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‘Nova’ emenda constitucional para sustar decisões do STF: 50/23

A PEC 50/23, embora tenha conotação política e demonstre a irresignação do Parlamento com decisões consideradas - por alguns parlamentares - alvissareiras da Suprema Corte, não passa pelo crivo da juridicidade, ante o teor do artigo 60, §4º, da Constituição Federal, correndo risco de ser julgada inconstitucional pelo STF, numa eventual ação direta perante a Corte.

11/10/2023

1.) Não há como negar, o STF, Corte máxima da Justiça brasileira, tem sofrido arremetidas por parte de integrantes do Congresso Nacional: haveria ‘invasão de competência’ pelo fato de o Supremo Tribunal não respeitar as deliberações do Congresso Nacional, subtraindo-lhes a nobre função de legislar; conforme esse entendimento, as decisões da mais alta Corte do Judiciário estariam ceifando as ‘escolhas legislativas’ (leis), julgando-as sobremodo inconstitucionais, ou moldando-as aos preceitos considerados dignos pela própria Corte.

Segundo esse ponto de vista, haveria, por assim dizer, substituição das escolhas do Poder Legislativo pelas do Poder Judiciário, no denominado ativismo judicial, em que os membros do STF prestigiariam os direitos fundamentais; no entanto, sob acentuado viés político, institucional, pondo em risco o sistema de freios e contrapesos [divisão de Poderes: art.2º, CF], ao fazer tábula rasa às normas do Congresso Nacional.

2.) Entretanto, ao que parece, o Parlamento começa a ‘reagir politicamente’. Trata-se da Emenda Constitucional 50/23, em tramitação, já assinada por 175 deputados federais, cujo teor é o seguinte:

Art. 1º O art. 49 da Constituição Federal passa a vigorar acrescido do seguinte inciso XIX: “XIX – deliberar, por três quintos dos membros de cada Casa legislativa, em dois turnos, sobre projeto de Decreto Legislativo do Congresso Nacional, apresentado por 1/3 dos membros da Câmara dos Deputados e do Senado Federal, que proponha sustar decisão do STF que tenha transitado em julgado, e que extrapole os limites constitucionais.

Parágrafo único. O Decreto Legislativo a que se refere o inciso XIX será promulgado pelo presidente do Congresso Nacional e comunicado ao Supremo Tribunal Federal, com vigência imediata.” (NR)

Art. 2º Esta emenda constitucional entra em vigor na data de sua publicação.”

Nos termos do texto apresentado, compete à Câmara dos Deputados ou ao Senado Federal apresentar projeto de decreto legislativo (ato ‘interna corporis’), visando a sustar decisão do STF, transitada em julgado (não comporta recurso, definitividade), desde que tenha extrapolado limites constitucionais; apresentado o texto, será deliberado pela Câmara dos Deputados e pelo Senado Federal, em votação separada, para sua aprovação ou rejeição.

Quanto ao quórum para apresentação e deliberação, respectivamente: 1/3 e três quintos dos membros de cada Casa Legislativa; no último caso, em dois turnos, ou seja, em duas deliberações: o projeto será aprovado se tiver sido votado favoravelmente nas duas ocasiões, em ambas Casas Legislativas. Trata-se do mesmo quórum das emendas constitucionais (art.60, “caput”, I e §2º, CF).

Nesses limites, aprovado o texto por decreto legislativo, será promulgado pelo presidente do Congresso Nacional. Isso porque, cuidando-se de ato interno e competência exclusiva da Casa Legislativa (art.49, CF), não comporta sanção ou veto do Presidente da República, atribuição essa elencada no artigo 84, IV, do Texto Constitucional.

3.) Se, sob o aspecto político, institucional, o projeto vem ao encontro do desejo de deputados e senadores, no sentido de refrearem algumas decisões da Corte, no prisma jurídico contém inconstitucionalidade flagrante.

