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Quem modula a modulação de efeitos? O imbróglio da ADC 49 e a necessidade de esclarecer o seu alcance

Na hipótese de os referidos embargos de declaração não serem conhecidos por terem sido propostos pelo Amicus curiae – que, no entendimento do STF, não teria legitimidade para recorrer em se tratando de controle concentrado de constitucionalidade –, o STF deve, de ofício, esclarecer o alcance da modulação promovida na ADC 49.

17/10/2023

Em 16 de abril de 2021, na Ação Declaratória de Constitucionalidade - ADC 49, o STF convalidou, em definitivo, o entendimento de que “o mero deslocamento entre estabelecimentos do mesmo titular, na mesma unidade federada ou em unidades diferentes, não é fato gerador de ICMS, sendo este o entendimento consolidado nesta Corte, guardiã da Constituição, que o aplica há anos e até os dias atuais”.

Dessa forma, a Suprema Corte, em decisão em controle concentrado que possui eficácia geral e vinculante, julgou improcedente a ADC 49 ajuizada pelo Governador do Estado do Rio Grande do Norte, para declarar a inconstitucionalidade dos artigos 11, §3º, II, 12, I, no trecho “ainda que para estabelecimento do mesmo titular”, e 13, §4º, da lei Complementar 87/96, que ainda amparavam de forma indevida as legislações estaduais para a exigência do ICMS nessas situações.

Na sequência, foram opostos embargos de declaração pela Governadora do Estado do Rio Grande do Norte com o objetivo de “conferir eficácia prospectiva à declaração de inconstitucionalidade dos artigos da lei Kandir, de forma a resguardar a validade de todas as operações realizadas e não contestadas judicialmente” (leia-se, operações em que houve o recolhimento de ICMS) à data do julgamento da ADC (19/4/21) e obter esclarecimentos quanto à manutenção do uso dos créditos de ICMS pelos contribuintes, a fim de que estes pudessem dar vazão, nas etapas seguintes da cadeia produtiva, aos eventuais créditos acumulados.

Após o recurso ter sido retirado de pauta por quatro vezes, o julgamento foi retomado no dia 12 de abril de 2023, no Plenário virtual, concluindo-se a votação por 6 x 5 votos. No entanto, uma vez que não havia sido formado o quórum de oito votos necessários para a modulação dos efeitos da decisão, o julgamento foi suspenso para proclamação do resultado no Plenário físico. Finalmente, no dia 19 de abril de 2023, o resultado restou proclamado no sentido de que, uma vez que todos os ministros haviam proferido votos para permitir a modulação (ainda que em extensão distinta), deveria prevalecer a tese da maioria.

Assim, restou mantida a proposta do ministro Edson Fachin, que conheceu e deu parcial provimento aos embargos de declaração para modular os efeitos temporais da decisão, fixando o entendimento de que os seus efeitos devem valer a partir do exercício financeiro de 2024, ressalvados os processos administrativos e judiciais pendentes de conclusão até a data de publicação da ata de julgamento da decisão de mérito (29/4/21). Exaurido esse prazo sem que os Estados disciplinem a transferência de créditos de ICMS entre estabelecimentos de mesmo titular, foi reconhecido o direito dos contribuintes de transferirem tais créditos.

A questão, no entanto, está de longe de ter um desfecho. O acórdão foi objeto de novos embargos de declaração, opostos em 22/8/23 pelo Sindicato Nacional das Empresas Distribuidoras de Combustíveis e de Lubrificantes - SINDICOM, para que, sanando-se a obscuridade apontada, o STF esclareça que a modulação de efeitos empregada no caso concreto não permite aos Estados e Distrito Federal promoverem, após o julgamento da mencionada ADC (29/4021), novos lançamentos e cobranças do ICMS na transferência de mercadorias entre estabelecimentos de um mesmo contribuinte. Em outras palavras, busca-se salvaguardar os contribuintes que deixaram de recolher o tributo e não ajuizaram medidas judiciais para afastar a cobrança do ICMS justamente por confiarem no consolidado entendimento jurisprudencial que perdura há mais de duas décadas.

Diferentemente do que vêm sustentando as Fazendas Públicas Estaduais como tese de defesa, é preciso esclarecer que a determinação da modulação dos efeitos da declaração de inconstitucionalidade não pode convalidar, até janeiro de 2024, a exigência de ICMS nas transferências entre estabelecimentos de um mesmo titular simplesmente porque ele não tinha ação judicial proposta anteriormente à data de corte fixada pelo STF. Esse entendimento, aliás, consta no voto do ministro Nunes Marques, ao julgar os primeiros embargos de declaração, mas não foi objeto de deliberação dos demais ministros.

