a própria lei de Arbitragem (forma e substância) e fere de morte a Constituição Federal, porquanto inexiste renúncia tácita à garantia constitucional de acesso à jurisdição, que é pilar do Estado Democrático de Direito.

Quando o assunto é tratado pela perspectiva do Direito do Seguro, a situação se agrava ainda mais, porque o segurado, na maior parte das vezes, não é sequer o embarcador, o que se firma a obrigação com o transportador, mas o consignatário de carga, que não é parte no Bill of Lading.

O consignatário (segurado do contrato de seguro de transporte) aparece no corpo do Bill of Lading como mero interessado, beneficiário da obrigação que o transportador assume cumprir, caracterizada por prestação de fazer.

Então, é correto dizer que esse consignatário – que não adere aos termos do negócio de transporte, não escolhe livremente o transportador, não conhece (ao menos formalmente) o clausulado, não paga o elevadíssimo frete –, não é parte do negócio.

Não que seja alheio ou estranho à relação negocial; ele apenas não é ator, sequer coadjuvante, dos direitos e obrigações. No máximo para fins de reparação de danos, já que existe o que se pode chamar de estipulação em favor de terceiro, ele é parte por equiparação legal, porém isso pontualmente e em caráter manifestamente exclusivo.

Realmente, o consignatário apenas utiliza-se do instrumento Bill of Lading após a finalização do transporte, pois se trata de documento essencial para a transferência da propriedade da carga enviada pelo embarcador e serve como título de credito para nacionalização da mercadoria e demais procedimentos tributários. Em suma: ele não é mesmo parte do instrumento negocial de transporte e o teor deste não é, para ele, contratual, mas cartulário. Fala-se em título de crédito, não em contrato. Logo, não se pode opor a ele quaisquer dos termos do anverso, especialmente um que é imposto ao arrepio da própria lei que o regulamenta no Brasil.

Em sendo assim, pergunta-se ainda: pode esse consignatário ser obrigado a se submeter a clausulado de instrumento do qual não é parte, dentro do qual nada convencionou ou aceitou, e de que lhe escapa até mesmo o conhecimento por derivação?

A resposta é não.

Seria por demais oneroso cogitar o contrário. Seria, em primeira e última instância, a premiação do dirigismo negociação, da imposição de vontade, da abusividade por inglória excelência.

O consignatário da carga, enfatizamos, sequer escolhe o transportador, quanto mais os termos do clausulado do instrumento negocial. Se a natureza adesiva é invencível em relação ao que escolhe o transportador, paga o frete (sempre elevado) e se vê esmagado por todo um combo clausular, que então dizer do consignatário da carga, que não é parte em sentido estrito, e sim mero beneficiário?

Raciocínio idêntico se aplica ao segurador da carga, e de modo até mais grave. Ora, se o seu segurado, o consignatário da carga, não é parte no instrumento negocial, nem por adesão, com mais razão o segurador não o será, tornando-se insustentável, para não dizer intolerável, exigir-lhe que obedeça ao clausulado.

Não falamos aqui de cláusula qualquer, mas de uma que não respeita o sistema legal brasileiro (a começar pela ótima lei de Arbitragem) e que, mais do que abusiva, é inconstitucional, porque inibe o pleno exercício da garantia fundamental de acesso à jurisdição.

Então, antes de discutirmos se, nos pleitos de ressarcimento contra o transportador marítimo, esse tipo de cláusula se transmite ao segurador por meio da sub-rogação, o que temos que lembrar e destacar é que a cláusula é, em si mesma, abusiva, ilegal e inconstitucional, portanto, nula de pleno direito, num primeiro momento. E ineficaz, num segundo, por não obedecer a forma prevista pela Lei de Arbitragem.

E ela é isso tudo primeiro em relação ao embarcador, o que se vale do negócio e paga o custoso frete, e, mais ainda, ao consignatário da carga, beneficiário do serviço, que sequer é parte no instrumento negocial. O que é inaplicável a um é ainda mais ao outro, que pode e deve ser considerado a vítima além da vítima do ato-fato do negócio que gerou dano.

Dentro desse contexto todo tem-se o segurador, que mais do que seu segurado, o consignatário, não é, nem de longe, parte do negócio de transporte e apenas exerce um direito legítimo, garantido por lei (art. 786 do Código Civil) e sumulado pela Suprema Corte (Enunciado de súmula nº 181).