As funções constitucionais do Executivo, do Legislativo e do Judiciário encontram-se imbricadas, submetidas ao sistema denominado freios e contrapesos, que fora idealizado, nos termos da ciência política, pelo barão de Montesquieu [Charles de Secondat Baron de La Brède et de Montesquieu], no conhecido livro O Espírito das leis:

“A liberdade política encontra-se nos governos moderados. Mas ela nem sempre ocorre nos Estados moderados: ela acontece quando não há abuso do poder; mas é uma experiência eterna, que todo homem que detém o poder tende a abusar [desse poder]; ele vai até onde há limites. Quem diria! A virtude mesmo tem necessidade de limites. Pois, para que não haja abuso de poder, é preciso que, pelas disposições das coisas, o poder contenha o poder.”(De L’Esprit des Lois, Tome I, p.223, Jean de Bonnot, Paris, 1999 [1.748]. Tradução livre. Grifos nossos).

Conforme afirma Madison, no Federalista, nº XVVIII (1.788):

“É geralmente reconhecido que os poderes, que pertencem propriamente a cada um dos departamentos, não devem ser exercidos diretamente e completamente pelos demais departamentos. É igualmente evidente que cada um deles não deve possuir direta ou indiretamente uma influência preponderante sobre os outros no exercício de seus respectivos poderes.”(Le Fédéraliste, p.408, A. Hamilton, J.Jay et J. Madison, Giard et E. Brière, 1902, Paris. Tradução livre. Grifos não-originais).

Trazendo os excertos aos dias atuais, regra básica, nenhum Poder poderá imiscuir-se nas atividades do outro Poder; não pode haver, nas palavras de Madison, influência e preponderância de um Poder sobre os outros, no exercício de suas respectivas competências constitucionais.

É que, se um dos Poderes ‘invadir a competência constitucional de outro’, estaria comprometida a tripartição das ‘funções estatais’ (at.2º, CF), bem como a Federação brasileira (art.1º, “caput”, CF).

4.) Para os defensores da Proposta de Emenda Constitucional 50/23, por decorrência de algumas propagadas decisões do STF, as ‘escolhas’ do Judiciário, realizadas nas respectivas ações judiciais, preponderam às leis – ou seja, o Judiciário estaria imiscuindo-se nas atividades legislativas, ao julgar temas sensíveis à sociedade, como a licitude do aborto, a descriminalização do uso de drogas e a demarcação temporal de terras indígenas.

De outra parte, se aprovada, a emenda constitucional 50/23 levaria a situação inusitada: a superposição do Legislativo ao Judiciário, porque os parlamentares passariam a decidir se o Judiciário atua ou não nos limites constitucionais. São situações, assim, da mesma natureza – muda-se apenas o órgão que prepondera ao outro: lá, o Judiciário (STF); aqui, o Legislativo (CN).

Efetivamente, isso não soluciona o problema, e resulta, por certo, num embate institucional sem precedentes na ordem jurídica brasileira.

5.) Também é de perguntar-se qual o sentido do termo “limites constitucionais”, contido na emenda 50/23: o Congresso poderá sustar decisões do Supremo que tenham ultrapassado os limites constitucionais. Ampla, difusa, discricionária, comportando, assim, mais de uma intelecção, a expressão contém incerteza jurídica, situação desnecessária e contraproducente, ao afetar a relação entre os Poderes de forma acintosa, desmesurada.

6.) Não se pode confundir essa hipótese inconstitucional (EC 50/23) com aquela disposta no artigo 49, V, da Constituição Federal, em que o Congresso Nacional tem competência para sustar atos normativos do Poder Executivo, que tenham extrapolado a função regulamentar (art.84, IV, CF).

Nesse caso, o Poder Legislativo, órgão competente para elaborar leis, pode sustar atos normativos (abstratos, impessoais) do Executivo, desde que tenham desbordado da função regulamentar, isto é, não tenham atendido aos ditames da lei elaborada pelo Congresso Nacional.  

Trata-se de função correlata ao exercício da competência legislativa, consagrada na Constituição, mesmo porque compete ao Congresso Nacional fiscalizar os atos do Poder Executivo (art.49, X, CF).

7.) A função administrativa, exercida precipuamente pelo Executivo, é subordinada à lei, elaborada pelo Legislativo (função administrativa). Como diz Renato Alessi, a legislação é inovação primária, comandos primários, vale dizer, fundados unicamente no poder soberano, do qual são direta e primária explicitação. Ao passo que a Administração é emanação de atos complementares, atuação concreta do comando primário abstrato, contido na norma. Nesse sentido, a função administrativa é subordinada, depende da função legislativa (Sistema Istituzionale del Diritto Amministrativo Italiano, p.5, Giuffrè, Milão, 1953).

