O dia 20 de novembro, dedicado à consciência negra, foi institucionalizado como data de luta contra o racismo. Em 1971, o Grupo Palmares iniciou o movimento que dizia “não ao 13 de maio” por entender que a liberdade não foi concedida pela lei Áurea, já que esta aboliu a escravidão dando aos negros escravizados a qualidade de pessoas livres, mas não garantiu aos ex-escravizados direitos básicos como moradia, trabalho e educação.
O grupo pioneiro defendia a necessidade de se entender a liberdade como uma conquista e, por isso, escolheu o dia 20 de novembro, dia da morte de Zumbi dos Palmares, para simbolizar a luta negra pela liberdade. Zumbi foi líder do quilombo dos Palmares, localizado na Serra da Barriga em Alagoas, considerado o maior símbolo de resistência dos escravizados ao governo colonial e à escravidão.
Essa data foi institucionalizada para valorizar a reflexão sobre a história da negritude e a luta antirracista. É no dia 20 de novembro que dedicamos nossa consciência, ou seja, nosso pensamento, à negritude, à cultura afro-brasileira e ao reconhecimento de que a história do Brasil também foi construída por heróis negros e negras que – apesar da história contada – não se limitaram à condição de “escravos”. Este dia não é apenas de celebração à luta e resistência dos escravizados, mas é, principalmente, um marco para nos lembrar que a cidadania não lhes foi dada junto da assinatura da abolição e que, por isso, e desde então, os negros lutam por políticas públicas que promovam a igualdade racial.
Neste contexto, em 1995, ocorreu a marcha contra o racismo pela Igualdade e a vida, na qual o movimento negro unificado pautou a necessidade de se abordar a cultura produzida pelo povo negro nas escolas. Em 2003, foi promulgada a lei Federal 10.639/03, conhecida como lei da educação antirracista, responsável por alterar as diretrizes e bases da educação nacional, ao estabelecer a obrigatoriedade do ensino sobre história e cultura afro-brasileira nos estabelecimentos de ensino fundamental e médio, oficiais e particulares. Pela lei, o conteúdo programático do ensino sobre história e cultura afro-brasileira deve ser ministrado no currículo escolar, com a inclusão do “estudo da história da África e dos africanos, a luta dos negros no Brasil, a cultura negra brasileira e o negro na formação da sociedade nacional, resgatando a contribuição do povo negro nas áreas social, econômica e política pertinentes à história do Brasil”.
A promulgação dessa lei foi resultado direto da reivindicação do movimento negro do Brasil ao longo do século XX, que apontava para a necessidade da valorização da história e cultura dos afro-brasileiros. A obrigatoriedade do ensino sobre história e cultura afro-brasileira está diretamente vinculada ao direito à educação de qualidade, que não se confunde com o direito ao estudo, pois se trata do direito à educação como via de formação da cidadania responsável e da construção de uma sociedade justa e democrática, de acordo com o parecer CNE 003/04, elaborado pela relatora Petronilha Beatriz Gonçalves e Silva, que orienta sobre a implementação da lei 10.639/03.
Para o alcance dos efeitos pretendidos pela lei, entende-se que o Estado deve desenvolver ações afirmativas e garanta condições físicas, materiais, intelectuais e afetivas para a implementação da lei. As reivindicações da comunidade negra pleiteavam políticas de ações afirmativas para ressarcir os descendentes de africanos negros dos danos psicológicos, materiais, sociais, políticos e educacionais sofridos sob o regime escravista e nos pós abolição, perpetuado por meio das políticas de branqueamento da população, da manutenção de privilégios exclusivos para determinados grupos e da concentração do poder de governar e de influir na formulação de políticas nas mãos dos mesmos privilegiados. Essas reivindicações indicavam que o ressarcimento necessário deveria ocorrer por meio de políticas de reparação, de reconhecimento e valorização, e ações afirmativas.
As políticas de reconhecimento e valorização implicam na desconstrução do mito da igualdade racial, diante da constatação de que as desigualdades históricas e estruturais causaram prejuízos para os negros em relação a outros grupos da população brasileira. Ao mesmo tempo, exige-se a valorização da diversidade, das histórias e culturas, que devem, portanto, compor os currículos da educação básica.
A condução das ações de implementação da lei 10.639/03 deve seguir os três princípios estabelecidos pelo parecer CNE 003/04: (i) Consciência política e histórica da diversidade; (ii) fortalecimento de identidades e de direitos; e (iii) ações educativas de combate ao racismo e discriminações. Com base nesses princípios foram feitas diversas determinações, a partir das quais podemos reconhecer quais conteúdos e atividades podem ser desenvolvidos pelos implementadores da lei, para o alcance do sucesso esperado.
