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O panorama normativo de segurança jurídica na prescrição de produtos à base de cannabis por profissionais do campo da saúde

Cannabis, além da imprescindibilidade de pensarmos, de uma forma mais técnica e específica, na dimensão da formação acadêmica dos profissionais da área da saúde, de modo que sejam incluídos, futuramente, na grade curricular das graduações desses cursos, estudos aprofundados sobre a medicina canabinóide.

24/10/2023

Diante das, cada vez mais volumosas, evidências científicas acerca do potencial da Cannabis medicinal para a saúde, a procura de médicos e outros profissionais do campo da saúde por conhecimento e formação técnica na área vem aumentando. Num cenário em que a cada dia surgem novas pesquisas e evidências científicas sobre o potencial terapêutico da planta de Cannabis e seus derivados para tratamento de saúde, sem conhecimento específico e sem um arcabouço normativo que sirva como suporte e respaldo, como o profissional da saúde vai se sentir seguro para prescrever?

Sobre essa questão, de acordo com informações do próprio Conselho Federal de Medicina - CFM, o plenário do CFM apenas aprovou a Resolução 2.113/14 após profunda análise científica na qual foram avaliados todos os fatores relacionados à segurança e à eficácia da substância. O resultado, à época, foi que a avaliação dos documentos havia confirmado que ainda não haviam evidências científicas que comprovem que os canabinóides são totalmente seguros e eficazes no tratamento de casos de epilepsia. Assim, a regra do CFM era a restrição da sua prescrição – de forma compassiva – às situações onde métodos já conhecidos não apresentam resultados satisfatórios. O uso compassivo ocorre quando um medicamento novo, ainda sem registro na Agência Nacional de Vigilância em Saúde (Anvisa), pode ser prescrito para pacientes com doenças graves, sem alternativa terapêutica satisfatória com produtos registrados no país.

A Resolução estabelecia, ainda, que apenas as especialidades de neurologia e suas áreas de atuação, de neurocirurgia e de psiquiatria estão aptas a fazer a prescrição do canabidiol, sendo que os médicos interessados em recomendá-lo devem estar previamente cadastrados em plataforma online desenvolvida pelos Conselhos de Medicina. No entanto, essa Resolução não está mais em vigor, encontrando-se hoje revogada. Afinal, o seu artigo 5 prevê que essa resolução deveria ser revista no prazo de 2 anos a partir da sua publicação, “quando deverá ser analisada a literatura científica vigente à época”.

Em termos de produção científica, indiscutivelmente muito já se investiu e evoluiu no Brasil e no mundo desde o ano de 2014, sendo que o Conselho Federal de Medicina vem optando por ficar deliberadamente atrás desses avanços científicos, não produzindo novas políticas e consensos que possam ser traduzidos em novas e atualizadas regulamentações, trazendo maior  segurança jurídica para os membros da classe médica que hoje cada vez em maior número vêm se tornando prescritores de Cannabis medicinal.

Nesse sentido, com bastante atraso no que se esperava que fosse o timing para a renovação do posicionamento do CFM no que diz respeito às terapias com Cannabis e a possibilidade de sua prescrição pelos profissionais da classe médica, em 2022 o Conselho publicou a Resolução 2324/22, felizmente hoje já suspensa, como resultado da enfática mobilização de movimentos organizados da sociedade civil para tentar frear o que se entendia como um retrocesso da normatização da matéria, afinal, apesar de não haver restrição no texto da norma das especialidades médicas que podem prescrever, há a vedação da prescrição para indicação terapêutica diversa do tratamento de epilepsias da criança e adolescente refratárias às terapias convencionais na síndrome de Dravet e Lennox-Gastaut, e no Complexo de Esclerose Tuberosa.

Posteriormente, a Resolução 2326/22 sustou temporariamente os efeitos da Resolução CFM 2324. Há, então, no momento presente, uma lamentável lacuna na normatização desta matéria pelo Conselho Federal de Medicina, podendo-se afirmar que a evolução do paradigma científico sobre a Cannabis medicinal ainda não foi acompanhada pela evolução do paradigma normativo respectivo, que é de competência deste Conselho.

No que se refere à Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), da sua parte não há restrições para as especialidades médicas que podem prescrever os tratamentos com Cannabis. A Resolução de Diretoria Colegiada - RDC 660, de 2023, define os critérios e os procedimentos para importação de produtos derivados de Cannabis, por pessoa física, mediante prescrição de profissional legalmente habilitado. Portanto, a Resolução não restringe a possibilidade de prescrição de medicamentos à base de Cannabis para a classe médica, falando-se em “profissional legalmente habilitado”, englobando assim os profissionais cujo Conselho de classe preveja a possibilidade de prescrição de substâncias sujeitas a controle especial.

