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35 anos da Constituição Federal: entenda o segredo de sua longevidade?

Apesar de ter sido emendada 131 vezes, isso não retirou da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 a sua essência devido aos mecanismos rigorosos de freios trazidos por ela.

25/10/2023

Madura e com vigor normativo, a Constituição da República Federativa do Brasil (CRFB) celebra nesse mês 35 anos. Mais do que a lei fundamental ou pedra angular do ordenamento jurídico brasileiro, a atual Constituição é símbolo da redemocratização no Brasil.

Ao ser promulgada, o então presidente da Assembleia Nacional Constituinte, deputado Ulysses Guimarães, em discurso afirmou que a Constituição não era “perfeita” e que se poderia discordar ou divergir dela, mas “descumprir, jamais. Afrontá-la, nunca”.

De lá para cá, vieram então as transformações no texto constitucional. Dos 35 anos de existência, pelo menos 28 foram de constantes mudanças. E, isso tem se dado mesmo diante de sua rigidez, a qual impossibilita apresentação de emendas constitucionais em face de cláusulas pétreas, ou seja, aquelas tendentes a abolir a forma federativa de Estado; o voto direto, secreto, universal e periódico; a separação dos Poderes; e os direitos e garantias individuais (art. 60, § 4º, da CRFB/1988).

Ademais, para apresentar qualquer emenda é exigido um quórum qualificado de 3/5 de aprovação da Câmara dos Deputados e do Senado, em dois turnos de votação (art. 60, § 2º, da CRFB/1988). Ainda assim, foram aprovadas 131 emendas sem contar as revisões. Com tantos remendos, pode vir a pergunta se a nossa constituição ainda possui a chamada força normativa aduzida por Konrad Hesse, em “A Força Normativa da Constituição”.

Para responder essa questão, vale o pensamento de Paulo Bonavides, em seu livro “Curso de Direito Constitucional”, de que a pretensão de uma constituição imutável seria uma tese absurda, uma vez que essa “colide com a vida, que é mudança”.

Desta maneira, se a constituição fosse totalmente inflexível haveria o sério risco de haver um golpe de Estado e a inauguração de um novo ordenamento jurídico. Por outro lado, sua total flexibilidade colocaria a lei fundamental em total descrédito, pois essa poderia ser completamente modificada sem qualquer freio.

Mecanismos de freios

O fato de haver quórum específico é para evitar que uma norma constitucional seja tão facilmente modificada como sucede com uma lei complementar em que basta o voto da maioria absoluta (metade dos parlamentares somado a um número inteiro subsequente); ou ainda como uma lei ordinária em que bastaria uma maioria simples, conforme traz o art. 47 da CRFB/1988.

Isso protege a constituição de emendas atentatórias à sua existência, mas não a salvaguarda um rompimento direto para a inauguração de um novo ordenamento jurídico. O que impossibilita, então? Justamente o caráter democrático de variar de acordo com os avanços da sociedade (teleológicos).

A reforma constitucional por emendas se fundamenta na soberania popular insculpida no art. 1º, parágrafo único, da CRFB/1988, por meio do qual o povo exerce seu poder de forma indireta, ou seja, representado por parlamentares ou pelo próprio Presidente da República. Aqui consta o caráter democrático do Estado de Direito.

Esses representantes, porém, devem seguir regras. A primeira consta sobre os legitimados. O Presidente da República; um terço, no mínimo, dos membros da Câmara dos Deputados ou do Senado Federal; ou mais da metade das Assembleias Legislativas das unidades da Federação, manifestando-se, cada uma delas, pela maioria relativa de seus membros.

Outro ponto tem a ver com a matéria proposta. Não podem ser apresentados projetos que coloquem em risco a própria constituição e aqui estão salvaguardados a forma federativa de Estado; o voto direto, secreto, universal e periódico; a separação dos Poderes; e os direitos e garantias individuais.

Constituição humana

Apesar da limitação para as emendas constitucionais tendentes a abolir cláusulas pétreas, nada impossibilita projetos de emendas que visem ampliar os direitos e garantias individuais. E aqui, cabe a interpretação sistemática de toda a constituição.

