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Cobrança de honorários pela sociedade

Há que prevalecer o entendimento pretérito, quer pela sua eficácia, em função do órgão prolator da decisão, quer pelas superiores razões jurídicas que o sedimentam.

4/10/2023

1. Existe uma preocupação em nosso sistema processual de valorizar, cada vez mais, as decisões dos tribunais, ainda que de per si elas não possam ser guindadas à condição de fonte do direito, como decorre da teoria romanística. Registre-se que não deixa de ser estranha essa valorização, na medida em que nosso Direito Civil, quer o Código material, quer o processual, são legislações novas. José de Oliveira Ascenção aceita que assim aconteça na França e na Alemanha, dada a circunstância dos Códigos desses países serem velhos. Reputa, todavia, excessiva a desenvoltura que se dá às decisões em nosso país (O Direito – Introdução e Teoria Geral, Lisboa, 3ª edição, 1983, n. 141, p. 242). Logicamente, a valorização das decisões não poderia ter lugar sem que as decisões recepcionadas fossem constantes, pois somente assim receberiam a dignidade de jurisprudência.

Apesar disso, são costumeiras as decisões do Superior Tribunal de Justiça citando sua súmula 83, que trabalha a superação da divergência na interpretação da lei, trazendo à colação somente um caso resolvido em sentido diverso do postulado pelo recorrente. Evidente que decisão isolada longe está de ser jurisprudência, de modo a se revelar exagerada a afirmação de que a divergência se pacificou.

É certo, porém, que a nossa legislação passou a conferir ao Judiciário verdadeira função de legislador, admitindo que ela possa criar verdadeiras normas que se imponham tal como se lei fossem. Atualmente, não são somente as súmulas vinculantes (art. 103-A, CF) que vinculam para a decisão dos casos futuros. Essas até perderam importância, dado o quanto efetivamente influenciam e vinculam os casos futuros as decisões em incidentes de assunção de competência (art. 947, § 3º, CPC) ou sobre demandas repetitivas proferidas em sede de especial e extraordinário (arts. 976 e 1.036, CPC). O que resulta das teses firmadas nesses julgamentos é norma geral e abstrata, que devem ser cumpridas e respeitadas, ainda que tenham vindo à luz num caso de pouca repercussão. 

2. Diante da força que se confere a essas decisões, a superação da tese há de ser reconhecida quando decisões contrárias surjam em julgados dotados da mesma eficácia que aqueles antes proferidos. Ainda que não se exija um procedimento específico, há de se resolver sobre sua revogação cercada dos mesmos cuidados que se teve na definição da tese. Isso, porém, no mínimo em certos casos, passa desapercebido. Atente-se, nessa linha de raciocínio, para os entendimentos do Superior Tribunal de Justiça sobre a cobrança de honorários advocatícios por sociedade de profissionais que não teve seu nome lançado na procuração conferida aos advogados.

O Superior Tribunal de Justiça, julgando, em 29 de junho de 2006, o recurso especial 654.543/BA, submetido à Corte Especial, entendeu, por maioria de votos, ser irrelevante para fins de recebimento de honorários que a sociedade de advogados conste referida no instrumento de mandato, dando provimento ao especial para reformar decisão do Tribunal Estadual que havia entendido haver a necessidade de uma procuração com a indicação da sociedade, mercê da outorga de poderes aos seus advogados. Reconheceu que a indicação da sociedade no mandato tem efeitos meramente éticos. A relatoria do caso passou ao Min. João Otávio de Noronha, que desceu a detalhes do caso, enfrentando a justificativa que se punha para a criação desta exigência, firmando que “O art. 15, § 3º, da Lei n. 8.906/94 normatiza uma questão de ética profissional que deve ser observada na relação entre a sociedade, os advogados sócios que a integram e os seus clientes.”

