A inadimplência condominial, tem vieses muito diferentes das dívidas comuns porque afeta a uma gama de pessoas, a começar pelos demais condôminos, colaboradores diretos e indiretos, empresas prestadoras de serviços e ao contrário do que pensam muitos devedores, eles próprios são sobremaneira prejudicados, pois, os seus patrimônios são igualmente comprometidos com desvalorização de cerca de 30% e logicamente impacta a manutenção regular do empreendimento. A inadimplência condominial é uma das questões mais desafiadoras e enquanto o devedor não se enxergar como parte daquele ecossistema vivíssimo que é o condomínio ela continuará sendo objeto de novidades para solucioná-la o mais rápido possível.
E nessa linda do imediatismo surgiram as “garantidoras” de crédito, as quais, antecipam as receitas dos condomínios, tomando para si os débitos. Logicamente, elas, ao contrário dos condomínios sobrevivem de lucro e, portanto, anteciparão as receitas com déficit. Caro leitor, nenhuma empresa no mundo antecipará receitas, recebíveis sem desconto, portanto, sempre haverá, mais cedo ou mais tarde, em maior ou menor percentual, a contraprestação.
Um parêntese para citar que isso me trouxe à mente a terceirização de serviços como os de portaria e limpeza. O boom, em meados dos anos de 1998/2005, elas surgiram como a salvação para os altíssimos encargos trabalhistas e previdenciários a que todos os empregadores estão sujeitos e os condomínios mesmo não sendo pessoas jurídicas, também estão. E quando os síndicos perguntavam sobre essas empresas, tentávamos explicar o porquê dos empregadores se sentirem tão sufocados com os muitos encargos e as tais empresas “venderem” fiel cumprimento a todos os tais inúmeros encargos. Não estávamos convencidos de que seria um “bom” negócio. E passados poucos anos, inúmeras reclamações trabalhistas surgiram contra as empresas terceirizadas e os condomínios nos polos passivos respondendo subsidiariamente e na grande maioria das vezes sozinhos, porque as empregadoras desapareceriam. Eis a resposta do porquê elas pareciam a solução dos problemas num primeiro momento, mas depois confirmaram o óbvio: não há milagre e condomínios não somem, já empresas que não sérias...
E o tempo, sábio tempo, foi capaz de deixar no mercado apenas as empresas terceirizadas comprometidas que cumprem com seus deveres de empregadoras perante seus empregados, os órgãos públicos e os de contratadas, perante os seus contratantes: os condomínios.
Pois bem. Fechemos o parêntese, mas sigamos na mesma linha de que pessoas e empresas não fazem milagres e os quase 25 anos de atuação na área condominial cada dia mais confirmam isso e voltemos à questão das garantidoras.
Quando o síndico opta por tal contratação de saída alertamos que é de suma importância saber com quem seu condomínio estará contratando, pois, uma garantidora é a figura do “Fundo de Investimento Creditório ou de Direitos Creditórios - FIDCs”, o qual, é mantido pelos investidores ou cotistas e visam ao lucro com os investimentos que farão, o qual será dividido de acordo com suas cotas. Os FIDCs foram criados pela Comissão de Valores Mobiliários - CVM Instrução CVM n. 356/01, que atua como verdadeira fiscal deles e que devem ser regulados pelo Banco Central. Os fundos funcionam com rateios, onde todos os integrantes partilham as despesas e os lucros e devem ser administrados por instituições financeiras, tratando-se de uma securitização de recebíveis e que deve ser representada por um administrador. Por não constar do rol do artigo 44 do Código Civil, não é uma pessoa jurídica, embora, parte da doutrina entenda que é uma “sociedade”, portanto, pessoa jurídica. A formalização dos negócios se dará através de uma cessão de crédito, figura jurídica prevista no artigo 286 do Código Civil, pela qual o credor cede ao fundo de investimento creditório o quantum tem a receber, representado por títulos, documentos, mensalidades como vem ocorrendo com colégios particulares ou até mesmo por cotas condominiais. Essa transação também poderá ser formalizada por endossos.
Noutra banda existem empresas que se intitulam como “garantidoras”, mas nada são que empresas de cobranças extrajudiciais e judiciais e que antecipam as receitas dos condomínios, mas não realizam cessões de crédito e, portanto, não se sub-rogam no seu crédito. Assim, caberá aos condomínios cobrarem os devedores e quitar com as antecipações. E, por fim, existem as “facturings” que compram os créditos à vista com descontos, os quais, no mercado condominial giram em torno de 6% a 8% o percentual que será destinado à “garantidora”.
