Ao tomar posse como novo presidente do STF, o ministro Luís Roberto Barroso disse que [o aborto] “talvez ainda não esteja maduro o debate”.
O polêmico tema do aborto foi retomado com força, voltando à pauta da discussão jurídica com recente overruling1 do procedente histórico estabelecido pela Suprema Corte dos EUA em 1973 no caso Roe vs. Wade, onde se reconheceu o direito constitucional da mulher em escolher praticar o abortamento arrimado na 14ª Emenda à Constituição2.
A discussão que levou a superação do estabelecido pela Suprema Corte dos EUA há 50 anos é a mesma de sempre. Com aqueles velhos mantras que eu, e todo libertário conhece bem: “a vida começa com a concepção”; “a Constituição protege a o direito à vida” etc.
No STF, o debate sobre o aborto está em discussão por meio da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental - ADPF 442, que começou a ser julgada em setembro passado e que já contou com o voto da ministra Rosa Weber pela descriminalização da interrupção voluntária da gravidez (aborto), nas primeiras 12 semanas de gestação.
A legislação penal brasileira é, aliás, bastante restritiva quanto ao tema aborto. Há, entretanto, a previsão de duas excludentes de ilicitude, quando não há outra forma de salvar a vida da gestante ou quando a gestação é decorrente de estupro. Em 2012 o STF autorizou a antecipação do parto ou interrupção de gravidez para os casos de anencefalia. Significa dizer que salvo nessas circunstâncias, praticar o aborto é crime contra a vida, previsto nos artigos 124 e 126 do Código Penal.
Em uma espécie de reação ideológica, no Congresso Nacional foi desarquivada uma Proposta da Emenda Constitucional - PEC 29/15 que pretende alterar o artigo 5º da Constituição de modo a incluir o termo “desde a concepção” no trecho que garante a inviolabilidade do direito à vida3, o que na prática, caso aprovada, promete retrocessos graves nos direitos reprodutivos das mulheres. Nessa PEC “não sobra ninguém”. A proposta pretende criminalizar o aborto mesmo nos casos de estupro e dificulta o procedimento em caso de anencefalia.
Democraticamente e sob a ótica de uma Teoria da Decisão Judicial4, o caminho adequado para descriminalização ou criminalização é o legislativo, por meio dos representantes do Povo, isto é, mediante a atuação dos membros do Congresso Nacional (em qualquer que seja o sentido).
Os dois pontos de vista (liberal e conservador) são, cada um em sua “essência”, agendas políticas que, portanto, dizem mais respeito a decisões travadas pelo Poder Legislativo que pelo Poder Judiciário. Quando ambos os lados têm acesso ao poder político, a vontade da maioria deveria prevalecer. Dito de um modo mais simples: como é uma questão política, ela deveria se dar pela representatividade dos membros que compõe o Poder Legislativo Federal, é dizer, se eu defendo uma agenda contra o aborto ou pró-aborto, eu busco como meu representante (deputado ou senador) alguém quem defenda essa minha agenda, para que, portanto, eu tenha ou me veja representando. Sabemos que isso não é sempre possível, principalmente para grupos vulneráveis que não possuem ou se veem muito pouco representados por aqueles que compõe atualmente o Congresso Nacional.
Entretanto, há um plano de fundo bastante complexo por traz disso tudo. E o problema é no âmbito do “mundo real”. É dizer, ao manter a limitação estabelecida pelo Código Penal ou a promoção de uma alteração normativa que elimine completamente as possibilidades de realização de aborto como pretende a PEC 29/15, se aumentará a injustiça social e, no mínimo, se manterão os riscos à saúde pública, pois as mulheres pobres, sem condições econômicas de praticar o aborto em outro país com a segurança médica devida, continuarão a apostar na clandestinidade ou em métodos abortivos pouco seguros para elas.
A mesma verdade se aplica aos EUA. Lá, a superação do precedente Roe vs. Wade traz como consequência o seguinte cenário: as mulheres que querem abortar, mas que não tem poder político e não possuem condições econômicas de viajar, por exemplo, a estados liberais que permitem em sua legislação o procedimento, recorrerão inevitavelmente, a clínicas clandestinas de aborto ou perigosos métodos abortivos, um grande risco para o direito à vida.
Ironicamente, uma vez estabelecido pelo STF a descriminalização do aborto, forças políticas contra o aborto vão buscar – como, de fato, já estão buscando – ocupar o espaço legislativo por emenda constitucional ou por meio de Lei, superar, na prática, aquilo que vier a ser decidido pelo STF na ADPF 442.
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1 Que pode ser bastante resumido como sendo a mudança de entendimento de determinado tribunal a respeito de uma mesmo tema (direito).
2 Sobre o tema ver: https://www.newsweek.com/alan-dershowitz-confronts-hannity-abortion-rulings-judicial-activism-1719176
3 https://veja.abril.com.br/brasil/como-a-tropa-conservadora-do-congresso-se-mobiliza-contra-pauta-do-stf
4 Cfr. DWORKIN, Ronald. O império do Direito. 3ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 2014.