Apesar dessa qualificada decisão, outros pronunciamentos tiveram lugar em sentido inverso ao reconhecido, desprezando, pois, a posição antes definida, sem ao menos lhe conferir a devida importância. Entre outras, têm-se, em 02 de setembro de 2014, no julgamento de EDcl no AgRg no AREsp 92.254, Rel. Min. Assusete Magalhães; em 17 de novembro de 2015, no AgRg no AREsp n. 1.397.911, rel. Min. Raul Araújo; em 1º de março de 2018, no AgInt no AREsp 1.185.317, rel. Min. Luís Felipe Salomão; em 02 de dezembro de 2020, no AgInt no REsp 1.710.975, rel. Min. Francisco Falcão.

É certo que, neste entretempo, o tema também foi discutido no recurso especial n. 1.114.785, da relatoria do Min. Luiz Fux, no qual houve decisão exigindo que a sociedade constasse do mandato. Essa decisão prevaleceu, apesar de ter sido interposto o recurso de embargos de divergência, mas que não foi conhecido, ainda sob o argumento de que o nome da sociedade deveria constar da procuração.

Além do vigor que merece o pronunciamento da Corte Especial no julgamento do recurso especial n. 654.543, verifica-se que o lá decidido se mostra efetivamente correto. O § 3º, do art. 15, da lei 8.906/94, inserido no Capítulo IV do Estatuto da Advocacia que disciplina a sociedade de advogados, dispõe que “as procurações devem ser outorgadas individualmente aos advogados e indicar a sociedade de que façam parte”. Nada prevê nem o dispositivo, nem o capítulo em que está inserido acerca dos honorários advocatícios que, naquele diploma legal, é objeto do Capítulo V no qual, por sua vez, não se considera os honorários de sociedades, tratando do tema sobre o enfoque do advogado pessoa física.

Referido dispositivo disciplinando a sociedade de advogados preocupou-se com o aspecto ético-disciplinar, notadamente porque a pessoa jurídica não comete falta ética, o que somente é possível a partir do advogado pessoa física, dado que, como ensina Paulo Luiz Netto Lobo, “a sociedade jamais substitui os advogados, na atividade privativa da advocacia”, enfatizando, na sequência, que “as procurações não podem ser outorgadas à sociedade, mas aos advogados sócios (ou empregados)” (Comentários ao Estatuto da Advocacia, Brasília Jurídica, 2ª edição, 1996, p. 96).

Evidente que, como as regras sobre impedimento e incompatibilidade do advogado são previstas considerando a pessoa física do profissional, não se poderia permitir que, por meio da sociedade, pudessem ser cometidas faltas éticas, como seria o caso de profissionais de um mesmo escritório defenderem, num mesmo processo, partes diferentes e contrapostas. Em função disso, além de prever o § 3º do art. 15 a outorga da procuração aos advogados, portanto, à pessoa física, exigiu que as procurações viessem a “indicar a sociedade de que façam parte” os outorgados. A questão era somente ética, como reconhecido no julgamento do REsp 654.543 e também do REsp 426.301, rel. Min. Ruy Rosado de Aguiar.

A esse tempo, ainda eram incipientes as sociedades de advogados e, mais ainda, a cobrança de honorários pela sociedade, havendo mesmo quem negasse esta possibilidade. Ao se admiti-la, ou melhor, para se admiti-la, buscou-se um apoio legal e, então, socorreram-se da única previsão que havia associando advogado e sociedade. Passou-se, então, a admitir a cobrança pela sociedade, desde que ela estivesse mencionada na procuração outorgada aos advogados. Assim passou a ser regra, à falta de melhor disciplina do assunto.

3. O regramento da cobrança de honorários pela sociedade surgiu no novo Código de Processo Civil que, no § 15, do art. 85 passou a tratar da possibilidade de pagamento de honorários à sociedade de que o advogado faça parte. Essa disciplina veio à luz pela vez primeira, sem cogitar de exigir que, na outorga da procuração, seja mencionada a banca que o profissional constituído integra na qualidade de sócio. Não há essa exigência que, aliás, nunca existiu para a questão dos honorários.

