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50 anos do "roubo" da pedra fundamental no campus da USP - Um ato de resistência

A notícia chegou às Arcadas célere e se tornou no único assunto das rodinhas nos intervalos das aulas e por incrível que pareça unia a direita e a esquerda.

23/10/2023

Outubro de 1973. Presidente da República General Garrastazu Médici; ministro da Educação Coronel Jarbas Passarinho; ministro da Justiça Professor Alfredo Buzaid; governador biônico de São Paulo Laudo Natel; reitor da USP professor Miguel Reale; diretor da Faculdade de Direito Professor José P. Antunes. Vigência do Decreto 477 de 26/02/1969

Em março, o estudante de Geologia da USP Alexandre Vannuchi Leme foi preso, torturado e morto pela Repressão, seguiu-se missa de sétimo dia na Catedral da Sé celebrada por D. Paulo Arns. Atrás dos vários altares laterais no interior do templo viam-se policiais camuflados.  Milhares de estudantes ao saírem em cortejo da Catedral entoaram, entre soluços, a música símbolo de Vandré “Pra não dizer que não falei de flores”, até serem obrigados a se espalharem.

Na Faculdade de Direito os ânimos exaltados, discursos no pátio das Arcadas e na Tribuna Livre, na presença de centenas de populares. O Movimento Estudantil retomava as manifestações contra a ditadura, mesmo com prisões de estudantes.  

Em outubro o presidente da UNE Honestino Guimarães, a exemplo de seu antecessor Jean Marc, foi preso e ambos, desde então, nunca mais foram encontrados, situação que ainda perdura.

As ilustríssimas autoridades que comparecem ao primeiro parágrafo decidiram mudar a Faculdade de Direito do Largo São Francisco para o campus da Cidade Universitária no Butantã. A presença dos estudantes de Direito no centro da cidade incomodava o regime e para tanto escolheram o terreno e programaram o lançamento da pedra fundamental do prédio para o dia 30 de outubro.

A notícia chegou às Arcadas célere e se tornou no único assunto das rodinhas nos intervalos das aulas e por incrível que pareça unia a direita e a esquerda. Esta não aceitada o retiro longínquo, aquela não admitia ver-se misturada aos “universitários” do campus e viam como “absurda possibilidade” o exílio compulsório do Território Livre do Largo de São Francisco, então com 146 anos.

Até a noite de 29 de outubro, discussões ocorreram nos bares em torno da Faculdade, em busca de ideias e modos de ação para atrapalhar o ato governamental que seria realizado no Cidade Universitária às 10 horas do dia seguinte. Chegou-se à unanimidade: “roubar” a pedra fundamental, como fizeram os acadêmicos em 1966 quando “roubaram” da entrada do Túnel 9 de Julho a escultura “O Beijo Eterno” e a colocaram no Largo de São Francisco, onde permanece até hoje, ou ainda como fizeram os acadêmicos no século 19 ao “roubarem” a escultura do veado dourado que encimava a porta da Botica “Ao Veado d’Ouro” na Rua São Bento, ou ainda o célebre “roubo” dos perus premiados em exposição no Parque da Agua Branca, na década de 40, aves de propriedade de um professor. Tais fatos e outros correlatos sempre denominados “estudantadas”.

O grupo do qual eu participava planejou a expedição acadêmica ao Campus para a noite do mesmo dia do ato, com designação de quem iria à cerimônia para anotar detalhes do exato local, a constituição da caixa, mapas, etc. Outros foram incumbidos de escondê-la na Faculdade. Outros, ainda, ficaram com a obrigação de preparar o local no pequeno jardim ao lado da Tribuna Livre para ser sepultado o indigitado troféu. Dois dos participantes iriam comunicar a mídia da época para a solenidade que ocorreria na noite de 31.

Para nós, tudo pronto, fomos dormir na madrugada de 30, após muitas cervejas, se é que dormimos.