Desta maneira, os Direitos Fundamentais aduzidos no artigo 5º são meramente exemplificativos e podem ser ampliados, por exemplo. Tal máxima aqui trazida vem da interpretação daquilo que consta já no art. 5º, §2º, da CRFB/1988:

“Os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte”.

No entanto, os tratados e convenções internacionais que versem sobre direitos humanos somente comporão a constituição federal se passarem pelo mesmo crivo de aprovação das PECs (propostas de emenda à Constituição), conforme consta no art. 5º, §3º, CRFB/1988.

Constituição com legitimidade

Nesse desenho estrutural, vale ainda considerar que o Ato de Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT) trouxe mecanismos para fortalecer seu caráter de legitimidade. O art. 2º do ADCT deixou previsto para 1993 um plebiscito para que o povo escolhesse a forma (república ou monarquia constitucional) e o sistema de governo (parlamentarismo ou presidencialismo) que deveriam vigorar no país. Não obstante, o art. 3º previu também para 1993 a revisão constitucional pelo Congresso Nacional.

Cenário para a promulgação

O cenário para a promulgação da atual constituição pode explicar melhor todo o porquê de sua longevidade. Ela surgiu num momento em que o país passava por crise institucional advinda de uma ditadura que perdurava mais de duas décadas. Tanto que o deputado Ulysses Guimarães em seu emblemático discurso da promulgação da chamada “Constituição Cidadã”, expôs seu ódio e nojo à ditadura. E não titubeou: “amaldiçoamos a tirania onde quer que ela desgrace homens e nações. Principalmente na América Latina.”

Os ventos da mudança sopravam forte no Brasil naquela década de 80. Em 1985, o clamor pelas eleições diretas se tornou real. Pessoas foram às urnas pela primeira vez depois de 21 anos de ditadura. Vale mencionar que o Ato Institucional (AI) 5, de 1968, dava poderes para o presidente da república limitar a atuação do legislativo e do judiciário em todo o país, podendo ele decretar recesso do Congresso Nacional, das Assembleias Legislativas e das Câmaras de Vereadores e legislando no lugar deles, o que denota além de um absolutismo presidencial. Esse mesmo AI-5, suspendia os direitos políticos de quaisquer cidadãos pelo prazo de 10 anos.

Além desse cenário de déficit democrático, a situação se agravou com a crise inflacionária, fruto do milagre econômico. O economista Werner Baer, em sua obra “A Economia Brasileira: Uma abordagem profunda da economia brasileira até 2008”, afirmou que a crescente taxa inflacionária chegou aos 224% em 1984 e por fim em 1986 foi quase aos 300%. Entre 1981 e 1983, o Brasil vivia o estágio chamado “stagflation”, que sucede quando há inflação e ao mesmo tempo uma estagnação econômica. Em outras palavras, além do problema político, o Brasil enfrentava altas de preço e havia um índice elevado de desempregados.

Novo ordenamento jurídico

A redemocratização não poderia ser mantida sob a roupagem de um ordenamento jurídico tirânico como era aquele instituído por meio da Constituição de 1967. A solução foi, então, o rompimento do antigo e a inauguração de uma nova lei fundamental.

O poder constituinte originário é ilimitado, ou seja, não encontra limites impostos por normas anteriores a ele. Ele funda o novo ordenamento jurídico numa norma fundamental (Grundnorm) sob a qual as outras leis hão de se atentar sob pena de serem inválidas, conforme aduz Hans Kelsen em seu “Teoria Pura do Direito”.

Mas o que daria validade a essa norma fundamental jurídico-positiva? O jusfilósofo austríaco afirma que a validade está na constituição lógico-jurídica, a qual é a instância constituinte de mais elevada autoridade. Sob uma interpretação daquilo que se entende como Estado Democrático de Direito, essa constituição lógico-jurídica seria a vontade geral do povo, a qual confere a legitimidade da instauração de novo ordenamento jurídico.

