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STF e STJ: precisamos falar sobre a suspensão nacional de processos

A relevância do tema advém da possibilidade (verificada no dia a dia do advogado) de que um caso no qual se discute mais de uma matéria, entre as quais não haja relação de prejudicialidade, tenha seu julgamento sobrestado em virtude da pendência de julgamento de RESP ou RE paradigmáticos.

24/10/2023

INTRODUÇÃO

O presente estudo tem o objetivo de analisar (brevemente) se a previsão legislativa de suspensão nacional de processos que tratem dos temas afetos aos recursos especiais repetitivos e aos recursos extraordinários com repercussão geral, está cumprindo a finalidade esperada quando da sua concepção legislativa. 

A relevância do tema advém da possibilidade (verificada no dia a dia do advogado) de que um caso no qual se discute mais de uma matéria, entre as quais não haja relação de prejudicialidade, tenha seu julgamento sobrestado em virtude da pendência de julgamento de RESP ou RE paradigmáticos.

Em palavras mais claras, pretende-se analisar é se há coerência processual e legislativa no sobrestamento de um processo com base no §5º do art. 1.0351 (RE com repercussão geral) e no inciso II do art. 1.0372 (RESP Repetitivo), ainda que nem todos os temas nele tratados guardem relação com a matéria a ser julgada no respectivo paradigma.

Para tanto, deve-se ter em mente que o estudo será realizado à luz da previsão legal contida no art. 3563 do CPC, conhecida como julgamento antecipado parcial de mérito.

O NOVO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL E A PREVISÃO DE SUSPENSÃO NACIONAL DE PROCESSOS

Como se sabe, um dos principais objetivos do novo Código de Processo Civil é “gerar um processo mais célere, mais justo, porque mais rente às necessidades sociais e muito menos complexo”[4]. A busca pela celeridade, e, claro, pela realização de justiça, não é novidade no ordenamento jurídico brasileiro. Contudo, a nova legislação processual se esforçou profundamente para, simplificando o sistema, concretizar esse objetivo.

Nessa mesma linha, ALVIM (2017) afirmou que:

Como se sabe, o NCPC tem como uma de suas características mais marcantes a relevância que dá à jurisprudência. Trata-se, a nosso ver, da consequência da consciência de que a jurisprudência conflitante compromete profundamente a isonomia, frustrando a previsibilidade e inviabilizando a segurança jurídica.

Nesse sentido, especificamente quanto ao mecanismo criado para sobrestar processos até a análise de paradigmas selecionados, é de se destacar o seguinte trecho da Exposição de Motivos do NCPC:

Criaram-se figuras, no novo CPC, para evitar a dispersão excessiva da jurisprudência. Com isso, haverá condições de se atenuar o assoberbamento de trabalho no Poder Judiciário, sem comprometer a qualidade da prestação jurisdicional.

Dentre esses instrumentos, está a complementação e o reforço da eficiência do regime de julgamento de recursos repetitivos, que agora abrange a possibilidade de suspensão do procedimento das demais ações, tanto no juízo de primeiro grau, quanto dos demais recursos extraordinários ou especiais, que estejam tramitando nos tribunais superiores, aguardando julgamento, desatreladamente dos afetados.

Como se vê, além da celeridade e justiça, a previsão da possibilidade de sobrestamento de processos para aguardar a decisão de casos paradigma teve também por objetivo: i) entregar segurança jurídica ao jurisdicionado, por meio da estabilidade jurisprudencial;  ii) reduzir o passivo dos tribunais brasileiros, ao julgar apenas um caso que servirá de paradigma para todos os demais que versem sobre o mesmo tema e iii) elevar a qualidade da prestação jurisdicional, ao atribuir aos Tribunais Superiores e aos órgãos colegiados dos Tribunais a responsabilidade de uniformizar a jurisprudência.

O SOBRESTAMENTO DE PROCESSOS QUE TRATAM DE MAIS DE TEMAS INDEPENDENTES ENTRE SI: PROBLEMAS OCULTOS

Sobre a importância do sobrestamento de processos previsto no Código, ALVIM (2017) fez percucientes observações que são bastantes pertinentes ao presente estudo (os grifos não estão no original):

Estes processos, que serão suspensos, ficarão aguardando a decisão do Tribunal Superior, para que neles seja proferida decisão de acordo com o teor do precedente. Assim, o entendimento adotado pelo Tribunal Superior, ao decidir o recurso afetado, deve ser respeitado / obedecido / adotado nos processos cujo trâmite tenha sido suspenso. Em caso de desrespeito, pode a parte prejudicada valer-se de reclamação, art. 988, § 5.º, II, ainda que, neste caso, seja o remédio manejável apenas quando "esgotadas as instâncias ordinárias".

