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Lei geral do esporte e lei de improbidade administrativa: reflexões sobre a gestão de entidades esportivas

Avançamos muito, em termos de legislação para coibir a má gestão, a gestão temerária, mas precisamos avançar ainda mais. Menos em termos de legislação e mais em termos de conscientização dos agentes envolvidos nos conselhos e assembleias de entidades esportivas.

2/10/2023

A Lei Geral do Esporte (LGE), lei 14.597/23, é uma das mais importantes no cenário esportivo brasileiro. Na verdade, trata-se da consolidação, em um único dispositivo legal, de diversas leis, anteriormente existentes (Lei Pelé, Estatuto do Torcedor, Lei de Incentivo ao Esporte, Lei da Bolsa Atleta). Ela regulamenta diversas questões, como a organização e o funcionamento de entidades esportivas, direitos e deveres dos atletas, transferências de jogadores, contratos esportivos, entre outros aspectos relacionados ao esporte, e que vieram a dar uma maior eficiência na gestão de todos os envolvidos no processo. O tema é amplo demais para ser tratado num único artigo, de modo que no presente texto, a ênfase será dada no papel dos órgãos de gestão, especialmente o Conselho de Administração, Conselho Fiscal e Assembleia Geral, além de realizar uma análise de eventual responsabilização dos seus ocupantes em consonância à Lei de Improbidade Administrativa (LIA), lei 8.429/92, com a redação dada pela lei 14.230/21.

O art. 34 da LGE é o primeiro ponto a ser destacado no presente artigo, o mesmo diz, literalmente, “as organizações esportivas que receberem recursos oriundos da exploração de concursos de prognósticos, sorteios e loterias administrarão esses recursos em consonância com os princípios gerais da administração pública, podendo empregá-los diretamente ou de forma descentralizada por meio das organizações que compõem seus respectivos subsistemas, e serão fiscalizadas, nessa atividade, pelo TCU. ” Ou seja, ao receberem os recursos que recebem, da forma que recebem, tais entidades sujeitam-se aos princípios gerais da administração pública. Tal ponto é importante e será, em breve, analisado em consonância a LIA.

Ao receberem recursos públicos (transferências de diversos tipos), algumas contrapartidas são exigidas, tal como previsto no art. 36 da LGE. Destaco alguns, que julgo mais importantes e são apresentados a seguir:

“....

IX - assegurem a existência e a autonomia do seu conselho fiscal e a presença mínima de 30% (trinta por cento) de mulheres nos cargos de direção;

X - estabeleçam em seus estatutos:

a) princípios definidores de gestão democrática;

b) instrumentos de controle social da prestação de contas dos recursos públicos recebidos;

c) transparência da gestão da movimentação de recursos;

d) mecanismos de controle interno;

e) alternância no exercício dos cargos de presidente ou dirigente máximo, com mandato limitado a 4 (quatro) anos, permitida uma única reeleição consecutiva, por igual período;

f) aprovação das prestações de contas anuais pelo órgão competente na forma do seu estatuto, precedida por parecer do conselho fiscal

.....”

Alguns comentários merecem ser feitos aqui. Em relação ao Conselho Fiscal, segundo a própria cartilha “A Boa Governança no Esporte”, do Comitê Olímpico Brasileiro, há que se ter conselheiros com conhecimentos de finanças e contabilidade, pois do contrário, dificilmente poderão tomar as contas da entidade a que estão vinculados, de forma efetiva. Há que se lembrar que os membros do Conselho Fiscal respondem por suas ações (e omissões), o que será objeto de análise a seguir. Outro ponto que merece um maior detalhamento diz respeito à transparência na gestão, de um modo geral, e na gestão dos recursos financeiros, de modo específico. Novamente há que se atentar que respondem solidariamente os membros do Conselho de Administração, Fiscal, bem como a Assembleia Geral, caso aprovem as contas. A transparência que se exige aqui é a mais ampla possível. Há que se lembrar que estamos falando de recursos públicos. Vale dizer que até mesmo a LGPD, lei 13.709/18, não se presta, e não deve ser invocada, para omitir qualquer informação necessária para a prestação de contas. Aqui, obviamente, não estamos falando das informações sensíveis (tais como preferência política, orientação sexual, ou religiosa, por exemplo), mas tais informações não são relevantes para a tomada de contas. Invocar a LGPD para omitir a prestação de informações, de forma ampla e transparente, constitui crime de responsabilidade e deve ser cobrado da gestão, de forma efetiva, pelo Conselho Fiscal, de Administração, ou Assembleia Geral.

