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Desigualdade criminal: o pau que só dá em Chico

Sob a lente constitucional, pode-se observar que a jurisdição criminal, tal como engenhada em nosso ordenamento, dispõe de ferramentas hábeis ao redimensionamento das bitolas de seletividade, cuja utilização pode tender tanto para a correção quanto para o aprofundamento das desigualdades.

26/9/2023

O crescente abismo da desigualdade denunciado por Lula em seu discurso na abertura da Assembleia Geral das Nações Unidas, proferido no último dia 19 de setembro, lança luzes no maior desafio global do milênio.

O enorme reservatório que abasteceu a selvageria neoliberal do ocidente nas últimas décadas, parecia estar enfim se exaurindo, ingressando no “volume morto”.  Contudo, a avidez do “mercado” por sorver até a última gota teima em deter o pêndulo: nada de concessão a inadiáveis demandas sociais e ambientais, a ordem é procurar um alçapão no fundo do poço...

E, como disse Lula, “dos escombros neoliberais emerge o extremismo de direita”; em partes diversas do mundo assanha-se o neofascimo.

A verdade é que esse extremismo neofascista não veio para se opor à agenda neoliberal. Pelo contrário, surgiu para dar-lhe sobrevida. É o próprio alçapão.

Sobre isso, há uma pista eloquente: o “mercado” segue, como sempre fez, optando pela agenda neofascista quando contraposta a uma alternativa progressista.  Foi assim ontem e segue assim hoje: basta ver a opção do setor financeiro na corrente sucessão argentina, segundo noticia a mídia local.

Enfim, aqui e ali, para possibilitar a manutenção da “pegada” liberal na economia, descambou-se (no mínimo) para um “conservadorismo de costumes”, que investe na estratificação social por castas, com seus próceres surfando demagogicamente nessa agenda.

O método não é o de atenuar as desigualdades, mas, ao contrário, dar-lhes contornos e nitidez suficientes a justificar os privilégios e preconceitos de uma sociedade hipócrita e estamental, com fraturas abissais. Nesse método, espantalhos são costurados para justificar um estado permanente de guerra contra supostos “inimigos” (principalmente internos), que seriam etiquetados como antipatriotas libertinos e hereges (ou, numa palavra, “comunistas”).

Para isso, são capturadas e corrompidas não somente as instituições estatais, mas, também, a própria interpretação do ordenamento jurídico posto.

Ao lado do espantalho, que propicia o emergir de um Estado-beato, fanatizado e bedel da agenda de costumes, segue inabalada a hipertrofia do aspecto econômico em relação ao social, característica do Estado-financista e primaz desde o neoliberalismo. O maior poder econômico passa a se traduzir em posição de domínio social, que conta com o colo estatal e com o concurso de suas instituições, inclusive (ou especialmente) as que detêm o instrumental da força e o ofício da repressão.

Daí que o modelo de conservadorismo de costumes, da extrema-direita contemporânea, nada mais é do que um mero veículo de perpetuação que o “mercado” encontrou para, em conteúdo, conservar a vertente econômica liberal. 

E é por isso que não basta apenas trocar de veículo, na medida em que o destino e o itinerário sejam mantidos inalterados.

No caso do Direito, dá-se rigorosamente o mesmo: instrumentalizado em benefício da conservação dos matizes e dominações econômicas, serve de alimento à hipertrofia do Estado-econômico-financista em detrimento do Estado-político-social.

Para a prevalência da tecnocracia econômica e do fanatismo comportamental que a distrai e embala, mais uma vez o Direito Repressivo é chamado a atuar. É ele quem faz o “trabalho sujo”, segregando os “incômodos” e criminalizando a política. Os adversários políticos, tais como os “incômodos”, passam a ser havidos como “inimigos” a serem abatidos. 

Esses “incômodos” - que no fundo sofrem de modo agudo as consequências dessas novas tecnologias do tipo “mudar-para-conservar” - são os mesmos imputáveis de sempre: o estereótipo do “triplo p”, cujo distintivo à testa, como a estrela nazista bordada, reluz ainda mais intensamente numa sociedade dividida, extremada, mergulhada nesse abismo crescente da desigualdade.

Os aspectos substancialmente desigualitários adotados pelos órgãos estatais em relação aos indivíduos, detectados desde a política de elaboração do material normativo criminalizante (criminalização primária), terminam sendo sensivelmente potencializados pelo aparato ostensivo de repressão, em especial, os mecanismos seletivos de atuação das polícias (agências de criminalização secundária).

Assim, no mais das vezes, os casos concretos que aportam no aparelho pós-policial de contenção criminal (em especial, o Ministério Público e o Poder Judiciário) revelam basicamente o material garimpado e lapidado na instância policial – e isso a partir de um instrumental normativo já iníquo em sua gênese –, o qual se aparta metodicamente das volumosas cifras negras da criminalidade (convenientes e fundamentais ao sistema). E se agudiza num modelo extremado, fascistoide, o qual perdura até mesmo ao cabo de seu ciclo, como nódoas entranhadas de difícil remoção.