No entanto, Michel Temer sustenta, em seu Elementos de Direito Constitucional, que “o grupo que assume o poder fora dos parâmetros da Constituição vigente é juridicamente usurpador”. Ele menciona que pode não ser de fato esse grupo usurpador por receber integral apoio da vontade popular, mas que o fato de romper com a ordem jurídica “o categoriza, juridicamente, como tal”.

Tendo em vista que o Poder Constituinte originário é ilimitado não há falar em Assembleia Constituinte Exclusiva. Ao se instaurar uma nova constituinte, nada impossibilita haver um golpe para a instauração de um novo ordenamento jurídico, o que não se confunde com o poder derivativo, que pode suceder por emendas constitucionais ou revisionais. E, aqui as regras constam na própria Constituição.

Constituição viva

Apesar de haver tantos mecanismos de freio, a Constituição Federal Brasileira de 1988 é viva e tem alguns pontos modificados de acordo não com a vontade dos representantes, mas do próprio povo que os elegeu.

É tanto, que ela própria ao tratar de decisões do Supremo Tribunal Federal (STF) acerca de decisões com eficácia erga omnes (contra todos) e efeito vinculante, não inclui o poder legislativo, conforme consta no art. 103. Isso possibilita, um terço dos membros da Câmara de Deputados ou do Senado, por exemplo, apresentar um projeto de emenda constitucional para derrubar os efeitos da decisão do STF. Sucedeu com a EC nº 96/2017 que modificou o art. 225 da CRFB/1988 para colocar a vaquejada como não infringente ao Bem-Estar Animal, ao arrepio de toda a discussão na suprema corte brasileira; e agora é tema de uma PEC a proibição de casamento entre pessoas do mesmo sexo, o que se for aprovado tornará inócua a decisão do STF acerca da interpretação do art. 226 da CRFB/1988 ampliando Direitos Fundamentais para viabilizar a união civil entre homoafetivos.

Poder-se-ia afirmar aqui que a vontade parte de parlamentares, mas bem da verdade é fruto daqueles que os colocaram no poder como seus representantes. 

Vigor normativo

A resposta para a pergunta se a Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 ainda mantém sua força normativa, depende do quão se mantém inabalada em face da realidade em sua volta.

Konrad Hesse menciona que não há como a constituição existir sem essa realidade. O jusfilósofo alemão pensou numa constituição capaz de se perpetuar nos tempos. Mesmo que ela venha se contradizer aparentemente com a realidade social em sua integralidade, deve ser o norte para que essa sociedade se guie nela.

A concepção de Konrad Hesse de que a essência da constituição reside no fato de que “a situação por ela regulada pretende ser concretizada na realidade” não mudou com o passar dos anos.

No entanto, as emendas no texto original da constituição representam, na verdade, uma adaptação à nova realidade. Isso parece um daqueles problemas de contradição enfrentados pela filosofia como o caso em que o “pinóquio afirma que seu nariz irá crescer”; se crescer ele terá dito a verdade, sendo que seu nariz apenas cresceria caso mentisse. Enfim, um problema sem solução.

Mas não é bem isso. E, aqui, vale o pensamento de Karl Loewenstein, expresso no livro “Teoria da Constituição”, de que a constituição, então, seria como um organismo vivo que passa por mutações sem perder sua essência. Em outros termos e nas palavras de Karl Loewenstein, as constituições “estão submetidas à dinâmica da realidade que jamais pode ser captada por meio de fórmulas fixas”. Desta forma, em que pesem 131 emendas e as inúmeras tentativas de retirar sua força, a Constituição mantém seu espírito inabalado. Trata-se de um ordenamento maduro e com todo vigor normativo ainda aos 35 anos.

Alexandre Magno Antunes de Souza
Advogado e jornalista. Mestre em Direito Constitucional pelo PPGDC-UFF. Graduado em Direito pela UFF. Pesquisador no Grupo de Pesquisa, Ensino e Extensão em Direito Administrativo Contemporâneo (GDAC)

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