Percebe-se, portanto, haver nítida e inafastável relação entre a razão de ser da suspensão dos feitos, em função de existência de controvérsia, em todos eles, acerca da MESMA QUESTÃO JURÍDICA: o respeito à isonomia, por meio da adoção da mesma solução (mesma tese jurídica) para resolver conflitos idênticos.

Portanto, é evidente, só tem sentido a suspensão na medida em que esteja associada a esta finalidade: dar concreção ao princípio da igualdade. Evidentes são os efeitos colaterais benéficos ao sistema: agilização do julgamento dos feitos, diminuição da carga de trabalho dos tribunais etc...

A análise apenas da teoria contida na previsão do §5º do art. 1.035 (RE com repercussão geral) e do inciso II do art. 1.037 (RESP Repetitivo), pode levar a precipitada conclusão de que o Código resolveu de forma simples e rápida um dos grandes imbróglios do Judiciário brasileiro. Nada, contudo, é tão simples.

Um exame mais acurado dos dispositivos ou, melhor que isso, a observância da aplicação prática deles, certamente levará a constatação de que alguns problemas assombram esse regramento legal.

Um deles, mas, certamente, não o único, é revelado quando se trata de processo cujo escopo envolve mais de uma questão jurídica (ou, em última análise, mais de um pedido). Nesses casos, o sobrestamento do processo para aguardar o julgamento de paradigma que trata de apenas um dos temas dos autos poderá (e deverá) causar não somente prejuízo as partes, mas também grave comprometimento do princípio constitucional da razoável duração dos processos.

O CPC não prevê prazo para a duração da suspensão nacional (até havia essa previsão no texto original, mas o dispositivo foi revogado antes mesmo do Código entrar em vigor5), a suspensão, em tese, pode durar indefinidamente. E não é raro que ela perdure por período longo.

Mas há uma forma de amenizar esse cenário. Trata-se da aplicação de forma sistemática da previsão legal do julgamento antecipado parcial de mérito, na forma do art. 356 do Código.

O ART. 356 DO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL: POSSÍVEL SOLUÇÃO PARA EVENTUAL DISTORÇÃO DA SUSPENSÃO NACIONAL DE PROCESSOS COM MAIS DE UM TEMA A SER DECIDIDO.

O art. 356 do CPC traz a previsão do chamado julgamento antecipado parcial de mérito. Na prática, significa a possibilidade (ou o dever) de o juiz decidir parcela do processo, desde que um ou mais dos pedidos formulados mostre-se incontroverso e/ou esteja em condições de imediato julgamento – ou seja, quando for possível o julgamento antecipado do mérito, previsto no art. 355 do CPC.

Em tese, trata-se de uma norma que se destina apenas aos julgamentos em 1ª instância – veja o que dispositivo menciona o juiz. Contudo, já é aceito na doutrina e até mesmo na jurisprudência, que tal conduta pode (e deveria) ser adotada também nos Tribunais, inclusive, os Superiores.

Essa conclusão foi exposta pela já multicitada professora (ALVIM, 2017) que, com a perspicácia de sempre, afirmou:

Parece evidente que a interpretação sistemática deste dispositivo não pode levar senão à sua aplicabilidade também nos tribunais. Também os tribunais podem decidir parcialmente a matéria que lhes é submetida à apreciação. O mesmo método sistemático indica que o art. 356 não é exaustivo e leva à inexorabilidade de que o tribunal decida, por exemplo, a parcela do recurso que contém matéria que pode ser julgada INDEPENDENTEMENTE do que se decida a respeito da questão de direito em função da qual terá havido a afetação do recurso.

E tal posição é compartilhada por relevante parte dos processualistas. Tanto é assim, que o Enunciado n. 126 da II Jornada de Direito Processual Civil6 estabelece que:

O juiz pode resolver parcialmente o mérito, em relação à matéria não afetada para julgamento, nos processos suspensos em razão de recursos repetitivos, repercussão geral, incidente de resolução de demandas repetitivas ou incidente de assunção de competência.

Mas não é só, recentemente, a Primeira Seção do STJ modulou a suspensão de processos sobre juros compensatórios em desapropriação, autorizando os Tribunais a julgar parcialmente o mérito, naquilo que não pertence a matéria do repetitivo. Na ocasião, o ministro Og Fernandes (relator) afirmou ser cabível a restrição do alcance do sobrestamento, de forma que é permitido ao Judiciário, em todas as instâncias, resolver as questões não submetidas ao regime dos repetitivos7.