No ambiente de Estado policialesco, tornam-se encontradiças ilegítimas ações coordenadas entre polícia, órgão de acusação e integrante do próprio judiciário, cujo escopo é perseguir e alhear os inimigos do sistema, incluindo os “incômodos”. Aquilo que pejorativamente é chamado de “lavajatismo” revela-se o exemplo mais recente e eloquente dessa concertação espúria.

Nesse contexto, há inegável introjeção de motivação corporativa e político-ideológica nos ambientes institucionais, no sentido de perpetuação do “status quo”, das estratificações sociais, e, em última análise, de seus próprios privilégios derivados do ofício.

Não há dúvida de que comparado ao mecanismo de controle social como um todo, o campo de atuação do Estado-Judicial revela-se um tanto limitado, sofre restrições desde a matéria-prima que o alimenta.

Ainda assim, sob a lente constitucional, pode-se observar que a jurisdição criminal, tal como engenhada em nosso ordenamento, dispõe de ferramentas hábeis ao redimensionamento dessas bitolas de seletividade, cuja utilização pode tender tanto para a correção quanto para o aprofundamento das desigualdades. Inclusive para controle da atividade da agência primária de criminalização, invertendo-se a prática de hoje, em que o rabo abana o cão (a agência policial é quem pauta a judicial, que tem preferido se conformar ao conforto de sua omissão).

Sendo o incremento do ativismo ou criatividade jurisdicional um fenômeno típico do mundo contemporâneo, seja isso positivo ou negativo (não cabe aqui a discussão), o fato é que pode(ria) ser utilizado para remediar ou intensificar o tratamento penal desigualitario, como antídoto ou veneno, minimizando ou maximizando as distorções trazidas pelas instâncias preliminares de criminalização.

Porém, o grau de desconfiança dos jurisdicionados e o alcance desigual da jurisdição criminal (que pode ser constatado a partir do perfil carcerário nacional) são sintomas que sugerem que, lamentavelmente, a atuação judicial não tem sido eficiente como vetor de correção da desigualdade, muito ao contrário, lamentavelmente. Nem nos governos liberais, nem nos de centro-esquerda.

E isso num ambiente de vigente Constituição “Cidadã”, que – ao contrário de outros lugares e tempos – fornece ferramentas de proteção contra a desigualdade, inclusive jurisdicional.

Com efeito, no Texto Constitucional, desde seu preâmbulo e princípios fundamentais, estabeleceu-se que as políticas públicas deveriam priorizar a erradicação da pobreza, da marginalização e a redução das desigualdades. Por meio do equilíbrio social, político e econômico emoldurou-se a finalidade prioritária do Estado democrático: a construção de uma “sociedade livre, justa e solidária” (Art. 3º e incisos).

A par de inequívocos avanços para redução da miséria (sobretudo nos governos Lula, conforme dizem os índices), em relação especificamente ao aspecto da criminalização, infelizmente, vimos seguindo de modo firme e linear na contramão dos ditames constitucionais, seguindo a trilha do alheamento social dos marginalizáveis, da preponderância de encarceramento dos mais carentes; em suma, da exacerbação dessa forma de desigualdade.

E nisso há responsabilidade dos governos, de todos os governos, inclusive federal, no exercício de suas funções executivas. É o Executivo quem comanda o aparato policial (agências primárias de criminalização), quem nomeia a chefia do Ministério Público e vários da cúpula do Poder Judiciário e, ainda, quem administra o sistema carcerário. Isso sem falar da iniciativa de alteração legislativa, através de sua base parlamentar.

É fundamental aperfeiçoar as estruturas institucionais, confrontar suas “igrejinhas”, seus espasmos aristocráticos, promover reformas necessárias e bem escolher seus dirigentes de cúpula. O compromisso há que ser com a população, especialmente a mais carente, e não com o próprio umbigo das instituições. É urgente, também, mudar o foco da produção normativa para o fim inclusão e proteção – e não o de caça e abate – dos periféricos da população mais vulnerável.

Se nesse assunto nada de positivo se espera de um governo fascistoide ou extremista de direita (cujo empuxo será sempre para agudizar ainda mais a desigualdade), de um governo com preocupação social é de sua essência que haja movimentação efetiva para, no mínimo, estruturar e institucionalizar mecanismos de aproximação ao ambiente preconizado pela vigente Constituição Cidadã. 

Ou então o único lombo a receber paulada será sempre o de Chico.

Paulo Calmon Nogueira da Gama
Mestre em Teoria do Estado e Direito Constitucional pela PUC-Rio

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