Migalhas de Peso

Ordem de lançamento do IPTU

Não há solidariedade entre os sujeitos passivos referidos no art. 34 do CTN, devendo o lançamento ser individual e dirigido contra aquele que detém a disponibilidade econômica do imóvel, seja ele proprietário, titular do domínio útil ou possuidor.

31/10/2023

O sujeito passivo natural do IPTU está definido no art. 34 do CTN, nos seguintes termos:

“Art. 34. Contribuinte do imposto é o proprietário do imóvel, o titular do seu domínio útil, ou o seu possuidor a qualquer título.”

Portanto, podem ser contribuinte do imposto, tanto o proprietário do imóvel, como o seu titular de domínio ou o possuidor a qualquer título, desde que detentor de posse de conteúdo econômico, o que exclui, por exemplo,  a posse de mero locatário.

A jurisprudência do STJ é no sentido de que tanto o compromissário comprador, como o promitente vendedor são responsáveis pelo pagamento do IPTU, podendo a autoridade administrativa optar por um ou por outro visando a facilitar o procedimento da arrecadação. É o que se depreende da ementa abaixo:

“TRIBUTÁRIO. EXECUÇÃO FISCAL. IPTU. CONTRATO DE PROMESSA DE COMPRA E VENDA DE IMÓVEL. LEGITIMIDADE PASSIVA DO POSSUIDOR (PROMITENTE COMPRADOR) E DO PROPRIETÁRIO (PROMITENTE VENDEDOR).

  1. Segundo o art. 34 do CTN, consideram-se contribuintes do IPTU o proprietário do imóvel, o titular do seu domínio útil ou o seu possuidor a qualquer título.
  2. A jurisprudência desta Corte Superior é no sentido de que tanto o promitente comprador (possuidor a qualquer título) do imóvel quanto seu proprietário/promitente vendedor (aquele que tem a propriedade registrada no Registro de Imóveis) são contribuintes responsáveis pelo pagamento do IPTU. Precedentes: RESP n.º 979.970/SP, Rel. Min. Luiz Fux, Primeira Turma, DJ de 18.6.2008; AgRg no REsp 1022614 / SP, Rel. Min. Humberto Martins, SegundaTurma, DJ de 17.4.2008; REsp 712.998/RJ, Rel. Min.  Herman Benjamin, Segunda Turma, DJ 8.2.2008 ; REsp 759.279/RJ, Rel. Min. João Otávio de Noronha, Segunda Turma, DJ de 11.9.2007; REsp 868.826/RJ, Rel.Min. Castro Meira, Segunda Turma, DJ 1º-8-2007; REsp 793073/RS, Rel. Min. Castro Meira, Segunda Turma, DJ 20.2.2006.
  3. "Ao legislador municipal cabe eleger o sujeito passivo do tributo, contemplando qualquer das situações previstas no CTN. Definindo a lei como contribuinte o proprietário, o titular do domínio útil, ou o possuidor a qualquer título, pode a autoridade administrativa optar por um ou por outro visando a facilitar o procedimento de arrecadação" (REsp 475.078/SP, Rel. Min. Teori Albino Zavascki, DJ 27.9.2004).
  4. Recurso especial provido. Acórdão sujeito ao regime do art. 543-C do CPC e da Resolução STJ 08/08.” (REsp 1110551/SP, Rel. Ministro Mauro Campbell, Primeira Seção, julgado em 10-06-2009, DJe 18-06-2009).

Entretanto, no nosso entendimento a autoridade administrativa competente não pode escolher aleatoriamente o sujeito passivo do IPTU para efetivar o lançamento tributário. Isso só seria possível se houvesse responsabilidade solidária entre o proprietário, o titular do domínio útil ou o possuidor, o que não existe, como veremos a seguir.

A solidariedade passiva tributária está disciplinada no art. 124 do CTN nos seguintes termos:                  

Art. 124. São solidariamente obrigadas:

  1. as pessoas que tenham interesse comum na situação que constitua o fato gerador da obrigação principal;
  2. as pessoas expressamente designadas por lei.

Parágrafo único. A solidariedade referida neste artigo não comporta benefício de ordem.

