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O TCU e o modelo das três linhas

A lei 14.133/21, nova lei de Licitações e Contratos Administrativos, reconhece as "três linhas" como estrutura integrativa para gestão de riscos e controles em organizações públicas e privadas, enfatizando a independência da auditoria interna e a colaboração entre os atores da governança.

23/11/2023

A lei 14.133/21, Nova lei de Licitações e Contratos Administrativos – NLLCA, entre tantas inovações introduzidas no campo da governança, especialmente do controle das contratações públicas, afirmou a existência jurídica das denominadas “três linhas” (anteriormente chamadas “três linhas de defesa”), cujo antecedente seria o controle sistêmico, já conhecido há algumas décadas e presente na legislação brasileira, podendo ser citado como exemplo dispositivo contido no decreto-lei 200/67.

O modelo das três linhas foi concebido pelo Institute of Internal Auditors - IIA1 e socializado por intermédio da “2013 Guidance”, atualizado pelo “Three Lines Model” de 2020. Representa uma proposta estruturante, sistêmica e integrativa para gestão de riscos e controles internos para organizações privadas e públicas, cujo propósito é facilitar a realização dos objetivos institucionais e promover uma boa governança, direcionada a responsabilidades, estruturas e alocação de recursos.

O IIA propôs uma aplicação do modelo ao setor público, destacando seis princípios: Governança, Funções do corpo diretivo, Gerenciamento e funções de primeira e segunda linha, Funções da terceira linha, Independência da terceira linha, Criação e proteção de valores. Nos três últimos, destaca-se a garantia de que a terceira linha, representada pela auditoria interna, possa operar independentemente, portanto, sem interferências da gestão gerencial, e que se reporte diretamente à mais alta autoridade decisória da organização. Também importante, no último princípio, a afirmação da necessária comunicação, colaboração e cooperação entre todos os atores da governança.

Obviamente, o modelo concebido pelo IIA foi adaptado por nossos legisladores e, com tal característica, agregou as vantagens do modelo importado, bem como formalizou alguns desafios, cujas virtudes e defeitos só serão percebidos nos próximos anos, quando a lei estiver efetivamente implementada.

O Art. 169 da NLLCA reconhece como primeira linha, ou controle primário, aquele realizado por servidores públicos, agentes de licitação e as autoridades vinculadas à estrutura de governança do órgão. A segunda linha é integrada pelas unidades de assessoramento jurídico e de controle interno do próprio órgão. A terceira linha de defesa abrange tanto o órgão central de controle interno da Administração quanto os Tribunais de Contas.

Importante perceber que, na perspectiva dos elaboradores do modelo das três linhas, não haveria a necessidade de se impor uma estrutura organizacional segmentada ou uma “separação rígida” entre as linhas. Contudo, na opção adotada pela NLLCA para as contratações públicas brasileiras, é possível que o formalismo prevaleça, gerando mesmo um sequenciamento de operações, um fluxo, ou mesmo instâncias hierarquizadas de controle, especialmente em relação à terceira linha, já que a primeira e a segunda linhas atuam, naturalmente e necessariamente, em sinergia.

A própria inclusão dos Tribunais de Contas na terceira linha não deixa de causar inicial estranheza, na medida em que o modelo foi, originalmente, concebido para promover eficiência na atuação do controle interno das organizações e, como é cediço, as Cortes de Contas representam o controle externo. Mesmo no documento elaborado pelo Institute of Internal Auditors, que propõe a aplicação do modelo das três linhas ao setor público (Applying the Three Lines Model In the Public Sector), o máximo que admite é a atuação de “auditores externos”, que têm atuação diversa daquela desempenhada pelos Tribunais de Contas.

Há quem veja, no dispositivo supracitado da lei 14.133/21, limitação à competência e à legitimidade de ação dos Tribunais de Contas, na medida em que o legislador infraconstitucional teria alocado sua atuação como terceira linha, e, se adotada um sequenciamento formal, poderia restringir sua importante missão de aprimoramento da Administração Pública em prol da sociedade, fundamentada diretamente no texto da Constituição Federal.