Entendemos que a única interpretação possível para o caso em debate é que a modulação diz respeito à previsão de lapso temporal para a transferência de créditos de ICMS entre estabelecimentos de um mesmo contribuinte, uma vez que a não incidência do ICMS sobre a transferência de mercadorias entre estabelecimentos do mesmo contribuinte já se encontrava pacificada desde a década de 90, quando foi publicada a súmula 166 do STJ. O entendimento foi reafirmado em 2010 pelo STJ, ao julgar, na sistemática de recursos repetitivos, o REsp 1.125.133/SP (Tema 259/STJ). Além disso, o STF julgou, em 14/8/20, o mérito do ARE 1.255.885 (Tema 1099/STF), sob a sistemática da repercussão geral, firmando a tese de que “não incide ICMS no deslocamento de bens de um estabelecimento para outro do mesmo contribuinte localizados em estados distintos, visto não haver a transferência da titularidade ou a realização de ato de mercancia”, em acórdão já transitado em julgado.

A tese fixada pelo STF da ADC 49 apenas reafirmou a sua jurisprudência, que já inadmitia os recursos de forma monocrática e aplicava multa aos Estados que insistiam na discussão quanto à incidência do ICMS em situações como a presente (vide ARE-RG 914.045 e ARE 1063312 AgR, ambos da relatoria do Min. Edson Fachin).

Da leitura dos votos do ministro Fachin e do ministro Barroso no julgamento da referida ADC, constata-se que a modulação de efeitos não pretendeu validar a indevida cobrança do ICMS até o ano de 2024, mas proteger os contribuintes que destacavam regularmente o ICMS em suas transferências entre filiais, especialmente as de caráter interestadual, de forma a evitar que os Estados glosassem os créditos dos estabelecimentos que receberam os bens tributados, bem como impedir a restituição do indébito, tornando definitivos pagamentos feitos e não contestados.

Não há dúvida que a modulação determinada na ADC 49 não conferiu aos Estados e ao Distrito Federal o direito de cobrar o ICMS ainda não lançado à época da data de corte fixada pelo STF (29/4/21), cuja inconstitucionalidade era entendimento pacificado no STJ e no STF e somente foi reafirmada na ADC 49. Se o STF validar a pretensão fazendária, ele será totalmente contraditório com a premissa de fortalecimento dos precedentes vinculantes, bem como incoerente com uma questão relevante de política judiciária, qual seja, a de evitar a judicialização em situações que a jurisprudência já está consolidada.

A oposição necessária de novos embargos de declaração é mais um capítulo na discussão e remonta à necessidade de “modular a modulação” – em analogia à frase do poeta romano Juvenal, Quis custodiet ipsos custodes?, traduzida como “quem vigia os vigias?” –, sob pena de submeter os contribuintes que confiaram na jurisprudência e na sabida inconstitucionalidade da cobrança e não promoveram o pagamento do ICMS nas transferências entre seus estabelecimentos à situação de extrema vulnerabilidade.

Esperamos que o recurso seja acolhido para sanar os vícios processuais e esclarecer que o STF não buscou validar por mais tempo exigências sabidamente inconstitucionais, conforme jurisprudência pacificada e reafirmada na ADC nº 49 e, sim, proteger os contribuintes que destacavam regularmente o ICMS em suas transferências entre filiais, especialmente as de caráter interestadual, de forma a evitar que os estados glosassem os créditos dos estabelecimentos que receberam os bens tributados, prevalecendo a posição apresentada pelo ministro Nunes Marques em seu voto ao julgar os primeiros embargos de declaração.

Por fim, na hipótese de os referidos embargos de declaração não serem conhecidos por terem sido propostos pelo Amicus curiae – que, no entendimento do STF, não teria legitimidade para recorrer em se tratando de controle concentrado de constitucionalidade –, o STF deve, de ofício, esclarecer o alcance da modulação promovida na ADC nº 49, de modo a não permitir a cobrança de ICMS sobre operações em análise, ainda que não contestadas judicialmente antes do dia 29/4/21, em face da jurisprudência consolidada há décadas. Essa medida é plenamente possível, como recentemente decidiu o STF, ao julgar os embargos de declaração na ADI 5.882. Nesse julgado, a maioria dos ministros (8x3) não conheceu do referido recurso por ausência de legitimidade, mas modulou, de ofício, a decisão proferida na mencionada ADI. Se é possível ao STF modular de ofício, o que dirá a Corte esclarecer o alcance da referida modulação de efeitos. Logo, mesmo que os referidos embargos de declaração opostos na ADC 49 não sejam conhecidos por ausência de legitimidade, o STF não pode perder a oportunidade de esclarecer, de forma definitiva, o alcance da decisão proferida na ADC 49 e evitar prolongar, por anos a fio, essa discussão.

Leonardo Varella Giannetti
Advogado do escritório Rolim, Viotti, Goulart, Cardoso Advogados. Doutor e Mestre em Direito Público pela PUC/MG. Professor da PUC/MG nos cursos de especialização em Direito Tributário.

Marina Leite de Moura e Souza
Advogada no Rolim, Goulart, Cardoso Advogados. Graduada em Direito pela UFMG. Foi pesquisadora bolsista de Iniciação Científica do CNPq de 2018 a 2020 e atualmente é pesquisadora do Grupo de Pesquisa CONAPRES - Constitucionalismo e Aprendizagem Social.

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