Não há lei definindo a solidariedade da obrigação tributária do IPTU entre o proprietário, o titular de domínio útil e o possuidor (inciso II, do art. 124). Tampouco, há entre eles interesse comum na situação que constitua o fato gerador do IPTU (inciso I, do art. 124).

Esse interesse comum a que alude o inciso I, do art. 124 do CTN não se confunde com o interesse econômico no resultado ou no proveito da situação que constitui o fato gerador da obrigação principal. Trata-se de interesse jurídico que diz respeito à realização comum ou conjunta da situação que constitui o fato gerador. É solidária a pessoa que realiza conjuntamente com outra, ou outras pessoas, a situação que constitui fato gerador da obrigação tributária. É o caso, por exemplo, de coproprietários de determinado imóvel urbano. Eles são solidariamente responsáveis pelo pagamento do IPTU, nos precisos termos do art. 124, I, do CTN.

Inexistindo a solidariedade entre os possíveis contribuintes mencionados no art. 34 do CTN, o lançamento do IPTU não poderá ser feito contra o proprietário ou compromissário comprador à discrição da autoridade administrativa do lançamento. O lançamento, enquanto ato de constituição do crédito tributário é um procedimento administrativo vinculado, sob pena de responsabilidade funcional do agente público competente (art.142 do CTN).

Logo, o lançamento deverá ser feito individualmente contra o proprietário, ou contra o titular de domínio útil, ou ainda, contra o possuidor (posseiro), nunca contra todos ao mesmo tempo.

E aqui surge o problema da escolha do sujeito passivo, matéria que abordaremos a seguir.

Robinson Sakiyama Barreirinhas interpretando o art. 34 do CTN, com apoio em doutrina abalizada, afirma que o Município não pode simplesmente escolher a eleição do sujeito passivo entre o proprietário e o possuidor. São suas as palavras:

“O tributo deve ser exigido prioritariamente do proprietário. Em caso de enfiteuse, o sujeito passivo será o titular do domínio útil e, apenas em caso de posse com animus domini, ou ad usucapionem, ou seja, quando o possuidor age como proprietário e pode vir a tornar-se proprietário por usucapião, somente nesse caso é o que o Município poderá cobrar o tributo do possuidor.1

Não há, no nosso entender, uma ordem ou  gradação para a escolha do sujeito passivo. O lançamento há de ser feito sempre contra a pessoa que provoca a concreção do fato gerador do IPTU. E aqui é preciso repensar o aspecto nuclear ou material do fato gerador desse imposto. A maioria dos autores se refere ao fato de ser proprietário de imóvel urbano. É um grande equívoco. A propriedade, o domínio útil ou a posse são apenas objeto do IPTU.

A doutrina clássica que considera o IPTU como protótipo de imposto de natureza real conduziu à equivocada idéia de que esse imposto grava a propriedade, o domínio útil ou a posse. A obrigação tributária que decorre da ocorrência do fato gerador é sempre pessoal. Daí porque o IPTU grava a disponibilidade econômica do proprietário, do titular do domínio útil ou do possuidor. O ser proprietário de imóvel urbano não é suficiente para preencher o requisito do aspecto material ou nuclear do fato gerador do IPTU. É preciso que o aludido proprietário reúna os três atributos da propriedade: o direito de usar, gozar e de dispor da coisa, nos termos do art. 1.228 do Código Civil.

Em outras palavras, é preciso que o proprietário tenha a disponibilidade econômica do imóvel urbano e, por conseguinte, capacidade contributiva, sob pena de o lançamento tributário incidir na proibição constitucional do efeito confiscatório do tributo.

Dessa forma, não pode haver lançamento de IPTU contra proprietário que não mais detém a disponibilidade econômica do imóvel, porque já transferiu a sua posse a outrem, embora formalmente continue figurando no registro imobiliário competente como sendo o legítimo proprietário, por conta da omissão do adquirente em levar a registro o respectivo título aquisitivo.

Sujeito passivo do IPTU só pode ser aquela pessoa física ou jurídica que detém a disponibilidade econômica do imóvel, seja ela possuidora (posseira), titular de domínio útil ou proprietária.

