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Licenciamento ambiental e o TCU: atualidades no RDC (aguardando a NLLCA)

Uma constatação é inevitável: essas e outras polêmicas só têm surgido, e se mantido, frente à resistência dos órgãos da Administração Pública, direta e indireta, em promover licitações e contratações baseadas nas velhas legislações.

19/10/2023

O TCU continua em sua missão de promover e disponibilizar esclarecimentos jurisprudenciais seguros no contexto desta situação insólita que o parlamento brasileiro produziu, desde a introdução no ordenamento da lei 14.133/21 (Nova lei de Licitações e Contratos Administrativos – NLLCA). Uma lei que entrou em vigor “na data de sua publicação”, mas não revogou completamente as disposições anteriores (vacatio legis à brasileira), sendo que, à véspera do completo encerramento de suas vigências, no último dia para ser exato, tiveram sua existência jurídica prorrogada até o dia 30 de dezembro de 2023, por intermédio da Medida Provisória 1.167/23, posteriormente consolidada na lei Complementar 198/23.

A Administração Pública, até o dia 29 de dezembro de 2023, ainda pode licitar ou contratar diretamente de acordo com as leis 8.666/1993, 10.520/02 (lei do Pregão) e 12.462/11 (lei do RDC), desde que a publicação do edital ou do ato de autorização da contratação direta ocorra até a referida data, com a previsão expressamente. Portanto, permanece a necessidade de acompanhamento, por um bom tempo, das contratações fundamentadas nessas leis, cujo ciclo de existência jurídica em breve se extinguirá.

No início desta longa transição legal, a jurisprudência do TCU era bem distinta quanto ao tempo e objeto da legislação. Se uma licitação ou uma contratação estivessem embasadas na velha lei de Licitações, lei do Pregão ou do RDC, a análise seria realizada sem nenhum tipo de cotejamento ou antecipação interpretativa que associasse os dispositivos co-vigentes. Pareceu um direcionamento adequado, já que a opção garantida pelo texto normativo de escolher entre as normas não traria prejuízo aos interessados.  

Posteriormente, os Acórdãos do TCU foram revelando antecipações interpretativas, trazendo à lume, efetivamente, os desafios que o modelo híbrido estava provocando. Conforme foi se aproximando a vigência plena da 14.133/21, as decisões avançaram um pouco mais, alinhando novas contratações, ainda ancoradas na velha legislação, com dispositivos da NLLCA, especialmente quando promoviam verdadeira e necessária atualização jurisprudencial. Mesmo porque a NLLCA incorporou as melhores experiências das leis que a antecederam, podendo ser destacada, na lei do RDC, a contratação integrada.

Assim pode ser entendido o Acordão 1912/23 - Plenário, sob a relatoria do Ministro Benjamin Zymler, que enfrentou uma interessante questão. Em “auditoria de conformidade” direcionada à contratação promovida pelo Departamento Nacional de Infraestrutura de Transportes - DNIT, autarquia federal vinculada ao Ministério da Infraestrutura, um achado chamou atenção: a transferência da titularidade de obrigações relativas à obtenção de licenças ambientais de instalação e operação.

O DNIT, ao optar pela contratação integrada, fundamentada no Regime Diferenciado de Contratações Públicas – RDC (lei 12.462/11), já vislumbrava que o contratado seria o responsável pelas obrigações tradicionais, quais sejam: elaboração e desenvolvimento dos projetos básico e executivo, execução de  obras e serviços de engenharia, fornecimento de bens ou prestação de serviços especiais, além da realização de todas as operações necessárias para a entrega final do objeto. E, além disso, propôs uma inovação, que o mesmo contratado assumisse a responsabilidade pelo processo de licenciamento ambiental.

O licenciamento ambiental é um procedimento administrativo, estabelecido pela lei 6.938/81, que promove a sustentabilidade ao equilibrar o desejoso desenvolvimento econômico com a necessária preservação do meio ambiente. Sua execução se dá pela atuação de órgãos ambientais competentes, e suas exigências se impõem frente a interesses públicos e/ou privados.

