Segundo dados do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, ao longo do ano de 2022, 6.430 pessoas morreram decorrentes de intervenção policial1. A boa notícia é que, ao menos no Estado de São Paulo, a letalidade policial diminuiu surpreendentes 61%, caindo para o menor patamar desde 2001. Muito provavelmente, pelo uso de câmeras corporais (como principal fator)2.
A má notícia é que o Sistema de Justiça Criminal prefere, não rara as vezes, relativizar a célebre reflexão de Voltaire: “[É] melhor correr o risco de salvar um homem culpado do que condenar um inocente” ao insistir em considerar que o depoimento do agente policial goza de presunção de veracidade e de presunção de legitimidade, sendo como tomado como prova suficiente para condenação"3.
Veja-se o caso Genivaldo, por exemplo. Morto aos 38 nos dentro de uma viatura da Polícia Rodoviária Federal - PRF, em 25 de maio de 2022 por três policiais com uso de gás tóxico. As imagens feitas por testemunhas oculares do carro repleto de gás lacrimogênio com a vítima lá dentro giraram o mundo causando indignação pela brutalidade policial.
Não precisa de muito esforço imaginativo para especular o que os três policiais teriam dito sobre a morte de Genivaldo, caso a cena de barbárie não tivesse sido registrada pelas lentes de celulares daquelas pessoas corajosas.
Na advocacia criminal pode-se examinar todos os dias milhares de testemunhos de policiais estandardizados, utilizados prêt-à-porter para justificar as próprias condutas praticadas no exercício da atividade policial (muitas das vezes seguidos por depoimentos dos colegas de serviço público no modo Ctrl+C e Ctrl+V).
Apenas para ilustrar, há alguns anos, Fernando Faria e eu tivemos a oportunidade de expor contradições nos depoimentos dos policiais em uma determinada ação penal. No caso, toda a prova colhida em audiência demonstrou que aquilo que os policiais disseram no depoimento perante o juízo não poderia ser verdade, simplesmente porque contrariamente do que pretendiam fazer crer, sabe-se que é fisicamente impossível estar em dois lugares diferentes ao mesmo tempo (policiais também se submetem às leis da física). O juiz do caso, apesar de acolher o testemunho dos policiais como prova, diante de todo o conjunto probatório, desclassificou a conduta delitiva do acusado.4
Os juízes, ao colherem a prova nas audiências instrutórias, dificilmente colocam o testemunho de policiais sob suspeita a ensejar, apenas, um juízo de probabilidade e não de veracidade. O mesmo acontece com o órgão da acusação oficial, benevolente (para o policial) em casos assim. É tão raro que os juízes reconheceram categoricamente a falsidade do testemunho de um policial, que quando isso acontece, acaba se tornando notícia5.
Voltando ao caso Genivaldo, qualquer policial que não soubesse da gravação flagrante do bárbaro crime, teria pouca hesitação em mentir para proteger a carreira e não se submeter a uma ação penal por homicídio doloso qualificado. Mentir parece ser uma saída bem mais fácil, nestes casos. Principalmente quando o depoimento policial conta como única prova testemunhal dos autos.
Tem-se, portanto, dois grandes problemas a serem verdadeiramente enfrentados pelo Sistema de Justiça Criminal. Violência policial e falso testemunho. Este último, praticado para encobrir o primeiro. A principal responsabilidade em evitar falsos testemunhos praticados por agentes do Estado ou, corretamente, na necessidade de superar a jurisprudência que dá pleno valor à palavra dos policiais, inclusive nas situações em que essa prova testemunhal é a única capaz de comprovar a ocorrência do crime e sua autoria, deve recair sobre juízes e o órgão da acusação oficial que oficiam nestes em casos. Cabem a eles – e claro, ao advogado de defesa – a filtragem de todo e qualquer depoimento prestado em audiência.
Se a minoria dos policiais comete esses tipos de crimes, essa mesma minoria põe em risco a liberdade de todos, inclusive a liberdade e a imagem dos bons policiais, representados pela vasta maioria daqueles que carregam um distintivo.
Deve-se ter a percepção que tanto a brutalidade policial quanto a inquestionabilidade dos testemunhos de policiais como eficácia probatória em ações penais, podem, perigosamente, atingir todos nós, como sociedade e de maneira individual e, o Sistema de Justiça Criminal, mais que todos nós, pode fazer alguma coisa sobre isso, dentre inúmeras delas, impor limite ao valor de testemunho policial para uma futura condenação6. Deve se prezar pelo Estado Democrático e Social de Direito, sempre!
1 Disponível em: http://forumseguranca.org.br:3838/
2 Redução atribuída principalmente pelo uso de câmeras acopladas ao uniforme dos policiais militares, quando em serviço. Disponível em: https://forumseguranca.org.br/publicacoes_posts/as-cameras-corporais-na-policia-militar-do-estado-de-sao-paulo/; https://www.cnnbrasil.com.br/nacional/mortes-por-policiais-em-sp-caem-61-apos-instalacao-de-cameras-corporais/.
3 Por todos: 0001102-82.2019.8.07.0014/DF, DJe: 23-04-2020. Apesar de que recentemente, há uma guinada jurisprudencial (ainda longe do ideal) tendente a cotejar o depoimento policial com outras provas produzidas sob o crivo do contraditório: AgRg no AgRg no AREsp 1598105/SC; AREsp 1.936.393-RJ, Rel. Min. Ribeiro Dantas, Quinta Turma, por unanimidade, julgado em 25-10-2022, DJe 08-11-2022.
4 Aliás, como ele e eu escrevemos em outra oportunidade: é inaceitável a atribuição de especial ou superlativo valor à palavra da polícia, porque incondizente com a gramática emancipatória dos direitos humanos e fundamentais que assiste a todos os povos que aceitaram a democracia, em repúdio à tirania. Ver: OLIVEIRA, Diego Renoldi Quaresma de.; FARIA, Fernando Cesar de Oliveira. É a persecução penal uma busca pela verdade? Disponível em: https://www.migalhas.com.br/depeso/355100/e-a-persecucao-criminal-uma-busca-pela-verdade.
5 Caso Maurício Demétrio: Policial civil é preso em flagrante por falso testemunho. Disponível em: https://www.band.uol.com.br/bandnews-fm/rio-de-janeiro/noticias/caso-mauricio-demetrio-policial-civil-e-preso-em-flagrante-por-falso-testemunho-16500684;
6 Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/opiniao/2020/08/um-basta-a-brutalidade-policial.shtml