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Sustentações orais e o conflito entre o Regimento Interno do STF e o Estatuto da Advocacia

O STF, em decisões recentes, tem rejeitado sustentações orais em agravos regimentais, contrariando a lei 8.906/94. Em recente HC, o ministro Alexandre de Morais negou esse direito, afirmando que o Regimento do STF prevalece sobre a lei. A competência legislativa dos tribunais é limitada a questões internas, mas deve respeitar direitos fundamentais, incluindo o contraditório e a ampla defesa. Assim, em dúvidas sobre a matéria processual ou interna, deve-se favorecer o entendimento que melhor garanta o devido processo legal.

27/11/2023

Em múltiplas recentes decisões, o Supremo Tribunal Federal tem se manifestado no sentido do descabimento de sustentações orais em recursos de agravos regimentais, mesmo quando interpostos contra decisões monocráticas que julguem o mérito ou não conheçam de determinados recursos ou ações, direito este que havia sido assegurado aos advogados pela lei 8906/94 (Estatuto da Advocacia e da OAB), após as modificações trazidas pela lei 14.365/221.

Assim é que, durante o julgamento do Agravo Regimental no HC 233.147/SP, o ministro Alexandre de Morais, fazendo referência a decisão semelhante proferida em precedente anterior, negou ao Defensor Público que ocupava a tribuna o direito a realizar sustentação oral em defesa de seu assistido, para buscar lhe assegurar o direito à celebração de acordo de não persecução penal2. Como fundamento, afirmou que o Regimento do STF tem força de lei, consistindo em lei específica sobre a matéria, e que, portanto, se sobreporia à lei Federal 8.906/94. A decisão foi unânime.

A compreensão de que o Regimento Interno do STF tem força de lei surge em 1994, por ocasião do julgamento colegiado do pedido de medida liminar deduzido na ADI 1105, por meio da qual a Procuradoria-Geral da República buscou a declaração de inconstitucionalidade de determinados dispositivos da lei Federal da Advocacia, dentre os quais o que garantia o direito da parte, por meio de seu advogado, sustentar oralmente as razões de qualquer recurso ou processo, após o prazo do Relator, pelo prazo de 15 minutos.

Embora se tenha declarado inconstitucional a íntegra do dispositivo em questão, certo é que a fundamentação do acórdão não deixa dúvida de que a inconstitucionalidade, ao final reconhecida3, em nada interferiria no direito de sustentar oralmente razões recursais em geral, e sim no momento de fazê-lo, se antes ou depois do voto do Relator, mesmo porque, o Código de Processo Civil então vigente já previa expressamente o direito à sustentação oral4, e não se tem notícia de que se tenha cogitado arguir a inconstitucionalidade da norma em questão.

Assim, ainda na oportunidade da apreciação da cautelar, não se pretendeu – e assim não se fez – negar ao advogado o direito de sustentar oralmente, mas apenas o direito de o fazer após o voto do Relator, afirmando-se, para tanto, que “a dialética processual pára (rectius: cessa) no momento do julgamento, para reabrir-se depois dele, em havendo recurso”5, bem como que “o contraditório se estabelece entre as partes, entre os que litigam”, não havendo, assim, “contraditório a se estabelecer oralmente com o magistrado”6.

Como dito, naquela ocasião, debruçou-se a Corte Constitucional sobre a força normativa de seu Regimento Interno, estatuindo que, embora consubstancie lei formal, o é em sentido material. Nessa linha de raciocínio, afirmou o ministro Paulo Brossard, Relator da ADI 1105, que “os tribunais têm competência legislativa; reduzida, sem dúvida, delgada ninguém o nega, circunscrita, é claro; mas quando a exercem nos limites da Constituição da República, a norma por eles editada, sob a denominação de regimento, em nada é inferior à lei, e esta em nada lhe é superior”7.

Com efeito, a independência do Poder Judiciário para legislar sobre seu funcionamento interno é corolário do princípio da separação dos Poderes. Por outro lado, não possuem os tribunais competência normativa para dispor sobre matéria processual.

Portanto, ao se afirmar que o Regimento do STF se sobrepõe ao Estatuto da Advocacia, obviamente somente se pode querer dizer que, dentro dos limites de sua competência normativa primária, o Supremo Tribunal Federal está autorizado a disciplinar as regras do seu próprio funcionamento interno, com observância das normas de processo e das garantias processuais das partes8.

A tarefa primordial é, assim, definir os contornos da zona cinzenta que separa a matéria regimental (de competência e funcionamento internos dos tribunais) da matéria processual, não raramente vinculada ao exercício do devido processo legal, do contraditório e da ampla defesa, assegurados pela Constituição da República. Neste último caso, não poderão os tribunais legislar, notadamente para limitar direitos e garantias fundamentais. Em outras palavras, “a questão, delicada questão, está em saber até onde pode ir a lei dispondo sobre o processo, e até onde pode chegar o regimento zelando pela autonomia de poder”9.

Expressão-chave para a discussão que tem lugar atualmente, a respeito do direito de realizar sustentação oral em sede de agravos regimentais, é “ato do julgamento”. Nesses termos, quando se está tratando da ordem dos julgamentos nos tribunais, aquilo que diga respeito ao procedimento vinculado ao preciso ato de julgar consiste em matéria de organização interna. Por outro lado, parece razoável afirmar que o direito ao contraditório e à ampla defesa a ser exercido até o momento do início do julgamento consiste em matéria processual, não podendo o Regimento Interno limitar os direitos estabelecidos em lei formal.

