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Lei 14.711/23 (lei das garantias): primeiras impressões

A lei 14.711/23, chamada de Marco Legal das Garantias, regula crédito, garantias e recuperação de crédito visando impulsionar a economia. No entanto, suscita preocupações de exclusão social por instituições de defesa do consumidor, apesar de seu objetivo de reduzir riscos e ampliar a competição nos setores financeiro, imobiliário e registral.

23/11/2023

Foi sancionada no dia 30/10/23 a lei 14.711/23, publicada no DOU de 31/10/23, conhecida como Marco Legal das Garantias ou lei das Garantias.1 A nova legislação dispõe sobre as regras relativas ao tratamento do crédito e das garantias e às medidas extrajudiciais para recuperação de crédito.

De iniciativa do Poder Executivo, o projeto de lei foi proposto “no contexto de crise econômica decorrente da pandemia da Covid-19, sob promessa de ser um instrumento para fomento da economia do país, por meio do reforço de segurança e facilitação no uso de garantias para concessão de crédito a pessoas físicas e jurídicas.”2

Objetiva-se, com a nova legislação, que se alcance uma redução do risco das operações de crédito e um incremento da concorrência, especialmente para os setores financeiro, imobiliário e registral. Entretanto, instituições de defesa dos consumidores já externalizaram relevantes preocupações com os efeitos do Marco Legal das Garantias, especialmente dado o seu potencial de exclusão social de pessoas com maior vulnerabilidade.3      

I. A execução extrajudicial dos créditos garantidos por hipoteca

Dentre as inovações legislativas merece destaque inicial a possibilidade de execução extrajudicial dos créditos garantidos por hipoteca, que consiste em expediente destinado a implementar práticas de desjudicialização, de modo que procedimentos até então realizados exclusivamente junto ao Poder Judiciário passam a ser efetivados na seara extrajudicial. Trata-se de uma tendência, à exemplo do que já acontece no divórcio, inventário e partilha, usucapião e adjudicação compulsória.

A justificativa do projeto de lei apresentado à Câmara dos Deputados indica que: “Em relação à hipoteca, as alterações propostas objetivam recuperar o uso desse instrumento como modalidade de garantia de financiamento imobiliário. Embora a hipoteca seja o instrumento mais usado em outros países, no Brasil o mecanismo é usado em apenas 6% das operações de crédito imobiliário. Trata-se de situação derivada sobretudo da insegurança jurídica que envolve a excussão hipotecária. As previsões normativas contidas no decreto-lei 70, de 21 de novembro de 1966, possuem falhas e estão desatualizadas, o que implica que a execução extrajudicial hipotecária seja frequentemente atualizada. Com o intento, portanto, de restabelecer o uso da hipoteca no mercado brasileiro, propõe-se: i) a homogeneização de procedimentos da hipoteca com os procedimentos à alienação fiduciária; e ii) o estabelecimento de novo processo de sua execução extrajudicial, com a inclusão de capítulo sobre a matéria na lei 9.514/97, e com a revogação de dispositivos do decreto-lei 70 de 1966.”4

Pela nova lei, a execução extrajudicial de créditos garantidos por hipoteca poderá ser realizada junto ao Oficial do Registro de Imóveis do local em que se situa o bem hipotecado. Para tanto, exige-se o vencimento da dívida hipotecária e que o credor ou seu cessionário solicitem a intimação pessoal do devedor e de eventual terceiro hipotecante, seus representantes legais ou procuradores para efetuarem o pagamento do débito em até quinze dias.

A ausência de purgação da mora resultará no início do procedimento de excussão extrajudicial do bem dado em hipoteca, com a prévia averbação na matrícula do imóvel. O leilão público, que poderá ser efetivado eletronicamente, será realizado em até sessenta dias, com a intimação do devedor e do terceiro hipotecante das datas, horários e locais de sua ocorrência, facultando-se a remição da execução até a alienação, desde que ocorra a quitação da integralidade do débito, das despesas de cobrança e leilão.

Uma vez concluída a venda, incumbirá ao Tabelião de Notas lavrar a ata notarial de arrematação, contendo as informações relativas à intimação do devedor e do terceiro hipotecante e dos autos do leilão, que consistirá em título hábil à transferência da propriedade junto ao Registro de Imóveis competente.

A possibilidade, portanto, de ser realizada essa modalidade de execução demonstra o reconhecimento da importância do crédito e da função por ele desempenhada para o desenvolvimento econômico e social, especialmente para se assegurar o atingimento, por exemplo, das políticas públicas destinadas à obtenção da moradia. Todavia, o acesso ao crédito, imprescindível ao processo econômico, acaba por acarretar grandes riscos à pessoa que o concede.