Segundo a análise inicial da unidade de auditoria do TCU, o procedimento promovido pelo DNIT feriria uma série de atos normativos e mesmo a jurisprudência da Corte de Contas da União. Da legislação ambiental, destacou-se a paradigmática Resolução Conama 237/97 que, há décadas, estabelece “os procedimentos e critérios utilizados para o licenciamento ambiental”, e que afirma, como diretriz geral, em diversos trechos, que a licença ambiental é obrigação intransferível do empreendedor.

Consultado, o IBAMA afirmou que o processo licitatório é uma atividade acessória que não tem o condão de transferir a administração da rodovia pública à empresa contratada para realização da obra, pois não se trata de concessão, logo, não há transferência de titularidade e nem é possível deslocar a responsabilidade pela obtenção do licenciamento ambiental. Empreendedor é aquele responsável pela gestão e administração direta do empreendimento. Além disso, foi contrário à tentativa da autarquia federal em ver reconhecida a co-titularidade entre órgão empreendedor e a empresa contratada, apenas quanto aos deveres indicados em edital, restritas às providências de licenciamento ambiental. Logo, o IBAMA foi totalmente refratário à inovação proposta pelo DNIT. 

A recomendação da auditoria do TCU foi na direção de que os achados, inclusive a transferência da obrigação relativa ao licenciamento ambiental, gerariam a necessária anulação da licitação e do respectivo contrato. O Ministro relator concluiu diferentemente, ou melhor, prospectivamente. Pode-se considerar que encarnou Jano, divindade romana, conhecido com o “deus das transições”, que, com suas duas cabeças, uma voltada ao passado e outra ao futuro, conseguia compatibilizar esses dois tempos existenciais com o presente.

O voto do Ministro relator analisou o procedimento licitatório do DNIT, baseado na lei 12.462/11 (passado), sem descurar dos preceitos da lei 14.133/21 (presente e futuro), que já admite a transferência do licenciamento ambiental ao contratado (Art. 25, § 5º; Art. 125). Também observou que em experiências de concessões, PPPs e desapropriações, tal procedimento relativo ao licenciamento é usual e lógico, bem como nas contratações integradas, apresentando, inclusive as vantagens práticas da escolha dos legisladores pela dinâmica da NLLCA, bem como as desvantagens do modelo que está sendo superado (e.g. atrasos na liberação do licenciamento ambiental, especialmente quando requeridos pela Administração Pública).

Impende lembrar das lições de Inocêncio Mártires Coelho sobre hermenêutica, quando abordava o “ir e vi” ou “balançar de olhos” que a tarefa interpretativa requer, ou, algumas vezes, exige, para promoção do valor justiça. Assim, o Ministro relator decidiu revisitar a jurisprudência do TCU, para atualizar e gerar conformidade ao uso da contratação integrada com o licenciamento ambiental, ainda sob a regência do velho texto normativo.

Destarte, entendeu que o pomo da discórdia entre os atores do processo de contratação e auditoria é mera divergência interpretativa, pelo que, fazendo uso do viés pragmático e consequencialista, firmado no Art. 20 da lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro - LINDB, considerou que o tema é “questão acessória, de pouca importância prática”. Seguindo a mesma lógica, restou decidido que uma contratação embasada na Lei do RDC permite a transferência do licenciamento ambiental ao contratado, quando adotado o regime de contratação integrada.

E foi além, determinando que o IBAMA e o DNIT implementem medidas a fim de adequar e alinhar suas regulamentações internas, seja de contratação ou de licenciamento ambiental, à NLLCA, portanto, prevendo em seus editais que o contratado seja o responsável pelo licenciamento ambiental da obra.

Uma constatação é inevitável: essas e outras polêmicas só têm surgido, e se mantido, frente à resistência dos órgãos da Administração Pública, direta e indireta, em promover licitações e contratações baseadas nas velhas legislações. Se a NLLCA já estivesse totalmente implementada estes e outros conflitos interpretativos ou procedimentais ocorreriam raramente.

Giussepp Mendes
Advogado especialista em direito administrativo público.

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