O Título II, da LGE, trata da ordem econômica desportiva. Apontando, dentre outras coisas, a questão da responsabilidade na gestão esportiva. Preceitos básicos como responsabilidade corporativa, transparência, prestação de contas, estão aqui presentes. Não se trata de palavras ao vento, trata-se de cobrança por ações efetivas, no sentido de que tais ações sejam efetivas. Cabe aos órgãos da gestão e de controle (aqui representados pelo Conselho de Administração e Fiscal, bem como pela Assembleia Geral), zelar pela efetiva aderência da gestão aos princípios basilares da administração pública. Para a consecução da sua função de fiscalização, a LGE, no seu art. 61 assegura, inclusive, aos membros da assembleia geral o acesso a todo e qualquer documento necessário para a análise e prestação de contas. Por óbvio, nem preciso dizer que isso é mais do que aberto aos membros do Conselho Fiscal.

O art. 64, da LGE, traz alguns pontos importantes acerca dos deveres do gestor. “Para os fins do disposto nesta lei, gestor esportivo é aquele que exerce, de fato ou de direito, poder de decisão na gestão da organização, inclusive seus administradores.

Parágrafo único. É dever do gestor esportivo agir com cautela e planejamento de risco, atentando-se especialmente aos deveres de:

I - diligência: caracterizada pela obrigação de gerir a organização com a competência e o cuidado que seriam usualmente empregados por todo homem digno e de boa-fé na condução dos próprios negócios;

II - lealdade: caracterizada pela proibição de o gestor utilizar em proveito próprio ou de terceiro informações referentes aos planos e aos interesses da organização, sobre os quais somente teve acesso em razão do cargo que ocupa;

III - informação: caracterizada pela necessária transparência dos negócios da organização, com a obrigação de o gestor, sempre de forma imediata, informar os interessados sobre qualquer situação que possa acarretar risco financeiro ou de gestão, bem como de informar sobre eventuais interesses que possua e que possam ensejar conflito de interesse com as atividades da organização. “

Ou seja, o gestor deve gerir a entidade com o máximo de transparência, com o máximo de zelo, tanto administrativo, quanto financeiro. A entidade não existe para a satisfação dos interesses, de qualquer ordem. Qualquer desvio de uma ação nesse sentido irá caracterizar desvio de finalidade, má gestão, e será passível de capitulação, com base na LIA.

Os artigos 66 e 67 tratam da gestão temerária no esporte. Importante ressalvar que TODOS os dirigentes esportivos respondem de forma solidária e ilimitada pelos atos praticados. Diz o texto da lei que:

“Os dirigentes das organizações esportivas, independentemente da forma jurídica adotada, têm seus bens particulares sujeitos ao disposto no art. 50 da lei 10.406, de 10 de janeiro de 2002 (CC).

§ 1º Para os fins do disposto nesta Lei, dirigente é aquele que exerce, de fato ou de direito, poder de decisão na gestão da entidade, inclusive seus administradores.

§ 2º Os dirigentes de organizações esportivas respondem solidária e ilimitadamente pelos atos ilícitos praticados e pelos atos de gestão irregular ou temerária ou contrários ao previsto no contrato social ou estatuto.

§ 3º O dirigente que tiver conhecimento do não cumprimento dos deveres estatutários ou contratuais por seu predecessor ou pelo administrador competente e deixar de comunicar o fato ao órgão estatutário competente será responsabilizado solidariamente.

