Nos últimos tempos tem sido bastante aguçada a discussão sobre o uso da Inteligência Artificial nos mais diversos segmentos. E no campo dos Direitos Autorais não seria diferente.
Afora certo determinismo tecnológico que se vê aqui e acolá (a tecnologia como “última tábua” de salvação), o tema merece a análise científica e ponderada que todo cientista (sem “parte” ou vinculado à Ciência e à verdade), deve fazer. Digo isso porque muitos questionam o meu posicionamento em relação ao tema, como se isso fosse possível ou relevante científica e juridicamente. Há caminhos sem volta. O que deve sempre ser analisado é o espaço das políticas públicas e o caráter regulatório do Direito.
Tudo faz lembrar do mestre de todos os autoralistas brasileiros, o professor José de Oliveira de Ascensão. Já no início da década de dois mil, o pesquisador lusitano falava da sua preocupação a respeito de “um Direito do Autor sem autor”.
Curiosamente, boa parte das discussões travadas em torno da temática de Direitos Autorais e Inteligência Artificial se dão no campo estrito dos direitos patrimoniais de autor, ficando, mais uma vez, os direitos morais (como o direito à autoria e o de ser mencionado como autor) como o “filho pobre” e esquecido dos Direitos Autorais.
Na sociedade da informação (Castells) e com a Inteligência Artificial esta situação se torna mais sensível. Poderemos ter então Direitos Autorais “sem autor”? É preciso prudência, pois a discussão está apenas começando e o caminho é longo.
Autores, a exemplo do professor Christophe Geiger, destacam o caráter antropocêntrico dos Direitos Autorais. De outro modo, vale enfatizar que a autoria é restrita aos seres humanos. Isso é assim há muito tempo na organização jurídica dos Direitos Autorais, seja no plano internacional ou na tessitura autoralista interna corporis. A pessoa jurídica pode ser titular de direitos patrimoniais de autor, agora a autoria (ao menos nos Direitos Autorais clássicos) é de pessoas humanas.
Todos conhecem e têm lido e ouvido nos últimos meses sobre os vários casos de criações de “obras” pela Inteligência Artificial, desde o tão discutido comercial com “Elis Regina”, até a questão da greve dos atores de Hollywood, terminada recentemente. Ao mesmo tempo, há quem veja aí uma oportunidade.
A União Europeia editou, em 20 de outubro de 2020, uma Resolução por intermédio de seu Parlamento, definindo direitos intelectuais ligados ao desenvolvimento de tecnologias digitais, buscando aproveitar as oportunidades e o potencial oferecidos pela Inteligência Artificial.
Entre os requisitos traçados pela UE para a regulamentação da Inteligência Artificial, destacam-se: intervenção e supervisão humana; robustez técnica e segurança; privacidade e gerenciamento de dados; transparência; diversidade, não discriminação e equidade; bem-estar social e ambiental; prestação de contas.
Como podemos notar, são valores sociais, tecnológicos, éticos, jurídicos e econômicos muito significativos. Simultaneamente, discute-se em todos os quadrantes sobre os riscos da Inteligência Artificial, tanto no campo ético quanto no da responsabilidade civil.
Como bem enfatiza o professor Marcos Wachowicz, há quatro principais possibilidades vislumbradas em um primeiro momento para a proteção autoral ou não das criações resultantes da Inteligência Artificial: as obras criadas pela Inteligência Artificial estariam automaticamente em domínio público; a titularidade das criações geradas por Inteligência Artificial seria da empresa que desenvolveu o aplicativo ou a tecnologia; a titularidade seria do usuário; há necessidade de um novo direito conexo aos Direitos Autorais para sustentar o direito à empresa que domina tal tecnologia.
Paralelamente, e como parece ter sido desde o início da história da criatividade humana, os autores e titulares de direitos conexos estão literalmente atordoados em meio a esta nova realidade. Ela é, ao mesmo tempo, oportunidade e risco.
Não restam dúvidas de que o uso cada vez mais acentuado da Inteligência Artificial na criação de obras “não autorais” suscita a colisão de direitos fundamentais diante da proteção, nesta dimensão, dos Direitos Autorais.
A Organização Mundial da Propriedade Intelectual (WIPO/OMPI) tem realizado debates sobre Inteligência Artificial e Propriedade Intelectual em sua linha de competência e de atuação. Eles podem ser visualizados no site da instituição.
No entanto, é preciso registrar que boa parcela dos autoralistas mundo afora questiona com argumentos bastante sólidos e convincentes a possibilidade de proteção de obras sem autor (ou oriundas de tecnologia embasada em outros autores, sem mencioná-los), como Guillermo Palao Moreno (Universidade de Valência), Matt Blaszczyk (Universidade de Georgetown), Daniel Gervais (Universidade de Vanderbilt), Christophe Geiger e Vincenzo Iaia (Universidade Luiss Guido Carli /Roma). Apenas para mencionar alguns, já que o debate é incipiente e está aberto, em um caminho a construir.
Teremos mesmo um dia um direito de autor sem autor?
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ASCENSÃO, José de Oliveira. Direito da Internet e da Sociedade da Informação. Rio de Janeiro: Forense, 2002.
BLASZCZYK, Matt. Contradictions of Computer-Generated Works’ Protection. Kluwer Copyright Blog. Disponível em: https://copyrightblog.kluweriplaw.com/, acesso em 15 nov. 2023.
CASTELLS, Manuel. A Era da Informação: Economia, Sociedade e Cultura. v. I: A Sociedade em Rede. 8. ed. São Paulo: Paz e Terra, 2005.
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MORENO, Guillermo Palao. A União Europeia dá seus primeiros passos na regulamentação da relação entre inteligência artificial e propriedade intelectual. RRDDIS – Revista Rede de Direito Digital, Intelectual & Sociedade. Vol. 1, n. 1 (2021). Disponível em https://revista.ioda.org.br, acesso em 15 nov. 2023.
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