Minha primeira monografia, para uma especialização em Direito Empresarial realizada no Mackenzie, tive como orientador o grande Ives Gandra da Silva Martins. O assunto: A desconsideração da personalidade jurídica. Na época o tema existia no Brasil, apenas em pequenos trechos dos livros de Rubens Requião e Fabio Ulhoa Coelho. A base da minha pesquisa era de direito comparado.
Essa teoria surgiu como forma de responsabilização legal para os abusos cometidos em nome da autonomia patrimonial. Sócios e administradores secavam os bens da sociedade e deixavam de pagar as dívidas da pessoa jurídica.
O tempo passou. Aquilo que era uma construção doutrinária, passou a existir no bojo de alguns textos legais (como o Código de Defesa do Consumidor e da lei Anti-Trust), trazendo a possibilidade de decisões que desconsideravam a personalidade jurídica quando usada em detrimento do credor, por abuso de direito, excesso de poder, infração legal, ato ilícito, violação de estatutos e contratos sociais. Para, após 20 anos de discussão, permitir que o novo Código Civil Brasileiro traga em seu artigo 50 a objetivação legal da desconsideração.
A desconsideração da personalidade jurídica é um incidente que suspende de forma temporária, a possibilidade de se manter a separação patrimonial entre a sociedade e seus sócios. Suspende o princípio da autonomia patrimonial, que obriga, em caso de eventual responsabilização, que o patrimônio do sócio não se misture com o patrimônio da sociedade.
Hoje quero falar sobre a “desconsideração inversa”, que torna possível responsabilizar a empresa pelas dívidas contraídas por seus sócios e tem como requisitos o abuso da personalidade ou a confusão patrimonial (art. 133, §2º do CPC e art. 50 do CC).
A teoria inversa não está prevista em lei. Mas, a doutrina e a jurisprudência são pacíficas quanto à sua aplicação como instrumento de repressão e fraude. A razão de ser é a mesma da desconsideração propriamente dita. Não há como interpretar o art. 50 do Código Civil e se considerar que o dispositivo só poderia ser usado para atingir o patrimônio do sócio em razão da dívida da sociedade e não o inverso.
Eis que o Código de Processo Civil, posteriormente, vem e supera essa barreira. O incidente da desconsideração da personalidade jurídica é incluída no CPC, como forma de intervenção de terceiro. Assim, a teoria inversa ganha o mesmo procedimento da teoria prevista no art. 50 do CC.
O incidente da desconsideração da personalidade jurídica pode ser aplicado em todas as fases do processo (conhecimento, cumprimento de sentença, execução em títulos executivos extrajudiciais). O processo será suspenso, e o réu será citado para manifestação em 15 dias, podendo requerer provas cabíveis (art. 135, CPC).
E o incidente também pode vir a ser dispensado, quando requerido diretamente na petição inicial. Neste caso o juiz determina a citação do sócio, ou da pessoa jurídica, para também integrarem o polo passivo da ação, garantindo-lhes o direito à ampla defesa e o devido processo legal.
Mesmo que ele não figure como litisconsorte no incidente, poderá intervir no feito na condição de assistente1.
Mas, devemos lembrar que, cabe ao credor demonstrar o alegado abuso da personalidade jurídica da empresa, por se tratar de fato constitutivo de direito.
Não basta, por exemplo, a mera identidade de sócios, para caracterizar grupo econômico. Será necessária a demonstração da efetiva comunhão de interesses para atuação conjunta das empresas dele integradas, com abuso da personalidade, desvio de finalidade ou confusão patrimonial.
Mas, evidencias como similitudes entre as empresas, como: atuação no mesmo ramo de atividade, mesmo endereço, empresas constituídas pelos devedores após a propositura da execução. Essas são evidências mais consistentes para o pedido.
No âmbito do Direito de Família, a Min. Nancy Andrighi2 já aplicou desconsideração inversa, para proteger o direito do cônjuge em partilha. No voto ela explica que “o cônjuge esvazia o patrimônio pessoal, enquanto pessoal natural, e o integraliza na pessoa jurídica, de modo a afastar o outro da partilha.
Também há situações em que, as vésperas do divórcio ou da dissolução da união estável, o cônjuge ou companheiro efetiva sua retirada aparente da sociedade, transferindo sua parte a outro membro da empresa, ou a terceiros, também com o objetivo de fraudar a partilha.”
Sob esses fundamentos a Ministra aplicou a desconsideração inversa para a proteção do cônjuge em partilha, assim como em fixação de verba alimentar.
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1 REsp. 19806007/DF, 9/8/22, Min. Rel. Marco Aurélio Bellizze, reconhece que recurso, sob fundamento de desconsideração de personalidade jurídica inversa, poderá interferir não apenas na esfera jurídica do devedor (decorrente de eventual direito de regresso da sociedade em desfavor ou do reconhecimento de seu estado de insolvência. Mas, também na relação jurídica material, estabelecida entre os sócios do ente empresarial, como porventura a ingerência na affectio societatis. Com isso reconhece o interesse e a legitimidade do sócio devedor para figurar como polo passinho no incidente, para recorrer das decisões, como parte vencida, ou para questionar sua presença ou não nos casos concretos.
2 REsp. 1236916.