Migalhas de Peso

A nulidade da prova colhida sem a observância da tese sedimentada no RE 1.055.941

Análise feita de acordo com a interpretação dada no julgamento do RHC 147707 – PA

11/10/2023

Os relatórios de inteligência financeira são ferramentas desenvolvidas pela Unidade de Inteligência Financeira – UIF (antigo Conselho de Controle de Atividades Financeiras – COAF), com a finalidade de examinar e identificar anomalias em operações financeiras que envolvam indícios da prática do crime de lavagem de dinheiro.

De acordo com o artigo 15 da lei 9.613/98 é obrigação da UIF representar aos órgãos de persecução criminal quando constatados fundadas suspeitas da prática de crimes:

“Art. 15. O COAF comunicará às autoridades competentes para a instauração dos procedimentos cabíveis, quando concluir pela existência de crimes previstos nesta lei, de fundados indícios de sua prática, ou de qualquer outro ilícito.”

O STF, ao julgar o Recurso Extraordinário 1.055.941 referendou ser constitucional o compartilhamento dos relatórios de inteligência financeira da UIF e da íntegra do procedimento fiscalizatório da Receita Federal do Brasil - em que se define o lançamento do tributo - com os órgãos de persecução penal para fins criminais sem prévia autorização judicial.

“É constitucional o compartilhamento dos relatórios de inteligência financeira da UIF e da íntegra do procedimento fiscalizatório da Receita Federal do Brasil - em que se define o lançamento do tributo - com os órgãos de persecução penal para fins criminais sem prévia autorização judicial, devendo ser resguardado o sigilo das informações em procedimentos formalmente instaurados e sujeitos a posterior controle jurisdicional;

(RE 1055941, Relator(a): DIAS TOFFOLI, Tribunal Pleno, julgado em 04/12/2019, PROCESSO ELETRÔNICO REPERCUSSÃO GERAL - MÉRITO DJe-243DIVULG 05-10-2020PUBLIC 6-10-20 REPUBLICAÇÃO: DJe-052DIVULG 17-03-2021PUBLIC 18-3-21)”

De acordo com o referido precedente, como as informações que aparecem nos atos administrativos elaborados pela Unidade de Inteligência Financeira e pela Receita Federal do Brasil são sigilosos, e em direito penal não se admite interpretação in malam, será inconstitucional caso compartilhamento dessas informações sigilosas ocorra de maneira inversa, ou seja, quando os órgãos de persecução criminal, ao invés de receberem esses documentos, fizerem a solicitação ou a requisição dos RIF sem prévia autorização judicial.

Portanto, a constitucionalidade declarada no Recurso Extraordinário 1.055.941 refere-se ao compartilhamento, e não à requisição ou solicitação desses documentos diretamente pelos órgãos de persecução criminal.

Com efeito, no julgamento do AgRg na CauInomCrim n. 69/DF, relatora Ministra Nancy Andrighi, Corte Especial, julgado em 1/6/22, DJe de 3/6/22 foi decidido que os trabalhos desenvolvidos pela UIF tem natureza penal persecutória, de modo que os relatórios de inteligência financeira podem ser utilizados para fundamentar pretensão de quebra dos sigilos fiscal e bancário:

“A atribuição desenvolvida pelo COAF se insere no âmbito das atividades de natureza penal persecutória. Assim, pode ser utilizada como fundamento para a quebra de sigilo financeiro. Precedentes do STF e do STJ.”

Em sentido oposto, como as conclusões da UIF narram possível ocorrência de crimes financeiros, e não possuem força probatória vinculante - uma vez que as suas conclusões foram feitas de forma unilateral - a utilização exclusiva dos relatórios de inteligência financeira para fundamentar eventual pedido de quebra de sigilos bancário e fiscal, quando dissociada de outros elementos investigativos, faz com que a atividade de investigação policial se transforme em ato de arbitrariedade, e a eventual prova obtida através da quebra de sigilo poderá ser considerada ilícita:

“(...) fosse assim, toda e qualquer comunicação do COAF nesse sentido implicaria, necessariamente, o afastamento do sigilo para ser elucidada. Da mesma forma, a gravidade dos fatos e a necessidade de se punir os responsáveis não se mostram como motivação idônea para justificar a medida, a qual deve se ater, exclusiva e exaustivamente, aos requisitos definidos no ordenamento jurídico pátrio, sobretudo porque a regra consiste na inviolabilidade do sigilo, e a quebra, na sua exceção. (...) (HC 191.378/DF, relator Ministro Sebastião Reis Júnior, Sexta Turma, julgado em 15/9/11, DJe de 5/12/11.)”