A nova legislação contribui para a redução dos riscos daquele que concede o crédito, que espera, em última análise, a manutenção do caráter dinâmico e a segurança jurídica inerente às relações contratuais. Isso foi demonstrado, por exemplo, com a realização de um procedimento rápido e eficaz para a excussão extrajudicial do crédito garantido pela hipoteca, que poderá ser finalizado em até sessenta dias, contados da averbação no registro imobiliário. As comunicações, com a finalidade de imprimir celeridade, serão feitas nos endereços indicados nos contratos ou nos que foram posteriormente indicados, podendo, inclusive, serem concretizadas por e-mail.

De outro lado igualmente foram assegurados os direitos do devedor e de eventual terceiro hipotecante que, cientes da existência do débito e da garantia hipotecária, serão intimados das etapas do procedimento, tendo a possibilidade de remir a execução até a venda em leilão. Além disso, foi disciplinada a possibilidade de o credor hipotecário aceitar lance em leilão de valor equivalente a, no mínimo, metade da avaliação.

Nesse cenário denota-se que a execução extrajudicial de crédito com garantia de hipoteca representa instrumento hábil para aumentar a utilização dessa garantia, fazendo com que, por exemplo, questões relacionadas ao financiamento imobiliário sejam incrementadas de modo a que se atinja o direito social à moradia e, sobretudo, o atingimento do objetivo da República Federativa do Brasil, consistente na garantia do desenvolvimento nacional. Trata-se, portanto, de expediente destinado ao incremento do uso da hipoteca em prol de uma redução do risco das operações para os investidores, certo de que terão seus direitos assegurados em eventual inadimplência, com a possibilidade de recuperação célebre dos créditos, e aos devedores, que igualmente terão seus interesses tutelados.

Mas os efeitos das múltiplas garantias sobre um único imóvel familiar, especialmente se caracterizado como um bem de família, preocupam o movimento de defesa dos consumidores. A ruína em massa de uma parcela significativa de agentes do mercado pode resultar no efeito inverso ao que se pretendia com a edição do Marco Legal das Garantias. Lembre-se a crise imobiliária norte-americana de 2008, que provocou uma recessão global em 2009. As promessas de redução de juros, como efeito do incremento da segurança das contratações, nem sempre são efetivadas, o que recomenda não apenas cautela, mas também o incremento das práticas de concessão de crédito responsável.

II. As mudanças no sistema de protesto de título e documento de dívida

O serviço relativo ao protesto de títulos e outros documentos representativos de dívida são de suma importância para as relações negociais. Trata-se de atividade privativa do Tabelião de Protesto de Títulos, a quem incumbe assegurar a autenticidade, publicidade, segurança e eficácia dos atos, dentre os quais se destacam a obrigação de realizar a conferência dos requisitos formais e a inexistência de vícios nos títulos e documentos de dívidas. Eventual irregularidade impedirá o registro do protesto, não sendo, todavia, de responsabilidade do Tabelião averiguar a ocorrência de prescrição ou caducidade.

O protesto poderá ser tirado nas hipóteses de falta de pagamento, aceite ou de devolução. Para fins falimentares, somente serão passíveis de protesto o título ou documento de dívida de responsabilidade das pessoas sujeitas às consequências da legislação falimentar, nos termos do parágrafo único do art. 23 da lei 9.492/97.

Pode-se afirmar que se está diante de procedimento constituído por inúmeras etapas dotadas de requisitos formais de observância obrigatória, compreendidas inicialmente pela apresentação do título ou documento da dívida perante o Tabelião, que pode, inclusive, ser realizado de forma digital, passando pela intimação do devedor e entrega do numerário ao credor caso quitado o débito, até a lavratura do protesto, na hipótese de inadimplemento.

A lei 14.711/23 alterou o sistema de registro de protesto, implementando a possibilidade de o apresentante formular proposta de solução negocial prévia ao protesto. Tão logo a receba, o Tabelião comunicará o devedor acerca da proposta formulada, que terá o prazo de até trinta dias de resposta, conforme estipulação feita pelo apresentante.

A apresentação da proposta de solução negocial acarreta a interrupção do prazo prescricional, desde que frustrada a negociação prévia e conversão em protesto. Ou seja, a não aceitação da proposta de solução negocial acarreta a conversão em protesto, sendo tais atos compreendidos como único para fins de cobrança de custas e emolumentos.

A nova lei inseriu a possibilidade de o credor permitir que o Tabelião receba o crédito com a concessão de descontos.