O atual Código de Processo Civil, como sabido, é posterior à lei 8.906/94. Ademais, seu art. 85 cuida, em caráter especial e por inteiro, dos honorários advocatícios percebidos pela atuação em juízo, colocando expressamente o direito da sociedade aos honorários. Restou a vigorar sobre honorários o Estatuto da Advocacia, mas somente no que pertine aos honorários contratuais, que continuam, portanto, tratados pela lei 8.906/94.

Com isso, não foi revogado o § 3º, do art. 15, da lei 8.906/94, porém ficou suficientemente claro tratar-se de regra atinente às questões éticas que afetam as sociedades de advogados, tanto que se encontra encartada no Capítulo IV, daquela lei que cuida especificamente da sociedade de advogados e não de honorários.

Sua preocupação apresenta-se com relação à outorga de procuração individualmente, mencionando-se, contudo, a sociedade de que os outorgados façam parte. Isso nada tem com honorários, mas volta-se somente ao controle ético, dado que as incompatibilidades e impedimentos de um dos componentes da sociedade contagiam a todos os demais da mesma sociedade, tanto que o próprio art. 15 destaca, em outro parágrafo, que advogados de uma mesma sociedade não podem representar em juízo clientes de interesses opostos (§ 6º).

Destarte, diante da disciplina específica do Código de Processo Civil sobre honorários advocatícios decorrentes de processo judicial, sua regra haveria, pela particularidade, sobrepor-se à disposição que cuida da sociedade de advogados, não se imiscuindo uma com a outra, como ensinam os doutrinadores.

Carlos Maximiliano, elencando “preceitos orientadores da exegese literal” arrola “a posição dos textos” que tem o condão de esclarecer o hermeneuta (Hermenêutica e Aplicação do Direito, Forense, 19ª edição, 2002, pág. 91). Se o texto específico (artigo que trata de honorários advocatícios) não contém a exigência lançada pelo acórdão, por que razão haveria de se buscar essa exigência num capítulo da lei que dos honorários não cuida? Não há coerência nisso.

Tércio Ferraz Sampaio, analisando a interpretação extensiva, afirma que com ela “o intérprete altera a norma, contra o pressuposto de que a interpretação deve ser fiel – o mais possível – ao estabelecido na mensagem normativa”, concluindo, mais adiante, que, com a interpretação extensiva, “o intérprete toma de uma norma e a aplica a um caso para o qual não havia preceito algum, pressupondo uma semelhança entre os casos” (Introdução ao Estudo do Direito, Atlas, 2ª edição, 1996, pág. 296). É o que está acontecendo, pois o preceito, previsto para uma questão de ética, está sendo usado para cercear o direito do sócio de destinar a sua receita para a sociedade de que faz parte.

4. Não há como, portanto, se deixar de reconhecer que o § 3º, do art. 15, do Estatuto da Advocacia (Lei 8.906/94) está sendo interpretado erradamente, pois usado para criar um fundamento para a cobrança de honorários pela sociedade que não existe em toda a disciplina dos honorários e, particularmente, dos honorários cobrados por sociedade.

Igualmente, ofende-se o § 15 do art. 85 do Código de Processo Civil na medida em que se coloca um pressuposto para a sociedade cobrar honorários que não está declinado na lei, que se contenta apenas com a indicação do advogado, tanto que reza: “o advogado pode requerer que o pagamento dos honorários que lhe caibam seja efetuado em favor da sociedade de advogado que integra na qualidade de sócio”. Dessa forma, está sendo suprimido do advogado um direito que a lei lhe concede e, assim, ofendendo-se a norma.

Há, portanto, que prevalecer o entendimento pretérito, quer pela sua eficácia, em função do órgão prolator da decisão, quer pelas superiores razões jurídicas que o sedimentam.

Clito Fornaciari Júnior
Graduado em Direito pela Faculdade de Direito da PUC. Mestre em Direito Processual Civil pela PUC/SP. Advogado e sócio do escritório Clito Fornaciari Júnior - Advocacia.

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