É de se observar ainda que os direitos fundamentais, por consagrarem os bens e valores jurídicos mais relevantes da comunidade política, possuem força expansiva (vis expansiva), que justifica a sua interpretação extensiva e generosa. Como consequência, as medidas restritivas de direitos – sejam elas decretadas pelo Poder Legislativo, pela Administração Pública ou pelo Poder Judiciário – devem ser objeto de interpretação restritiva, de modo a potencializar a aplicação dos direitos fundamentais nas relações sociais. Trata-se da aplicação da máxima in dubio pro libertate, reconhecida inclusive pela jurisprudência do STF10.

Como consignou Jorge Miranda, “na dúvida, os direitos devem prevalecer sobre as restrições11. Na mesma esteira, Gomes Canotilho e Vital Moreira averbaram que, “em caso de dúvida, deve prevalecer a interpretação que, conforme os casos, restrinja menos o direito fundamental, lhe dê maior proteção, amplie mais o seu âmbito, o satisfaça em maior grau”.12 Na literatura brasileira, Walter Claudius Rothenburg  sublinhou o mesmo ponto: “enquanto a interpretação dos direitos fundamentais deve ser ampliativa, a interpretação das restrições deve ser limitativa”.13

De tudo isso, é possível afirmar que a delimitação da competência legislativa dos tribunais, para além de estar vinculada ao ato de julgar, deve estar balizada pelos direitos fundamentais. Havendo, portanto, dúvida quanto a determinada matéria ser processual ou de organização interna, deve sempre prevalecer o entendimento mais consentâneo com a garantia do devido processo legal, aí incluídos o contraditório e a ampla defesa.

Assim, quanto à possibilidade de sustentação oral em agravos regimentais, não parece haver dúvida de que a lei Federal 8.906/94 deve prevalecer sobre o Regimento Interno do STF, não podendo ser por ele afastada.

_______________

1 - Art. 7º

(...)

§ 2º-B. Poderá o advogado realizar a sustentação oral no recurso interposto contra a decisão monocrática de relator que julgar o mérito ou não conhecer dos seguintes recursos ou ações:

I - recurso de apelação;

II - recurso ordinário;

III - recurso especial;

IV - recurso extraordinário;

V - embargos de divergência;

VI - ação rescisória, mandado de segurança, reclamação, habeas corpus e outras ações de competência originária.

2 - No mérito, a Primeira Turma do STF “negou provimento ao agravo regimental e fixou entendimento no sentido de que, nas ações penais iniciadas antes da entrada em vigor da Lei 13.964/2019, é viável o acordo de não persecução penal, desde que não exista sentença condenatória e o pedido tenha sido formulado na primeira oportunidade de manifestação nos autos após a data de vigência do art. 28-A do CPP”.

3 - Restaram vencidos os Ministros Marco Aurélio e Sepúlveda Pertence, entre outros fundamentos, por entenderem que a norma em questão versaria sobre matéria processual e não regimental.

4 - Art. 554. Na sessão de julgamento, depois de feita a exposição da causa pelo relator, o presidente, se o recurso não for de embargos declaratórios ou de agravo de instrumento, dará a palavra, sucessivamente, ao recorrente e ao recorrido, pelo prazo improrrogável de 15 (quinze) minutos para cada um, a fim de sustentarem as razões do recurso.

5- STF, ADI 1105 MC, Tribunal Pleno, Rel. Min. Paulo Brossard, julg. em 03/08/94, trecho do voto do Relator, p. 22.

6 - STF, ADI 1105 MC, trecho do voto do Min. Francisco Rezek, p. 2.

7 - STF, ADI 1105 MC, trecho do voto do Relator, p. 12.

8 - Art. 96. Compete privativamente:

I - aos tribunais:

a) eleger seus órgãos diretivos e elaborar seus regimentos internos, com observância das normas de processo e das garantias processuais das partes, dispondo sobre a competência e o funcionamento dos respectivos órgãos jurisdicionais e administrativos;

9 - STF, ADI 1105 MC, trecho do voto do Relator, p. 23.

10 - No RE 466.343, Tribunal Pleno, Rel. Min. Cesar Peluzo, julg. 03/12/2008, o STF averbou: “E é bom não esquecer que a garantia dos direitos individuais deve ser interpretada de maneira a ampliar, em benefício da liberdade, os preceitos de entendimento duvidoso, nem que, desde GAIO, se reconhece que em todos os assuntos e circunstâncias a liberdade é que merece maior favor. É por isso que, como acentua VIEIRA DE ANDRADE, o princípio in dubio pro libertate, cuja fórmula resume tópico ou elemento importante “para a tarefa de interpretação das normas constitucionais”, constitui emanação do princípio mesmo da dignidade da pessoa humana e, como tal, “deve considerar-se um princípio geral no domínio dos direitos fundamentais”, no sentido “de que as restrições aos direitos devem ser expressas ou, pelo menos, poder ser claramente inferidas dos instrumentos normativos aplicáveis”.

11 - Jorge Miranda. Direitos Fundamentais. Coimbra: Almedina, 2016, p. 470.

12 - J. J. Gomes Canotilho e Vital Moreira. Fundamentos da Constituição. Coimbra: Coimbra Editora, 1991, p. 143.

13 - Walter Claudius Rothenburg. Direitos fundamentais e suas características. Revista dos Tribunais – Caderno de Direito Tributário e Finanças Públicas, n. 29, 1999.

Fernanda Tórtima
Advogada criminal, Mestre em Direito Penal pela Universidade de Frankfurt am Main/Alemanha.

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