Art. 67. Consideram-se atos de gestão irregular ou temerária praticados pelo dirigente aqueles que revelem desvio de finalidade na direção da organização ou que gerem risco excessivo e irresponsável para seu patrimônio, tais como:

I - aplicar créditos ou bens sociais em proveito próprio ou de terceiros;

II - obter, para si ou para outrem, vantagem a que não faz jus e de que resulte ou possa resultar prejuízo para a organização esportiva;

III - celebrar contrato com empresa da qual o dirigente, seu cônjuge ou companheiro ou parentes, em linha reta, colateral ou por afinidade, até o terceiro grau sejam sócios ou administradores, exceto no caso de contratos de patrocínio ou doação em benefício da organização esportiva;

IV - receber qualquer pagamento, doação ou outra forma de repasse de recursos oriundos de terceiros que, no prazo de até 1 ano, antes ou depois do repasse, tenham celebrado contrato com a organização esportiva;

V - antecipar ou comprometer receitas em desconformidade com o previsto em lei;

VI - não divulgar de forma transparente informações de gestão aos associados;

VII - deixar de prestar contas de recursos públicos recebidos.

.....”

Vale destacar que antecipar ou comprometer receitas, em desconformidade com o previsto em lei, bem como não divulgar de forma transparente as informações da gestão aos associados podem ser enquadradas como gestão temerária. Neste caso, de acordo com o previsto no art. 68, a assembleia geral poderá ser convocada por 30% dos associados com direito a voto, para deliberar sobre a instauração de procedimento de apuração de responsabilidade, caso não tenha sido tomada nenhuma medida de apuração e instauração de procedimento, após o prazo estabelecido na lei, atendidas algumas condições.

Após os breves comentários acerca da LGE, para fechar o artigo, vou amarrar o que foi comentado anteriormente, com a LIA. O sistema de improbidade administrativa atingirá o gestor esportivo, e todos os administradores e membros da gestão que têm responsabilidade pelos atos de gestão. Vale dizer que a responsabilização pode se dar por ação, ou omissão e pode ser solidária e ilimitada. O §6º do art. 1 da LIA é claro ao estabelecer que “estão sujeitos às sanções desta lei os atos de improbidade praticados contra o patrimônio da entidade privada que receba subvenção, benefício ou incentivo, fiscal ou creditício, de entes públicos ou governamentais...”. A ação e extensão da lei é a mais ampla possível. O próprio art. 3 estabelece que “as disposições desta lei são aplicáveis, no que couber, àquele que mesmo não sendo agente público, induza ou concorra dolosamente para a prática de improbidade”. O art. 7º determina que o indício de improbidade deve ser denunciado ao MP competente, para as providências. O encaminhamento pode ser feito por autoridade ou membro da gestão, ou por terceiros, desde que tenha conhecimento do fato. Não se trata de condenação prévia, apenas de denúncia, a ser apurada, na forma da lei, com direito ao contraditório e ampla defesa, pelo MP.

O conceito de improbidade administrativa, na letra da lei, é amplo. Pode ser considerado como improbidade desde o uso de recursos da entidade em proveito próprio, como viagens, campanhas publicitárias em que o foco esteja no gestor e não na instituição, além do gasto excessivo, aquele que coloca em risco a solvência da instituição esportiva. Mais grave do que os exemplos citados acima, embora os mesmos já sejam suficientemente graves para uma apuração, está o fato de liberar recursos públicos sem a estrita observância das normas legais. Aqui pode-se pensar em contratação de pessoas sem o devido processo seletivo, ou todo e qualquer gasto que não esteja previamente autorizado e inscrito no planejamento orçamentário. Os princípios da administração pública, tais como a moralidade, publicidade, finalidade, dentre outros, devem ser observados na sua plenitude. É inadmissível, a contratação de funcionários para cargos técnicos ou administrativos, sem o devido edital, sem o devido processo seletivo. Isso afronta diversos princípios constitucionais da administração pública e, como tal, tem que ser coibido e combatido. O art. 11, da LIA traz, no detalhe, muitos dos pontos aqui mencionados. Vale citar: “Constitui ato de improbidade administrativa que atenta contra os princípios da administração pública a ação ou omissão dolosa que viole os deveres de honestidade, de imparcialidade e de legalidade, caracterizada por uma das seguintes condutas:         

I - praticar ato visando fim proibido em lei ou regulamento ou diverso daquele previsto, na regra de competência;