Ao conceder ordem de habeas corpus por deficiência na fundamentação que autorizou a quebra dos sigilos bancário e fiscal de investigado por crime de lavagem de dinheiro, o eminente relator do caso, Ministro Olindo Menezes, assim se manifestou:

“O direito ao sigilo financeiro não é absoluto e pode ser mitigado quando houver interesse público, por meio de autorização judicial suficientemente fundamentada, na qual se justifique a providência para fins de investigação criminal ou instrução processual penal, lastreada em indícios de prática delitiva (RMS 51.152/SP, Ministro Rogerio Schietti Cruz, Sexta Turma, DJe 13/11/17).

No caso, as citações constantes do voto não expressam razões fundadas para a quebra do sigilo do acusado Flávio Ramos de Andrade. Tudo partiu de denúncia anônima e os indícios citados pela decisão (reunião em um restaurante, com empresários e pessoas do meio político, forma de ingresso em empresa e menções indiretas), não têm firmeza fática a indicar que o acusado estaria envolvido na cobrança de valores de empresários que celebraram contratos com o Estado de Goiás (...)

Ante o exposto, reconsidero a decisão agravada para conceder o habeas corpus, para declarar a ilegalidade da quebra do sigilo fiscal e bancário do agravante, haja vista a ausência de fundadas razões a justificar a medida.” (AgRg no HC 703.081/GO, relator Ministro Olindo Menezes (Desembargador Convocado do TRF 1ª Região), Sexta Turma, julgado em 28/6/22, DJe de 1/7/22.)

Importante destacar que, no ano de 2017, o STJ julgou tese que classificava os trabalhos desenvolvidos pela UIF como atividades de persecução criminal e, portanto, entendeu que intercâmbio de informações poderia ser feito de maneira inversa, ou seja, os órgãos de persecução criminal poderiam solicitar os relatórios de inteligência financeira sem a necessidade de autorização judicial:

“Se o art. 1º, § 3º, IV, da lei 9.613/98 admite que o COAF comunique "autoridades competentes, da prática de ilícitos penais ou administrativos, abrangendo o fornecimento de informações sobre operações que envolvam recursos provenientes de qualquer prática criminosa", não há motivo para que o Ministério Público deixe de dirigir solicitação ao órgão no sentido de que investigue operações bancárias e fiscais de pessoa (física ou jurídica) sobre as quais paire suspeita e comunique, ao final, suas conclusões. Assim, o MPF "não possui acesso aos bancos de dados sigilosos do COAF, existindo apenas um intercâmbio de informações por sistema eletrônico, criado pelo próprio órgão, objetivando atender ao preconizado no artigo 15 da Lei de Lavagem de Dinheiro". (HC 349.945/PE, Rel. Ministro NEFI CORDEIRO, Rel. p/ Acórdão Ministro ROGERIO SCHIETTI CRUZ, SEXTA TURMA, julgado em 6/12/16, DJe 2/2/17). Precedente recente da Quinta Turma: RHC 49.982/GO, por mim relatado, QUINTA TURMA, julgado em 9/3/17, DJe 15/3/17.”

No julgamento do RHC 43.356/PA, relator Ministro Sebastião Reis Júnior, relator para acórdão Ministro Rogerio Schietti Cruz, Sexta Turma, julgado em 26/8/14, DJe de 3/2/15, por maioria de votos, prevaleceu a tese de que as conclusões da UIF possuem força probatória suficiente para justificar uma acusação criminal. Pela importância que o voto vencido tem dentro da análise do presente estudo, transcrevem-se trechos da ementa e do voto vencido:

(EMENTA)

“Não há nulidade em denúncia oferecida pelo Ministério Público cujo supedâneo foi relatório do COAF, que, minuciosamente, identificou a ocorrência de crimes vários e a autoria de diversas pessoas.”

