Em 12/9/23, por maioria, a 3ª Turma do STJ proferiu decisão em sentido oposto à jurisprudência até então consolidada não apenas na 3ª Turma, mas em toda a Corte, sobre o cabimento de honorários sucumbenciais em incidentes de desconsideração da personalidade jurídica (“IDPJ”).
De fato, até setembro de 2023, identificava-se no STJ jurisprudência no sentido de não caber condenação em honorários de sucumbência nesses incidentes. Segundo constou de acórdão da 4ª Turma do mês logo anterior, "[a] orientação jurisprudencial deste Superior Tribunal de Justiça é pacífica no sentido de que, em virtude da ausência de previsão legal específica, não é cabível condenação ao pagamento de honorários sucumbenciais em incidente de desconsideração da personalidade jurídica, sendo irrelevante a qual das partes se possa imputar a sucumbência ou a responsabilidade por dar causa à instauração do incidente" (STJ, AgInt no AREsp n. 2.326.010/SP, 4ª Turma, Rel. Min. Antonio Carlos Ferreira, j. em 21.8.23).
A compreensão de que não incidem honorários sucumbenciais em IDPJ – independentemente do seu resultado, quer seja julgado procedente ou improcedente – dominou o repositório de jurisprudência do STJ nos últimos anos. Entre os mais recentes, são exemplos de precedentes nesse sentido: (i) AgInt no AREsp 2.324.908/SP, 3ª Turma, Rel. Min. Marco Aurélio Bellizze, j. em 21.8.231; (ii) AgInt no AREsp 2.137.999/RS, 1ª Turma, Rel. Min. Paulo Sérgio Domingues, j. em 19.6.232; (iii) AgInt no AREsp 2.131.090/SP, 4ªTurma, Rel. Min. Marco Buzzi, j. em 27.3.20233; e (iv) AgInt no AgInt no AgInt nos EDcl no REsp 1.960.634/SP, 3ª Turma, Rel. Min. Ricardo Villas Bôas Cueva, j. em 24.4.234.
Eis agora, no entanto, o acórdão exarado pela 3ª Turma no REsp 1.925.959, originalmente de relatoria do Ministro Paulo de Tarso Sanseverino:
RECURSO ESPECIAL. PROCESSUAL CIVIL. DESCONSIDERAC¸A~O DA PERSONALIDADE JURI'DICA. NATUREZA JURI'DICA DE DEMANDA INCIDENTAL. LITIGIOSIDADE. EXISTE^NCIA. HONORA'RIOS ADVOCATI'CIOS DE SUCUMBE^NCIA. IMPROCEDE^NCIA DO PEDIDO. FIXAC¸A~O. CABIMENTO.
1. O fator determinante para a condenac¸a~o ao pagamento de honora'rios advocati'cios na~o pode ser estabelecido a partir de crite'rios meramente procedimentais, devendo ser observado o e^xito obtido pelo advogado mediante o trabalho desenvolvido.
2. O CPC de 2015 superou o dogma da unicidade de julgamento, prevendo expressamente as deciso~es de resoluc¸a~o parcial do me'rito, sendo conseque^ncia natural a fixac¸a~o de honora'rios de sucumbe^ncia.
3. Apesar da denominac¸a~o utilizada pelo legislador, o procedimento de desconsiderac¸a~o da personalidade juri'dico tem natureza juri'dica de demanda incidental, com partes, causa de pedir e pedido.
4. O indeferimento do pedido de desconsiderac¸a~o da personalidade juri'dica, tendo como resultado a na~o inclusa~o do so'cio (ou da empresa) no polo passivo da lide, da' ensejo a` fixac¸a~o de verba honora'ria em favor do advogado de quem foi indevidamente chamado a litigar em jui'zo. 5. Recurso especial conhecido e na~o provido.
(STJ, REsp n. 1.925.959/SP, 3ª Turma, Rel. Min. Paulo de Tarso Sanseverino, rel. para acórdão Min. Ricardo Villas Bôas Cueva, j. em 12.9.2023.)
O novo precedente não é vinculante. Não obstante, o interesse na nova decisão da Corte se justifica por representar fissura relevante em matéria que se tinha por sedimentada. Até então, incidentes de desconsideração eram vistos como tentativas “gratuitas”, sob a perspectiva dos ônus sucumbenciais, na medida em que o indeferimento do pedido não acarretava fixação de verba honorária. Agora, a porta se abre para a rediscussão.
Argumentos consistentes pesam em ambos os lados da balança. Nessa recente decisão, a maioria vencedora se apoiou, sobretudo, na premissa de que o IDPJ tem natureza de ação incidental, com partes, causa de pedir e pedido próprios, diferentemente de um mero incidente processual. O já saudoso Ministro Paulo de Tarso Sanseverino, relator original, concluiu pela incidência analógica da mesma sistemática aplicável a outras demandas incidentais pelas quais se chamam terceiros à lide, como a denunciação, em que ha' condenac¸a~o em honora'rios advocatícios sucumbenciais.