II - retardar ou deixar de praticar, indevidamente, ato de ofício;

III - revelar fato ou circunstância de que tem ciência em razão das atribuições e que deva permanecer em segredo, propiciando beneficiamento por informação privilegiada ou colocando em risco a segurança da sociedade e do Estado;        

IV - negar publicidade aos atos oficiais, exceto em razão de sua imprescindibilidade para a segurança da sociedade e do Estado ou de outras hipóteses instituídas em lei;        

V - frustrar, em ofensa à imparcialidade, o caráter concorrencial de concurso público, de chamamento ou de procedimento licitatório, com vistas à obtenção de benefício próprio, direto ou indireto, ou de terceiros;       

VI - deixar de prestar contas quando esteja obrigado a fazê-lo, desde que disponha das condições para isso, com vistas a ocultar irregularidades

VII - revelar ou permitir que chegue ao conhecimento de terceiro, antes da respectiva divulgação oficial, teor de medida política ou econômica capaz de afetar o preço de mercadoria, bem ou serviço.

VIII - descumprir as normas relativas à celebração, fiscalização e aprovação de contas de parcerias firmadas pela administração pública com entidades privadas.    

IX - (revogado);        

X - (revogado);         

XI - nomear cônjuge, companheiro ou parente em linha reta, colateral ou por afinidade, até o terceiro grau, inclusive, da autoridade nomeante ou de servidor da mesma pessoa jurídica investido em cargo de direção, chefia ou assessoramento, para o exercício de cargo em comissão ou de confiança ou, ainda, de função gratificada na administração pública direta e indireta em qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, compreendido o ajuste mediante designações recíprocas;         

XII - praticar, no âmbito da administração pública e com recursos do erário, ato de publicidade que contrarie o disposto no § 1º do art. 37 da Constituição Federal, de forma a promover inequívoco enaltecimento do agente público e personalização de atos, de programas, de obras, de serviços ou de campanhas dos órgãos públicos.     

.....”

Vale a leitura, e analisar, no detalhe, cada um dos pontos colocados na lei. São situações graves, mas que muitas vezes ocorrem em entidades esportivas, que recebem recursos públicos e que são administradas como se os recursos fossem privados. Para que fazer um processo seletivo? Para que fazer publicidade institucional se posso fazê-la de forma personalista e buscar ganhos de imagem que possam alavancar minha carreira? Para que responder um questionamento ou praticar um ato de ofício, se posso postergar? Essas são algumas das atitudes que vão contra a lei e são passíveis de penalização pela LIA.

A responsabilidade primeira pelo acompanhamento da gestão de uma entidade esportiva, que receba recursos públicos, é de seus membros, da sua diretoria, do seu conselho de administração. Todavia, também é, e de forma expressa na lei, do conselho fiscal, bem como da assembleia geral. O art. 14 da LIA trata disso, e vai além, ao afirmar que “ qualquer pessoa poderá representar à autoridade administrativa competente para que seja instaurada investigação destinada a apurar a prática de ato de improbidade”.

Avançamos muito, em termos de legislação para coibir a má gestão, a gestão temerária, mas precisamos avançar ainda mais. Menos em termos de legislação e mais em termos de conscientização dos agentes envolvidos nos conselhos e assembleias de entidades esportivas...e porque não dizer, da própria comunidade esportiva e da população em geral, afinal os recursos são públicos, e como tal, merecem nosso respeito.

Domingos Rodrigues Pandelo Junior
Graduado e mestre pela FGV/SP. Doutor pela UNIFESP. Especialista em direito empresarial (IBMEC), direito público (IBMEC) e Holding Familiar (Verbo Jurídico). Também possui graduação em educação física (FEFIS) e especialização em ciências do esporte (UNIFESP). Foi professor dos programas de MBA do IBMEC SP, de graduação e MBA do INSPER e de programas de MBA da FGV Management. Experiência profissional no mercado financeiro, especialmente em valuation, fusões e aquisições, governança corporativa, planejamento patrimonial e family office. Na área esportiva atuou como Coordenador Técnico da Confederação Brasileira de Atletismo e Membro do Conselho Fiscal da Confederação Brasileira de Triatlo (em exercício).

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