(VOTO VENCIDO) (MIN. SEBASTIÃO REIS JÚNIOR)

"[...] apenas o relatório do COAF não é suficiente para subsidiar a denúncia e ensejar a deflagração de ação penal. Tal relatório demonstra, sim, a necessidade da instauração de idônea investigação criminal, a fim de se identificar todos os envolvidos, eventuais crimes em que estariam incursos e o modo pelo qual foram realizados, elementos indispensáveis à descrição da acusação (fato criminoso com as respectivas circunstâncias - art. 41 do CPP)". (RHC 43.356/PA, relator Ministro Sebastião Reis Júnior, relator para acórdão Ministro Rogerio Schietti Cruz, Sexta Turma, julgado em 26/8/14, DJe de 3/2/15.)”

No julgamento do RHC 83.233/SP, relator Ministro Sebastião Reis Júnior, Terceira Seção, julgado em 9/2/22, DJe de 15/3/22, que foi balizado pela decisão proferida no Recurso Extraordinário 1.055.941, foi declarada a ilicitude da prova colhida através de requisição direta de documentos sigilosos feita pelo Ministério Público à Receita Federal. Confira trechos da ementa:

Assim, a requisição ou o requerimento, de forma direta, pelo órgão da acusação à Receita Federal, com o fim de coletar indícios para subsidiar investigação ou instrução criminal, além de não ter sido satisfatoriamente enfrentada no julgamento do Recurso Extraordinário 1.055.941/SP, não se encontra abarcada pela tese firmada no âmbito da repercussão geral em questão. Ainda, as poucas referências que o acórdão faz ao acesso direto pelo Ministério Público aos dados, sem intervenção judicial, é no sentido de sua ilegalidade.

Hipótese dos autos que consiste no fato de que o Ministério Público Federal solicitou, diretamente ao Superintendente da Receita Federal, as declarações de imposto de renda da recorrente, de seus familiares e de diversas pessoas jurídicas, ou seja, obteve-se diretamente do referido órgão documentação fiscal sem que tenha havido qualquer espécie de ordem judicial.

A possibilidade de a Receita Federal valer-se da representação fiscal para fins penais, a fim de encaminhar, de ofício, os dados coletados no âmbito do procedimento administrativo fiscal, quando identificada a existência de indícios da prática de crime, ao Ministério Público, para fins de persecução criminal, não autoriza o órgão da acusação a requisitar diretamente esses mesmos dados sem autorização judicial.

No julgamento do RHC 147.707 - PA, relator Ministro Antonio Saldanha Palheiro, Sexta Turma, julgado em 15/8/23, DJe de 24/8/23, por maioria de votos, o colegiado deliberou que a decisão proferida no Recurso Extraordinário 1.055.941 não contempla a inversão do caminho burocrático para a comunicação oficial sobre os indícios de crimes descobertos pela UIF e pela RFB. Confira a íntegra da ementa do RHC 147.707 - PA:

PENAL. PROCESSO PENAL. LAVAGEM DE DINHEIRO (ART. 1º, § 2º, I, DA LEI N. 9.613/1998). RELATÓRIO DE INTELIGÊNCIA FINANCEIRA DO COAF. SITUAÇÃO DIVERSA DA DECIDIDA NO RE N. 1.055.941/SP. RELATÓRIOS SOLICITADOS PELA AUTORIDADE POLICIAL DIRETAMENTE AO COAF SEM AUTORIZAÇÃO JUDICIAL. IMPOSSIBILIDADE. PRECEDENTE. RECURSO PROVIDO.