Nesse cenário evidencia-se a presença de expediente destinado a aproximar as partes, evitando-se os efeitos maléficos do protesto tanto para o devedor, que passa a ser inserido no cadastro de maus pagadores, como para o credor, que certamente necessitava do ingresso dos recursos para cumprir suas obrigações, de modo a que se possa sustentar que o protesto repercute significativamente na economia como um todo. Além disso, trata-se de instrumento voltado à desjudicialização, que busca, por intermédio de práticas conciliatórias, evitar o ingresso de ações junto ao Poder Judiciário.

Inovação legislativa destinada a facilitar a comunicação com o devedor também está presente na possibilidade de o Tabelião de Protesto fazer uso não apenas do envio de carta pelos Correios, mas também da correspondência eletrônica ou de mensagens instantâneas, dentre outros expedientes, desde que lícitos. Todavia, a fim de trazer segurança aos envolvidos, a lei determina que a intimação do devedor deverá conter seu nome e endereço, a identificação da dívida, o prazo para cumprimento, com o número do protocolo e do valor a ser pago e será considerada cumprida após a comprovação de seu recebimento por meio de confirmação ou outro meio eletrônico equivalente. Decorridos três dias sem a prova do recebimento, a intimação deverá ser novamente realizada por preposto do Tabelião, aviso de recebimento ou documento equivalente, realizando-se por edital na hipótese de ausência de retorno em até sete dias.

As novas tecnologias passam a ser utilizadas em benefício do credor, que busca o recebimento do crédito ou a obtenção de prova segura da inadimplência. Resguarda-se o direito de o devedor ser cientificado com brevidade da existência do débito a ser protestado, ocasião em que poderá adimpli-lo, renegociá-lo ou até mesmo questionar sua existência ou exigibilidade junto ao Poder Judiciário. Da mesma forma, inseriu dispositivos tendentes ao asseguramento da intimação, estabelecendo requisitos para o cumprimento da notificação, os quais, caso não sejam atendidos, resultará na intimação pessoal ou pelos Correios e, em última análise, por edital, que será afixado no Tabelionato de Protestos e publicado no site da Central Nacional de Serviços Eletrônicos Compartilhados, sem prejuízo de outras formas.

O Marco Legal das Garantias representa um significativo avanço no sistema de protesto de título e documento de dívidas, mas não é isento de críticas (e mesmo riscos) em uma perspectiva de proteção aos agentes de mercado dotados de certa vulnerabilidade financeira, econômica ou social. É fundamental, para a efetividade dos novos procedimentos implementados pela lei 14.711/23 e a tutela de direitos e garantias fundamentais, que, no momento de concessão do crédito com garantias passíveis de execução extrajudicial, os mutuários sejam devidamente esclarecidos e bem informados acerca das peculiaridades destas modalidades de contratação.

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1 BRASIL. Lei 14.711, de 30 de outubro de 2023. Dispõe sobre o aprimoramento das regras de garantia, a execução extrajudicial de créditos garantidos por hipoteca, a execução extrajudicial de garantia imobiliária em concurso de credores, o procedimento de busca e apreensão extrajudicial de bens móveis em caso de inadimplemento de contrato de alienação fiduciária, o resgate antecipado de Letra Financeira, a alíquota de imposto de renda sobre rendimentos no caso de fundos de investimento em participações qualificados que envolvam titulares de cotas com residência ou domicílio no exterior e o procedimento de emissão de debêntures. DOU 31/11/23.

2 CABEDO DA SILVA, Gabriela Gusmão. Novo marco legal: reflexos da lei 14.711 para o sistema de garantias brasileiro. Consultor Jurídico. Publicado em 13/11/23. 

3 Cita-se, exemplificativamente, o Instituto Brasileiro de Política e Direito do Consumidor – BRASILCON, que editou Nota Técnica sobre o Marco Legal das Garantias, em 03/11/23.

4 BRASIL. EMI nº 242/2021 ME, de 8/11/2021. Disponível em: https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra?codteor=2112509. Acesso em: 31/10/23.

José Roberto Trautwein
Doutorando e mestre no Programa de pós-graduação em Direitos Fundamentais e Democracia. Especialista em Direito Empresarial. Pós-graduado em Direito Constitucional. Atuação nas áreas de Direito Civil, Direito Comercial, Direito das Sucessões e Direito das Locações. Advogado do Escritório Professor René Dotti.

Laís Bergstein
Advogada e Doutora em Direito pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul, com ênfase em direito do consumidor e defesa da concorrência.

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