Contudo, o TCU tem avaliado de forma mais positiva o Art. 169 da NLLCA, tomando-o como uma oportunidade de disciplinar condutas de representantes/denunciantes que fazem uso inadequado do direito de ação no âmbito administrativo. No Acórdão 572/22 - TCU – Plenário, sob a relatoria do Ministro Vital do Rêgo, ficou assentado, com fundamento no princípio constitucional da eficiência e nos dispositivos da NLLCA, visando evitar “duplos esforços de apuração [...] em desfavor do erário e do interesse público”, que o acionamento dos sistemas de controle (interno e externo) deve observar o modelo das três linhas, ou seja, deve-se acionar primeiramente o órgão/entidade que representa a primeira e a segunda linhas de defesa e somente, posteriormente, o Tribunal de Contas, representante da terceira linha.

No mesmo sentido, seguiram os Acórdãos 1.061/22-TCU-Plenário, relatoria do Ministro Aroldo Cedraz; 1.089/22-TCU-Plenário, relatoria do Ministro Antônio Anastasia; 1.123/22-TCU-Plenário, relatoria do Ministro Aroldo Cedraz, 1.882/22-TCU-Plenário, relatoria do Ministro-Substituto Marcos Bemquerer.

Mais recentemente, uma nova decisão do TCU reforçou a diretriz e aprofundou a tendência decisória que deve ser adotada nos próximos anos. No Acórdão 10038/23 - Segunda Câmara, novamente sob a relatoria do Ministro Vital do Rêgo, uma empresa de consultoria e assessoria foi multada por litigância de má-fé, diante da configuração de atuação temerária em face o Tribunal, por conduta considerada exorbitante do que é adequado ainda que na defesa de interesses legítimos.

O objeto da representação era justo, tanto que foi acatado em impugnação apresentada junto ao órgão que promoveu o certame, contudo, a representante desejava que o TCU também se manifestasse, ao mesmo tempo, a respeito do mesmo tema. O que se depreende é que o representante desejava ter, simultaneamente, suas questões avaliadas pelas instâncias do controle interno (primeira e segunda linha) e chanceladas pelo controle externo (terceira linha).

A manifestação do TCU foi esclarecedora e didática, mas também contundente. Destarte, mesmo que lhe caiba, inquestionavelmente, a verificação da legalidade, da eficácia/eficiência, da economicidade nas contratações públicas federais, tais ações são, geralmente, exercidas a posteriori. Logo, sendo identificadas impropriedades ou irregularidades nos documentos editalícios as mesmas devem ser enfrentadas via questionamento, impugnação, ou outro instrumento contestador cabível, apresentados junto ao órgão ou entidade promotora da licitação, sendo lógico que o acionamento da Corte de Contas deve se dar apenas em caso de desprovimento ou omissão. No caso específico a instância administrativa decidiu favoravelmente ao requerente, que mesmo assim manteve o processo direcionado ao TCU.     

Tendo em vista que não há fundamentação explícita para um “curso forçado” restritivo do acionamento concomitante da Corte de Contas, em fases nas quais a entidade contratante pode, perfeitamente, solucionar desacertos de diversos graus, é que o Art. 169 da NLLCA tem ganhado relevo especial, para o enfrentamento de tais situações.

O modelo das três linhas, ao ser recepcionado expressamente pela lei 14.133/21, não pode ser desconsiderado. É verdade que o sistema de linhas não cabe como rotina, aplicável em qualquer situação. Logo, o TCU não está impondo barreiras ao acesso de sua jurisdição, mas pretende promover o acionamento racional, responsável e ético, que otimize seus esforços fiscalizatórios diante dos limitados recursos que dispõe, evitando e repelindo os citados “duplos esforços de apuração”.

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1 Trata-se de uma associação profissional internacional. O IIA oferece conferências educacionais e desenvolve padrões, orientações e certificações para a profissão de auditoria interna.

Giussepp Mendes
Advogado especialista em direito administrativo público.

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