Sempre que nos é dada a oportunidade, dizemos que a busca do ressarcimento em regresso é, mais do que um direito, um dever, um imperativo ético do segurador, tendo em vista que defende os direitos e interesses do mútuo, o colégio universal dos segurados. A busca do ressarcimento se reveste de magnífica função social e interessa à sociedade como um todo, sendo uma das formas saudáveis de se manter a saúde do negócio de seguro, sua viabilidade econômica e todo o bem que permite.

Ao demandar o ressarcimento em regresso, o segurador sub-rogado não o faz por não ver cumprida a prestação de um negócio, do qual ele sequer é parte, mas em função de um evento danoso, identificado como risco numa apólice e que lhe exigiu o pagamento de uma indenização de seguro. Por isso, ele não litiga contra o devedor inadimplente prestacional, porém contra um lesador, protagonista de ato ilícito civil, que apenas acidentalmente tem relação com o transporte.

Pode-se falar em contrato para o Bill of Lading em relação ao embarcador (contratante) e ao transportador (contratado), mas não para o consignatário da carga, mero beneficiário do serviço estipulado em seu favor e a quem o instrumento é apenas título de crédito, nota promissória. Ele e seu segurador jamais poderão ser considerados partes do contrato, donde se evidencia ainda mais a natureza abusiva da cláusula. Fala-se em dupla ilegalidade: uma, no plano da validade, por pretender submeter quem dela não negociou prévia e livremente; outra, no plano da eficácia, por desrespeito à forma determinada pela Lei de Arbitragem. E ao sabor dessa ilegalidade, a mais flagrante inconstitucionalidade, por inibir ao jurisdicionado o exercício da garantia fundamental de acesso à jurisdição.

Considerar como ilegal e inconstitucional a cláusula em comento é prestigiar a jurisdição nacional, é separar os negócios jurídicos de transporte e de seguro, é não tolher indevidamente o direito de regresso, é respeitar a Lei de Arbitragem, em especial, e o Direito Civil como um todo, é respeitar a mais antiga e talvez mais importante definição de Direito (como corolário de Justiça), a do Código Justiniano: “Justiça é dar a cada um o que é seu”.

Causador de dano, que avaria ou extravia, total ou parcialmente, o transportador não pode se ver livre do dever de reparação integral do prejuízo respectivo em razão de cláusula de instrumento negocial de sua exclusiva emissão, e que não tem como partes os que com ela procura comprometer: o consignatário da carga e o seu segurador.

Devedor que é de obrigação de resultado e manejador de fonte de risco para os outros, o transportador responde, integral e objetivamente, pelos danos e prejuízos a que der causa, salvo se provar, mediante inversão da carga dinâmica da prova, caso fortuito, força maior e/ou vício de origem (ou de embalagem) ou, ainda, a culpa exclusiva da própria vítima. Não pode e não deve fugir dessa responsabilidade, que significa avanço jurídico civilizacional, por meio de armadilhas formais e negociais direcionadas a impor ônus aos que, pela lei, não deveriam ter nenhum.

O reconhecimento dessa cláusula como abusiva, ilegal, inconstitucional, nula de pleno direito e ineficaz, é fundamental para a vitalidade do Direito Marítimo no Brasil e para a não desnaturação da Justiça. Nenhuma cláusula negocial pode aproveitar a quem sequer é parte aderente do instrumento que lhe procuram impor. Existe, sim, responsabilidade erga omnes, mas não negócio jurídico em sentido estrito para além de suas efetivas partes.

Somos entusiastas do procedimento arbitral (ou do uso de jurisdição estrangeira), desde que livre, prévia e formalmente negociada pelos interessados. Nossas muitas experiências com ambas foram e são bem positivas. O que não podemos aceitar é a imposição autoritária dela aos que sequer a tomaram por adesão, sendo que sua formatação, ademais, se deu à clara revelia das exigências da lei.

Paulo Henrique Cremoneze
Advogado com atuação em Direito do Seguro e Direito dos Transportes. Sócio do escritório Machado, Cremoneze, Lima e Gotas - Advogados Associados. Mestre em Direito Internacional Privado. Especialista em Direito do Seguro.

Rubens Walter Machado Filho
Advogado, administrador de empresas, diretor do IBDTrans - Instituto Brasileiro de Direito dos Transportes. CEO da MCLG Consulting & Recovery (USA). Sócio do escritório Machado, Cremoneze, Lima e Gotas - Advogados Associados.

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