Importante dizer que para um condomínio chegar ao ponto de precisar antecipar receitas é porque não tem uma gestão atenta e eficaz às necessidades do empreendimento e embora, saibamos que ações judiciais tendem a demorar, justificar índices elevadíssimos de devedores é tarefa das mais complicadas, afinal, um dos deveres do síndico é o de cobrar o inadimplente e não deve delongar para fazê-lo. Os condomínios que antecipam receitas mensalmente incorrem num perigo ainda maior: recebem menos e a médio prazo terão que rever sua arrecadação, afinal, está evidente que a previsão orçamentária não atende às suas necessidades.
Deu para perceber que tais contratações são delicadas e complexas e exigem análise cautelosa e em que que pesem as inúmeras discussões acerca da voracidade e até mesmo irregularidades de algumas dessas “empresas” ao atuarem no mercado condominial, mormente quando não utilizam a cessão de crédito da forma como determinada pela legislação civil, bem como, sobre o quórum necessário para as suas contratações, o fato é que elas estão no mercado e nos cabe trazer à baila algumas reflexões e importantes orientações acerca dessas contratações:
- NENHUMA empresa resolverá os problemas do seu condomínio com mágica. Não há fórmulas milagrosas, portanto, cuidado com as falsas promessas. As redes sociais têm sido terreno fértil para o nascimento de especialistas e conhecedores de soluções mirabolantes para todos os ramos. Lembrem-se: para ser especialista além de profundo conhecimento no assunto, o profissional precisa ter experiência de atuação e estar legal e regular. Quem vende muita facilidade, possivelmente não é muito rigoroso no cumprimento da legislação;
- A solução imediata pode se tornar um grande problema no futuro: Pensemos na seguinte situação: Seu condomínio tem uma unidade devedora que é cobrada judicialmente e esse crédito é cedido a uma “garantidora”. E disso decorrem a depender da natureza jurídica de cada contratação e da “empresa” em si;
- O valor que virá para o caixa do condomínio certamente será menor que o efetivamente devido;
- Serão feitos contratos entre a garantidora e o condomínio que deverão ser analisados por advogados. Todos os dados da empresa, seus registros, enquadramentos (se facturing, se garantidora, se assessoria em cobrança etc.) devem ser avaliados e confirmados nos órgãos de registros respectivos, inclusive, na CVM. Não é nada incomum síndicos contratarem com empresas cujo objeto social é diverso daquele do serviço a ser prestado, por exemplo, o que impõe diligência acurada por profissional capacitado, pois cada contratação tem suas características e peculiaridades;
- Sendo formalizadas cessões de crédito, os devedores devem ser cientificados e o cessionário deve tomar o lugar do cedente nas cobranças, conforme artigos 286 e seguintes do Código Civil. Essa regra é essencial e na prática muito mitigada;
- Permanecendo o condomínio no polo ativo e caso venha a ter uma decisão desfavorável poderá ser condenado a pagar verbas de sucumbência;
- A unidade continuará devedora – perante o cessionário – e disso surge outro problema: Dentro do condomínio ela é ou não inadimplente se o valor entrou no caixa, mas o processo judicial continua? O titular da unidade poderá participar de assembleia? Se a ”garantidora”/cessionária não substitui o condomínio/cedente na ação judicial, mas o valor que o condomínio aceitou receber já está no seu caixa, o condômino pode exigir ser considerado adimplente? Nesse ponto, há decisão judicial entendendo que se o condomínio cedeu seu crédito e ainda permanece como autor, o processo deverá ser extinto;1
- Qual o quórum para aprovar tais contratações?
- Seguindo a normativa corretamente e vindo o cessionário para o lugar do cedente, conforme entendimento recente do STJ2, o crédito não perde a natureza de propter rem, portanto, o imóvel poderá ser penhorado, ainda que seja o único do devedor já que o débito continua sendo condominial mesmo que o condomínio não seja mais o autor do processo;
- Há relação de consumo entre as empresas que antecipam as receitas das cotas condominiais e os condomínios? Ou é estritamente de natureza civil? Diálogo das fontes?
- Não havendo cessão de crédito, geralmente o que ocorre com as assessorias em cobranças e antecipação não apenas da receita, mas das custas judiciais para que o condomínio promova a ação judicial e ressarça a empresa que prestou os serviços;
- Por fim, SOMENTE ADVOGADOS podem prestar serviços jurídicos e cobrar honorários advocatícios.
Podemos concluir que ainda pairam muitas dúvidas sobre esse assunto e, portanto, tudo deve ser muitíssimo analisado, juntamente com a comunidade condominial e profissional capacitado, afinal, dando certo ou errado seja qual for a contratação os maiores beneficiados (ou prejudicados) serão os condôminos e o síndico que não se atentar a todos esses detalhes, poderá ser responsabilizado.
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1 TJ/RJ – AI 00067032020158190000-RJ– 0006703-20.2015.8.19.0000, Relator Des. Ademir Paulo Pimental, j. 27/03/2015, 13/ª. Câmara Cível, publicado 30/03/2015)
2 REsp 1.570.452 – RJ – DJe 28/09/2020