Na lapidar expressão de Celso Antônio Bandeira de Mello: “o princípio da legalidade é o da completa submissão da Administração às leis.” (Curso de Direito Administrativo, p.104, 34ªed., Malheiros, 2017. Grifos não-originais).      

Escrevemos:

“Por força da interpretação sistemática do texto constitucional, a Administração no Brasil, como regra básica, desempenha atividade administrativa nos termos e em face da lei, mediante autorização legal.”(Heraldo Garcia Vitta, Soberania do Estado e Poder de Polícia, p.118, Malheiros, 2011. Grifos originais).

8.) A possibilidade de sustação de atos normativos do Executivo, pelo Legislativo, é norma contida na Constituição (art.49, V, CF), elaborada originariamente (Assembleia Constituinte), enquanto a referida PEC 50/23 – por ser emenda constitucional, ou seja, ato legislativo que advém de competência constitucional derivada - deve respeitar os ditames essenciais ou nucleares da Constituição Federal,  dentre eles, “a forma federativa de Estado” e a “separação dos Poderes” (art.60, §4º, I e III, CF), bem assim “os direitos e garantias individuais” (IV), que falaremos a breve trecho.

Noutro dizer: emendas constitucionais devem respeitar os ditames estruturais do Estado, os limites demarcados na Constituição Federal, as chamadas vedações expressas e implícitas (cláusulas pétreas).  

José Afonso da Silva:

“uma Assembleia Nacional Constituinte [órgão elaborador da Constituição Federal] constitui momento culminante da atuação da soberania popular, porque nela, como vimos, se encarna e se exerce o poder constituinte originário, que é inicial, uno e indivisível.”(Poder Constituinte e Poder Popular, p. 74, Malheiros, 2000. Grifos não-originais).

Assim, a PEC deve seguir os ditames essenciais contidos no Texto Constitucional; no caso, há violação ao princípio da separação das funções estatais e ao princípio federativo, base ou sustentáculo do Estado.

9.) A par da intromissão do Legislativo na função precipuamente jurisdicional, a PEC atinge a segurança jurídica, a pedra-de-toque da ordem jurídica, no regime Democrático de Direito (art.1º, CF): a emenda constitucional 50/23 vai de encontro à definitividade da decisão judicial [coisa julgada], que é o elemento formal que distingue a função jurisdicional, considerando-se o princípio do acesso à jurisdição (art.5º, XXXV, CF).

Assim, quando a PEC 50/23 autoriza o Legislativo sustar decisões do STF transitadas em julgado, ofende-se o disposto no artigo 5º, XXXVI, da Constituição Federal – a lei não prejudicará o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada -, direito fundamental, núcleo duro, cláusula pétrea, insuscetível de modificações legislativas, inclusive por emenda constitucional.

A coisa julgada (decisão judicial que não comporta mais recurso, na definição dada pela Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro, art.6º, §3º, acrescentado pela lei 3.238, de 1957), é corolário da segurança jurídica, condutora de toda atividade estatal e da sociedade; pois, a inobservância desse preceito secular, princípio geral de Direito, conduz à instabilidade das funções e relações do Estado, bem como dos liames sociais, comprometendo, dessa maneira, o regime Democrático de Direito.

10.) Nos termos do artigo 60, §4º, da Constituição Federal, qualquer proposta de emenda constitucional tendente a abolir esses e outros princípios, valores ou bens constitucionais, considerados nucleares ao Estado Federal [inclusive a separação dos Poderes), à República [Geraldo Ataliba], aos direitos e garantias estabelecidos na Constituição, estará viciada por nulidade absoluta e incontornável.

Portanto, a PEC 50/23, embora tenha conotação política e demonstre a irresignação do Parlamento com decisões consideradas - por alguns parlamentares - alvissareiras da Suprema Corte, não passa pelo crivo da juridicidade, ante o teor do artigo 60, §4º, da Constituição Federal, correndo risco de ser julgada inconstitucional pelo Supremo Tribunal Federal, numa eventual ação direta perante a Corte.

Heraldo Garcia Vitta
Advogado e Professor de Direito. Parecerista e Consultor Jurídico. Especialista em Direito Privado, Mestre e Doutor em Direito do Estado. Juiz Federal aposentado. Ex-Promotor de Justiça (SP).

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