Já a Ministra Nancy Andrighi divergiu. Em meio às razões de seu voto, a par dos fundamentos tradicionalmente adotados pela corrente que defende o descabimento da condenação em honorários em IDPJ, a Ministra reputou que “na~o ha', respeitosamente, raza~o suficiente para modificac¸a~o do entendimento desta 3ª Turma em ta~o pouco espac¸o de tempo e sem nenhuma nova ou relevante circunsta^ncia fa'tica ou juri'dica”. Sopesou que, apesar de não se tratar de um precedente vinculante, cuida-se, ainda assim, de uma decisão paradigmática de um tribunal superior, cuja mudança de entendimento merece sempre especiais consideração e fundamentação.
Proferido após o voto da Min. Nancy Andrighi, o voto-vista do Min. Moura Ribeiro, que acompanhou o relator, realça elemento importante da delimitação da controvérsia: o tema objeto dessa nova análise desempenhada pela 3ª Turma consiste, especificamente, no cabimento de honorários na hipótese de ser julgado improcedente o IDPJ. Em caso de procedência, manter-se-ia a orientação anterior, pelo descabimento de fixação da verba honorária. A distinção frisada pelo Min. Moura Ribeiro repousa na seguinte lógica: caso o incidente seja julgado procedente, a ação principal será retomada, com a inclusão dos sócios como responsáveis pela dívida. Tais sócios arcarão com a sucumbência fixada na ação principal, a qual deverá considerar o trabalho desempenhado pelo advogado também no incidente. Já se o incidente é julgado improcedente, extingue-se a relação processual entre autor e réu do incidente, por decisão que se aproxima da natureza de uma sentença.
Conquanto se leve em conta a ressalva acima e se considere que o precedente se refere somente à hipótese de improcedência do IDPJ, trata-se, ainda assim, de sinalização de uma eventual alteração em jurisprudência de tribunal superior. Como bem salientou a Ministra Nancy Andrighi, tal fenômeno reclama ônus qualificado de fundamentação, em homenagem à segurança jurídica e em prestígio à colegialidade e unicidade da Corte, enquanto órgão único e homogêneo de pacificação de interpretações conflitantes da lei federal.
Em síntese, é certo que, ao tempo de publicação desta nota, o mais recente precedente colegiado do STJ sobre o cabimento de honorários sucumbenciais em IDPJ contrasta com decisões, sobre o mesmo tema, proferidas nos últimos anos. Esse novo cenário jurisprudencial, colorido pela incerteza, impacta a tomada de decisões por partes litigantes, que por ora não disporão de condições bastantes para medir, com segurança, os riscos a que se submeterão caso busquem a desconsideração da personalidade jurídica de sua contraparte. Oxalá, em um sentido ou em outro, a Corte uniformize a jurisprudência em futuro breve.
1 “O entendimento desta Corte Superior firmou-se no sentido de que ‘não é cabível a condenação nos ônus sucumbenciais no incidente de desconsideração da personalidade jurídica diante da ausência de previsão legal’”.
2 “É incabível a fixação de honorários advocatícios em incidente de desconsideração da personalidade jurídica, salvo nos casos de extinção ou alteração substancial do próprio processo principal, o que não ocorreu na hipótese dos autos”.
3 “A orientação jurisprudencial deste Superior Tribunal de Justiça é pacífica no sentido de que, em virtude da ausência de previsão legal específica, não é cabível condenação ao pagamento de honorários sucumbenciais em incidente de desconsideração da personalidade jurídica, sendo irrelevante a qual das partes se possa imputar a sucumbência ou a responsabilidade por dar causa à instauração do incidente”.
4 “Não é cabível a condenação nos ônus sucumbenciais no incidente de desconsideração da personalidade jurídica diante da ausência de previsão legal (...) nos termos da iterativa jurisprudência desta Corte Superior, somente seria cabível a fixação de honorários em incidentes que provocam a extinção ou a alteração substancial do processo principal".
5 “[O] CPC/15 poderia atribuir à desconsideração da personalidade jurídica a natureza de ação ou demanda, como, por exemplo, fez com a oposição (que, no CPC/73, era uma intervenção de terceiro e, no CPC/15, passou a ser uma ação de procedimento especial), mas preferiu qualificá-la como um incidente cuja característica marcante não é a existência de demanda ou pretensão, mas, sim, a ampliação subjetiva da responsabilização com a inclusão de um terceiro. (...) [A] base de cálculo dos honorários sucumbenciais está indissociavelmente vinculada ao objeto litigioso (...), de modo que a instituição de um regime de ampliação subjetiva da responsabilização pelo ato ou pelo débito entre pessoa jurídica e sócios, mas sem ampliar objetivamente o litígio, não é suficiente e não deve influenciar o exame sobre a necessidade, ou não, de serem fixados honorários advocatícios sucumbenciais” (Trecho do voto-vista da Exma. Min. Nancy Andrighi no REsp 1.925.959/SP, 3ª Turma, Rel. Min. Paulo de Tarso Sanseverino, rel. para acórdão Min. Ricardo Villas Bôas Cueva, j. em 12.9.23).