Contudo, no Jardim Paulista, Rua Pamplona esquina com Rua José Maria Lisboa, na Pizzaria Carreta, ponto de boemia de acadêmicos “da Direita”, sob a curatela do antigo aluno Caio Pompeu de Toledo (Turma de 1968) o assunto era alvo de discussão e a proposta vencedora era a mesma, “roubar” a pedra fundamental, mediante a mesma arquitetura do nosso grupo, com acréscimos de banda de música e fogos na solenidade de fixação no Largo.

Dia 30 de outubro, terça feira. 10 horas. Terreno de meio charco no território da Cidade Universitária. Palanque, autoridades, discursos, o professor José P. Antunes, muito elegante como sempre, gravata estilo borboleta, proferiu discurso, elogiando o ato e disse que estava alí para ratificar a adoção da Faculdade pela USP em 1934 e como um cristão a entregava, tratando-a como se fora uma noviça (RevFADUSP vol 68/2 pags 403/405}. Uma chuva singela compareceu e antecipou o fim da cerimônia.

Dispersos todos os convivas, os dois acadêmicos do “Grupo da Carreta”, permaneceram escondidos e pensaram e decidiram antecipar os passos seguintes do projeto e de imediato, aproveitando o frescor do cimento que fixava a caixa, fizeram o serviço que seria feito por um pedreiro e transportaram para “a cidade” a cobiçada pedra fundamental, levando-a para o escritório do pai de um deles. Na parte da tarde reuniram-se todos em torno da caixa de cobre e deram início às fases seguintes da epopeia. Decidiram que sobre ela seria colocada uma pedra de mármore com uma inscrição gravada, para perpetuar o evento e para tanto correram a uma das oficinas de arte tumular, defronte ao Cemitério da Consolação.

Qual seria a inscrição, tipo epitáfio?  Caio Pompeu de Toledo ditou: “Quantas Pedras forem colocadas, tantas arrancaremos”, seguida pela data “30/X/1973”.

O dia seguinte. Aulas diurnas interrompidas por fogos e acordes da bandinha de música que, além de suas apresentações em lojas do centro, abrilhantava nossos festejos; populares curiosos, imprensa, TV, fotógrafos; discursos, canto das trovas acadêmicas com muito fervor e a caixa de cobre com objetos e documentos foi enterrada no canteiro ao lado da Tribuna Livre.

E a turma do noturno que também havia programado o “roubo”?  Compareceu, sim, ao  Campus na noite de 30, procurou o local, mas deu com os burros n’água, ou melhor nos atoleiros do charco ao topar com a ausência da caixa e ver-se alvo da destreza dos colegas da manhã. Contudo na noite de 31 não deixou por menos e continuou ativamente as comemorações com discurso abrasador do Paulo Eiró, cervejas, cânticos acadêmicos e repetição dos festejos no sétimo dia do “roubo”, também com destaques nos jornais e revistas.

Em 1976, o assunto da transferência ressuscitou na Congregação da Faculdade. Alunos e antigos alunos remanescentes de 1973 uniram-se, com a criação da “Ordem da Pedra” e realizaram manifestações e até mesmo a encenação do “Dia do Fico” durante as solenidades do 11 de Agosto, mas isso é matéria para outra oportunidade.

“Resistentes à transferência da faculdade para o campus do Butantã, os alunos lapidaram a escritura naquela que seria a pedra fundamental do novo prédio. O ato, que culminou com a manutenção da Faculdade de Direito em seu local tradicional, talvez seja um dos símbolos mais fortes de apropriação e demarcação de território cultural na sua relação com a cidade” (Ana Luiza Martins in A “São Francisco” na Dinâmica da História e na Memória da Cidade – in Cidades Universitárias: Patrimônio Urbanístico e Arquitetônico da USP, EdUSP, 2003 pag 14).

O professor Goffredo da Silva Telles Junior, em entrevista à Folha de São Paulo à época disse a sede da Faculdade de Direito é o Largo de São Francisco, tribuna dos nossos políticos, dos nossos poetas e de nossos heróis. Largo que foi regado com sangue dos estudantes na luta contra o despotismo, sempre em favor das liberdades fundamentais da pessoa humana”.

E a velha Academia permanece jovem e firme no Largo de São Francisco rumo aos 200 anos de gloriosa existência.

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