Não há, pois, a gradação para lançamento do imposto, nem liberdade de escolha pelo sujeito ativo.

O Município não pode lançar o IPTU sobre todos os proprietários de imóveis urbanos situados em seu território, de forma uniforme, não distinguindo aquele que detém a disponibilidade econômica do imóvel daquele que se encontra despojado da posse por várias razões, sob pena de ofensa ao princípio da isonomia tributária  em seu aspecto positivo.

No caso, a lei tributária tem o dever indeclinável de discriminar as pessoas que se encontrem em situações desiguais. Tributar o proprietário que apenas formalmente figura como tal perante o registro imobiliário competente, por n razões,2 afrontaria em bloco os princípios da isonomia, da capacidade contributiva e da vedação de efeito confiscatório do tributo.

Entretanto, a jurisprudência do STJ é no sentido de que tanto o compromissário comprador, como o promitente vendedor (proprietário) podem ser sujeito passivo do IPTU, a critério do sujeito ativo, conforme antes examinado.

Com base na jurisprudência do STJ, os tribunais locais vêm legitimando o lançamento do IPTU contra ex proprietário, sob o argumento de que a responsabilidade de comunicação da alienação do imóvel ao Cadastro Municipal é do comprador e do vendedor, conforme se verifica da Ementa do Acórdão proferido pelo TJRS:

“Apelação. Direito Tributário. IPTU. Promessa de compra e venda de imóvel. Segundo o art. 34 do CTN, o contribuinte do IPTU é o proprietário do imóvel, o titular de seu domínio útil ou o seu possuidor a qualquer título, em face dos quais o exequente poderá exigir a satisfação de seu crédito. Ausência de registro do ato translativo. Manutenção da responsabilidade tributária do promitente vendedor. Tendo o autor, promitente vendedor, celebrado promessa de compra e venda com o adquirente do imóvel, sem promover o registro do ato translativo da propriedade no Registro Imobiliário, nos termos do art. 1.245 do Código Civil, e sem comunicar ao Município a alteração de domínio operada, nos termos do art. 15, III da Lei Municipal 07/1973, persiste a sua responsabilidade tributária.  RESp n. 1111202/SP, sob regime do art. 543-C do CPC. Precedentes deste Tribunal. À unanimidade, desproveram a apelação” (Ap. civ. n° 70046127445, Rel. Des. Denise Oliveira Cezar, TJRS, j. 23-2-12).

A nosso ver a jurisprudência que autoriza a tributação de ex proprietário sob o fundamento de sua omissão em comunicar a venda do imóvel resulta, data vênia, da insuficiência no conhecimento da teoria geral do fato gerador da obrigação tributária.  Acrescente-se que a legislação do Município de São Paulo atribui a responsabilidade pela compra do imóvel apenas ao comprador incumbido de levar ao registro o título de transferência do imóvel.

O fato é que se o proprietário celebrou compromisso de compra e venda e transmitiu ao compromissário comprador a posse precária do imóvel ele, obviamente, perdeu a disponibilidade econômica do móvel, o que impossibilita juridicamente o lançamento do IPTU contra esse compromitente vendedor.

Concluindo, não há solidariedade entre os sujeitos passivos referidos no art. 34 do CTN, devendo o lançamento ser individual e dirigido contra aquele que detém a disponibilidade econômica do imóvel, seja ele proprietário, titular do domínio útil ou possuidor.

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1 Manual de direito tributário. São Paulo: Editora Método, 2006, p. 500-501.

2 A posse do imóvel foi transferida ao compromissário comprador; o adquirente do imóvel não levou a registro o título aquisitivo; o imóvel foi atingido por normas de proteção ambiental editadas pelo poder público impedindo sua utilização econômica; o imóvel foi desapropriado pendendo de registro a carta de adjudicação a favor do poder público expropriante etc.

Kiyoshi Harada
Sócio do escritório Harada Advogados Associados. Especialista em Direito Tributário pela USP. Presidente do Instituto Brasileiro de Estudos de Direito Administrativo, Financeiro e Tributário - IBEDAFT.

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