Trata-se de um importante avanço, pois um posicionamento exarado pela Corte responsável pela uniformização da interpretação da legislação infraconstitucional tem o potencial de alterar os rumos de todos os processos que estão na situação ora tratada. 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O sobrestamento de processos em decorrência da afetação de casos repetitivos ou para os quais o Supremo tenha atribuído repercussão geral é um mecanismo do direito processual brasileiro para garantir previsibilidade, segurança jurídica e uniformidade nos pronunciamentos judiciais.

No entanto, considerando os casos nos quais há matérias a serem decidas que não estão relacionadas com os temas afetados, a determinação de suspensão acaba por gerar morosidade e, por vezes, prejuízo as partes.

Na tentativa de criar mecanismos que prestigiem o objetivo do sistema processual contido no Código de 2015, parcela da doutrina e, até mesmo, da jurisprudência, tem apregoado a possibilidade de aplicar a sistemática do julgamento antecipado do mérito, previsto no art. 355 do CPC, aos casos que estejam nos tribunais, inclusive, os Superiores.

Essa é uma solução possível tendo em conta a interpretação sistêmica do Código processual que se mostra eficaz e, até mesmo, desejável.

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1 Art. 1.035. [...] § 5º Reconhecida a repercussão geral, o relator no STF determinará a suspensão do processamento de todos os processos pendentes, individuais ou coletivos, que versem sobre a questão e tramitem no território nacional.

2 Art. 1.037. Selecionados os recursos, o relator, no tribunal superior, constatando a presença do pressuposto do caput do art. 1.036, proferirá decisão de afetação, na qual:

II - determinará a suspensão do processamento de todos os processos pendentes, individuais ou coletivos, que versem sobre a questão e tramitem no território nacional;

3 Art. 356. O juiz decidirá parcialmente o mérito quando um ou mais dos pedidos formulados ou parcela deles:    

I - mostrar-se incontroverso;

II - estiver em condições de imediato julgamento, nos termos do art. 355.

4 Exposição de Motivos do novo CPC: Disponível em https://www2.senado.leg.br/bdsf/bitstream/handle/id/512422/001041135.pdf

5 O § 5º do artigo 1.037 foi revogado pela lei 13.256, de 2016. Seu texto era o seguinte: “Não ocorrendo o julgamento no prazo de 1 (um) ano a contar da publicação da decisão de que trata o inciso I do caput , cessam automaticamente, em todo o território nacional, a afetação e a suspensão dos processos, que retomarão seu curso normal.”   

6 Disponível em: https://www.cjf.jus.br/cjf/noticias/2018/setembro/cej-divulga-enunciados-da-ii-jornada-de-direito-processual-civil

 

7 RESP 1328993, 1ª Seção, relator Min. Og Fernandes.

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BRASIL. Código de Processo Civil, 2015. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2015/lei/l13105.htm. Acesso em: 20 Jul. 2022.  

Código de processo civil e normas correlatas. – 7. ed. – Brasília: Senado Federal, Coordenação de Edições Técnicas, 2015. Disponível em: https://www2.senado.leg.br/bdsf/bitstream/handle/id/512422/001041135.pdf. Acesso em: 20 Jul. 2022.  

Primeira Seção modula suspensão de processos sobre juros compensatórios em desapropriação e autoriza julgamento parcial de mérito. Brasília: STJ, 2019. Disponível em: https://www.stj.jus.br/sites/portalp/Paginas/Comunicacao/Noticias/Primeira-Secao-modula-suspensao-de-processos-sobre-juros-compensatorios-em-desapropriacao-e-autoriza-julgamento-parcial-de-.aspx. Acesso em:  20 Jul. 2022.  

ALVIM, Teresa Arruda. Recursos repetitivos: o alcance da necessidade de suspensão. Migalhas, 2017. Disponível em:  https://www.migalhas.com.br/depeso/259760/recursos-repetitivos--o-alcance-da-necessidade-de-suspensao. Acesso em: 20 Jul. 2022.  

DELLORE. Luiz Guilherme Pennacchi. NCPC permite julgamento parcial de mérito nos Tribunais? GenJurídico, 2017. Disponível em: http://genjuridico.com.br/2017/02/13/ncpc-julgamento-parcial-de-merito/>. Acesso em: 20 Jul. 2022.

NEVES, Daniel Amorim Assumpção. Novo Código de Processo Civil comentado artigo por artigo. Salvador: JusPodivm, 2016.

WAMBIER, Teresa Arruda Alvim et.al. Primeiros comentários ao novo Código de Processo Civil: artigo por artigo. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2015.

Danúbia Souto de Faria Costa
Atuação em contencioso cível, tributário e empresarial. Ampla experiência na atuação junto a tribunais superiores, além de atuar perante a primeira e segunda instâncias do Tribunal de Justiça Estadual e Justiça Federal localizados em Brasília. Na esfera administrativa, atua perante as agências reguladoras, tribunais administrativos e demais órgãos da Administração Pública.

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