  1. O STF, ao julgar o Recurso Extraordinário n. 1.055.941/SP, em âmbito de repercussão geral, fixou as seguintes teses, a saber: "1. É constitucional o compartilhamento dos relatórios de inteligência financeira da UIF e da íntegra do procedimento fiscalizatório da Receita Federal do Brasil - em que se define o lançamento do tributo - com os órgãos de persecução penal para fins criminais sem prévia autorização judicial, devendo ser resguardado o sigilo das informações em procedimentos formalmente instaurados e sujeitos a posterior controle jurisdicional; 2. O compartilhamento pela UIF e pela RFB referido no item anterior deve ser feito unicamente por meio de comunicações formais, com garantia de sigilo, certificação do destinatário e estabelecimento de instrumentos efetivos de apuração e correção de eventuais desvios."
  2. Constata-se que foi julgado lícito o compartilhamento de provas entre o UIF (antigo COAF) e a Receita Federal do Brasil - RFB com os órgãos de persecução penal, nos casos em que o UIF e a RFB constatam a ocorrência de ilegalidades e comunicam os fatos aos órgãos de persecução penal.
  3. No presente caso, a autoridade policial solicitou diretamente ao COAF o envio dos relatórios de inteligência financeira, sem a existência de autorização judicial, situação, portanto, diversa da análise pelo STF.
  4. A Terceira Seção desta Corte Superior analisou situação similar, ao julgar o RHC 83.233/SP, no qual o Ministério Público requisitou diretamente à RFB o envio da declaração de imposto de renda de determinadas pessoas, o que foi considerado ilícito por esta Corte Superior.
  5. Dessa forma, o presente recurso em habeas corpus deve ser provido para declarar a ilicitude dos relatórios de inteligência financeira solicitados diretamente pela autoridade policial ao COAF.
  6. Recurso em habeas corpus provido. (RHC n. 147.707/PA, relator Ministro Antonio Saldanha Palheiro, Sexta Turma, julgado em 15/8/23, DJe de 24/8/23.)

Portanto, ainda que não esteja pacificado no âmbito do Superior Tribunal de Justiça a interpretação de que a decisão proferida no Recurso Extraordinário 1.055.941 não admite a inversão do caminho burocrático para a comunicação oficial sobre os indícios de crimes descobertos pela UIF e da RFB, a recente decisão exarada no RHC 147.707 - PA é um importante norteador para a evolução da referida decisão do Supremo Tribunal Federal.

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lei 9.613, de 3 de março de 1998.

RE 1055941, Relator(a): DIAS TOFFOLI, Tribunal Pleno, julgado em 04/12/2019, PROCESSO ELETRÔNICO REPERCUSSÃO GERAL - MÉRITO DJe-243  DIVULG 5-10-20  PUBLIC 6-10-20 REPUBLICAÇÃO: DJe-052  DIVULG 17-03-2021  PUBLIC 18-3-21.

AgRg no HC 703.081/GO, relator Ministro Olindo Menezes Desembargador Convocado do TRF 1ª Região), Sexta Turma, julgado em 28/6/22, DJe de 1/7/22.

HC 349.945/PE, relator Ministro Nefi Cordeiro, relator para acórdão Ministro Rogerio Schietti Cruz, Sexta Turma, julgado em 6/12/16, DJe de 2/2/17.

RMS 52.677/SP, relator Ministro Reynaldo Soares da Fonseca, Quinta Turma, julgado em 27/4/17, DJe de 5/5/17.

AgRg na CauInomCrim n. 69/DF, relatora Ministra Nancy Andrighi, Corte Especial, julgado em 1/6/22, DJe de 3/6/22.

HC 191.378/DF, relator Ministro Sebastião Reis Júnior, Sexta Turma, julgado em 15/9/11, DJe de 5/12/11.

AgRg no HC 703.081/GO, relator Ministro Olindo Menezes (Desembargador Convocado do TRF 1ª Região), Sexta Turma, julgado em 28/6/22, DJe de 1/7/22.

HC 349.945/PE, Rel. Ministro NEFI CORDEIRO, Rel. p/ Acórdão Ministro ROGERIO SCHIETTI CRUZ, SEXTA TURMA, julgado em 06/12/2016, DJe 2/2/17). Precedente recente da Quinta Turma: RHC 49.982/GO, por mim relatado, QUINTA TURMA, julgado em 9/3/17, DJe 15/3/17.

RHC 43.356/PA, relator Ministro Sebastião Reis Júnior, relator para acórdão Ministro Rogerio Schietti Cruz, Sexta Turma, julgado em 26/8/14, DJe de 3/2/15.

RMS 42.120/SP, relator Ministro Rogerio Schietti Cruz, Sexta Turma, julgado em 25/5/21, DJe de 31/5/21.

RHC 83.233/SP, relator Ministro Sebastião Reis Júnior, Terceira Seção, julgado em 9/2/22, DJe de 15/3/22.

RHC 147.707/PA, relator Ministro Antonio Saldanha Palheiro, Sexta Turma, julgado em 15/8/23, DJe de 24/8/23.

Ricardo Henrique Araujo Pinheiro
Advogado especialista em Direito Penal. Sócio no Araújo Pinheiro Advocacia.

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