Por sua vez, conforme a Portaria 344/1998, da Secretaria de Vigilância e Saúde - SVS do Ministério da Saúde, a notificação de receita dos medicamentos entorpecentes e psicotrópicos deverá ser firmada por profissional inscrito no Conselho Regional de Medicina - CRO, Conselho Regional de Medicina Veterinária - CRMV e pelo CRO. Assim, de acordo com essa Portaria, médicos, veterinários e odontologistas podem prescrever medicamentos de tais naturezas, da onde se inclui a Cannabis tanto integralmente enquanto planta (Lista E), quanto de forma individualizada um dos seus componentes, o canabidiol (CBD), como substância sujeita a controle especial (Lista C1) e o tetrahidrocanabinol - THC como substância psicotrópica (Lista F2).

Na realidade dos fatos, hoje no Brasil, para além da classe médica, algumas outras profissões prescrevem a Cannabis medicinal, tais como os médicos veterinários, os fisioterapeutas, terapeutas ocupacionais, cirurgiões dentistas, entre outros. Entre os respectivos Conselhos regulamentadores de cada uma dessas profissões, apesar de ainda não muito robustos e consistentes, já existem alguns instrumentos normativos, na forma de resoluções, que garantem em certo grau respaldo para as atividades de seus membros, no que diz respeito à prescrição das terapias com Cannabis.

O Conselho Federal de Fisioterapia e Terapia Ocupacional - COFFITO, por exemplo, nas Resoluções 380/10 e 611/17 prevê a prescrição, dentre outros medicamentos, de fitofármacos/fitoterápicos por fisioterapeutas. Os fitoterápicos são produtos à base de plantas, isto é, matérias-primas ativas vegetais, com indicação terapêutica.

A seu turno, o Conselho Federal de Biomedicina - CFBM, na Resolução 365/23, trata especificamente da prescrição de produtos fitoterápicos tradicionais à base de Canabidiol - CBD. Com a Resolução, os profissionais biomédicos com habilitação em medicina tradicional chinesa-acupuntura passam a poder receitar produtos fitoterápicos tradicionais à base de CBD, desde que cumpram todas as normas e regulamentos exigidos pelo CFBM.

O Conselho Federal de Medicina Veterinária - CFMV, no artigo 7 do seu Código de Ética, fala em autonomia para o profissional prescritor. Conforme essa orientação, é possível interpretar que o profissional médico veterinário pode prescrever substâncias e medicamentos sujeitos a controle especial.

Da parte do Conselho Federal de Odontologia, conforme a lei 5.081/66, que regula o exercício da odontologia, o profissional cirurgião-dentista está apto a fazer a prescrição do produto à base de Cannabis para os seus pacientes. Além disso, recentemente a Anvisa atualizou a sua plataforma de importação de canabinóides, sendo que antes não constava a especialização de odontologia e agora o paciente solicitante da autorização excepcional para importação de produto à base de Cannabis pode inserir o registro do CRO e nome do cirurgião-dentista prescritor. Assim, o cirurgião-dentista agora também consta na plataforma da Anvisa, o que serve para reforçar a segurança dos pacientes e dos profissionais prescritores.

Para além da evolução da produção de normas que sirvam para reforçar e delimitar as questões pertinentes à prescrição das terapias com Cannabis, que vemos como absolutamente necessária para dar maior segurança jurídica para os profissionais prescritores de diversos campos, também destacamos a importância de pensarmos em termos de expansão e democratização dos conhecimentos dessa natureza para a sociedade brasileira de uma forma ampla, contribuindo para quebrar os tantos tabus e preconceitos que ainda rodeiam a planta de Cannabis, além da imprescindibilidade de pensarmos, de uma forma mais técnica e específica, na dimensão da formação acadêmica dos profissionais da área da saúde, de modo que sejam incluídos, futuramente, na grade curricular das graduações desses cursos, estudos aprofundados sobre a medicina canabinóide.  

Lucia Lambert Passos Ramos
Membro da Comissão de direito Canabico da OAB-RJ.

Vladimir Saboia
Advogado especialista na área.

Vilma Seljan
Presidente da Comissão de Direito Canabico da Oab Petrópolis.

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