Migalhas de Peso

Construção a preço de custo e o princípio da verdade real

É fundamental conhecer as particularidades de cada modelo de negócio e prevenir para que a realidade reflita ao máximo aquilo que foi formalizado no contrato, garantindo assim que o objetivo inicial de todos os contratantes seja atingido sem maiores percalços.

26/10/2023

Aquilo a que chamamos rosa, mesmo com outro nome, cheiraria igualmente bem”, disse Julieta Capuleto a Romeu Montecchio no ato 2, cena 2, de uma das obras mais famosas de William Shakespeare.

Esta passagem icônica exprime perfeitamente a ideia de que a essência das coisas não muda conforme o nome que lhe é dado, premissa que, no universo jurídico, chamamos de princípio da realidade ou da verdade real, segundo o qual, nas relações jurídicas, o que realmente aconteceu ou a substância dos fatos deve prevalecer sobre a aparência formal.

Este princípio é especialmente importante no âmbito do direito civil e comercial, no qual o eventual desvirtuamento entre o nome do contrato e a real natureza do negócio pode resultar em graves prejuízos.

Um exemplo claro, que podemos extrair do direito imobiliário, é a contratação de Construção por Administração ou a Preço de Custo.

É grande o número de construtoras e incorporadoras que firmam contratos assumindo a obrigação de incorporar, construir e administrar empreendimentos imobiliários sob regime de administração, no entanto, sem dominar as particularidades desse modelo de negócio, o que, invariavelmente, termina custando caro.

Sob a ótica do incorporador, de maneira resumida, a construção a preço de custo se diferencia das incorporações tradicionais em dois principais aspectos:

  1. Ausência de risco e de lucro: O capital que financia a obra a preço de custo é exclusivamente dos contratantes, chamados de cotistas, e a remuneração do incorporador normalmente é um valor mensal, que pode ser fixo ou percentual sobre o custo da obra. Se o custo da construção aumentar, o incorporador pode solicitar aportes extraordinários aos cotistas. Portanto, o incorporador não precisa colocar dinheiro no negócio e não corre os riscos inerentes, mas também não lucra com a venda das unidades.
  2. Dever de prestar contas – transparência: Sendo os cotistas os donos da obra, o incorporador tem a obrigação de prestar contas de todos os custos do empreendimento, desde a aquisição do terreno, projetos, materiais, documentação, mão de obra e todas as demais despesas relacionadas.

Logo, existem vantagens e obrigações intrínsecas a este regime de contratação específico, que devem ser minuciosamente avaliadas por quem o adota.

Dentre as principais obrigações, destaca-se a necessidade de constituição de uma comissão de representantes que, em nome dos contratantes, deve ter poderes para revisar semestralmente a estimativa de custos, examinar os balancetes do construtor, fiscalizar concorrência relativa à compra de materiais e controlar a arrecadação das contribuições destinadas à construção, entre outras providências (artigo 61 da lei 4.591/64 - lei de incorporações imobiliárias).

Ocorre muitas vezes que, na prática, sob o rótulo de “contrato a preço de custo”, muitas empresas desfrutam da ausência de risco, arrecadam capital com os cotistas, mas deixam de prestar contas e de cumprir as demais obrigações legais aplicáveis, o que resulta na descaracterização do contrato a preço de custo e em sua conversão em promessa de compra e venda pura e simples.

Como consequência desta desnaturação do contrato, o incorporador, ora promitente vendedor, fica obrigado a concluir o empreendimento por sua conta e risco, e a entregá-lo, no prazo estipulado, pronto, acabado e pelo valor previsto em contrato, restituindo aos cotistas, ora promitentes compradores, eventuais aportes extraordinários solicitados no curso da construção.

Esta linha de entendimento é pacífica nos Tribunais brasileiros e a Terceira Turma do STJ a reafirmou no recente1 julgamento do Aresp nº 2409260 - RJ, fundamentando que a contratação a preço de custo estava descaracterizada no caso concreto, em razão da constatação, na prática, de que os valores eram pagos pelos adquirentes diretamente à incorporadora, restando à comissão de representantes somente a fiscalização, papel muito mais restrito do que o previsto pela legislação aplicável.

O exemplo que apresentamos aqui envolve o direito imobiliário e a construção civil, mas a regra se aplica ao direito contratual como um todo.

É fundamental, portanto, conhecer as particularidades de cada modelo de negócio e prevenir para que a realidade reflita ao máximo aquilo que foi formalizado no contrato, garantindo assim que o objetivo inicial de todos os contratantes seja atingido sem maiores percalços.

---------------------------------------------------

1 Julgamento datado de 16/8/23

Bruno Maglione
Sócio do Fernandes, Figueiredo, Françoso e Petros Advogados (FF Advogados), responsável pelas áreas de contencioso cível, arbitragem e imobiliário. Mestre em Direito dos Negócios pela FGV/SP.

Renan Lopes
Advogado na Fernandes, Figueiredo, Françoso e Petros Advogados.

Veja mais no portal
cadastre-se, comente, saiba mais

Artigos Mais Lidos

ITBI na integralização de bens imóveis e sua importância para o planejamento patrimonial

19/11/2024

Cláusulas restritivas nas doações de imóveis

19/11/2024

A relativização do princípio da legalidade tributária na temática da sub-rogação no Funrural – ADIn 4395

19/11/2024

Transtornos de comportamento e déficit de atenção em crianças

17/11/2024

Prisão preventiva, duração razoável do processo e alguns cenários

18/11/2024