Por outro lado, as políticas de reparação se consolidam a partir das iniciativas de combate ao racismo e das ações do Estado que buscam romper com o agravamento das desigualdades, de modo a garantir o ingresso e permanência da população negra na educação escolar. Nesse contexto, em 2012 foi promulgada a Lei de Cotas que estabeleceu a reserva de no mínimo 50% das vagas das instituições federais de ensino superior e técnico para estudantes de escolas públicas, das quais percentual mínimo correspondente ao da soma de pretos, pardos e indígenas na sociedade, segundo o IBGE, são reservadas para estes grupos.
Ano passado, em 2022, a Lei de Cotas completou 10 anos, ocasião na qual foram avaliados os resultados obtidos, na década, em relação à diminuição das desigualdades de acesso e composição do corpo estudantil das universidades. Diante da avaliação dos anos de vigência da lei, constatou-se o que já percebíamos a olhos nus: as universidades se pintaram de povo.
No decorrer dos anos as instituições de ensino superior federais, e posteriormente as estaduais, foram progressivamente adotando a política de cotas. Na medida em que se avançava a implementação, aumentava a quantidade de alunos pretos, pardos e indígenas oriundos de escolas públicas. Na última terça-feira, 14 de novembro, foi sancionada pelo presidente Lula, a lei 14.723/23, que atualiza a Lei de Cotas no ensino federal, dentre as principais mudanças trazidas, estão a redução da renda familiar para reservas de vagas, a inclusão de estudantes quilombolas como beneficiários das cotas, a reserva de vagas nos programas de pós-graduação stricto sensu (mestrado e doutorado), e o modelo de concorrência.
Antes as pessoas só concorriam às vagas destinadas às cotas, como ocorria mesmo que tivessem pontuação suficiente na ampla concorrência. Agora, com a nova lei, primeiro são observadas as notas da ampla concorrência e depois as vagas reservadas para cotas. Assim, se um aluno com direito à cota obtiver nota para ingressar na instituição de ensino pela ampla concorrência, ele não preencherá a vaga reservada pela política de cotas, possibilitando que outro cotista a preencha.
A partir da abordagem da existência e produção de efeitos da lei da educação antirracista e da política de Cotas, avaliamos a importância do Estado criar mecanismos para a redução das desigualdades raciais e, principalmente, materiais, uma vez que a violência, contra afro-brasileiros e indígenas, institucionalizada no passado, ainda se faz presente hoje, na realidade material. Ao mesmo tempo, o sucesso das políticas públicas que visam reparação, reconhecimento e valorização da identidade, da cultura e da história dos negros brasileiros, depende do trabalho conjunto, de articulação entre processos educativos escolares, políticas públicas, movimentos sociais, visto que as mudanças éticas, culturais, pedagógicas e políticas nas relações étnico-raciais não se limitam ao ambiente escolar e acadêmico.
Sabemos que a implementação da lei da educação antirracista nas bases curriculares de ensino é de responsabilidade das secretarias de ensino, dos sistemas de ensino, das mantenedoras, das coordenações pedagógicas dos estabelecimentos de ensino e dos professores, enquanto a implementação da lei de cotas é de responsabilidade das instituições de nível superior. Por outro lado, combater o racismo, a desigualdade social e racial, e avançar com a reeducação das relações étnico-raciais não são tarefas exclusivas das escolas e universidades, as quais podem, e devem, recorrer ao apoio e colaboração das comunidades e de estudiosos do movimento negro.
No âmbito da lei 10.639/03, a implementação do ensino de história e de cultura afro-brasileira pode ocorrer por diferentes meios, pela realização de projetos de diferentes naturezas, relacionados a diferentes disciplinas e conteúdos pedagógicos. Assim, garantir a produção dos efeitos esperados pelo legislador, não é de responsabilidade apenas do professor em sala de aula, é preciso que os órgãos executores e administrações de cada sistema de ensino e escolas dos Estados, do Distrito Federal e dos municípios, adotem estratégias, definam planos e elaborem materiais didáticos para a execução das diretrizes do parecer CNE 003/04.
Paralelamente, a divulgação e estudo da participação dos africanos e de seus descendentes na história e na construção econômica, social e cultural do Brasil é um dever coletivo, uma obrigação de todos. Pautar a história dos afro-brasileiros e a aplicação de leis como as abordadas neste artigo, tem como objetivo contribuir com a construção de um pensamento coletivo por uma sociedade igualitária. Esse processo depende da percepção da existência do outro, e se perceber é tomar consciência. O dia 20 de novembro é dedicado exatamente para isso.
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AGÊNCIA DE NOTÍCIAS DA CÂMARA DOS DEPUTADOS. Entra em vigor lei que atualiza sistema de cotas no ensino federal. 2023. Disponível em: . Acesso em: 17 nov. 2023.
BAPTISTA, Rodrigo. Dia da Consciência Negra, 50 anos: liberdade conquistada, não concedida. Agência Senado. Brasília, 2021. Disponível em: https://www12.senado.leg.br/noticias/infomaterias/2021/11/dia-da-consciencia-negra-50-anos-liberdade-conquistada-nao-concedida
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