Em razão da instabilidade da jurisprudência brasileira, foram incluídas disposições no CPC/2015 que têm o nítido escopo de promover uma mudança na atuação dos tribunais no que diz respeito à uniformização de seus entendimentos, numa tentativa de impor-lhes a prática de seguir seus próprios precedentes e aqueles provenientes de tribunais que lhe sejam hierarquicamente superiores.
No art. 927, o CPC elencou provimentos que devem ser observados por todos os juízes e tribunais. No tocante ao Poder Público, a Constituição estabelece que as decisões proferidas pelo STF em controle concentrado de constitucionalidade e as súmulas vinculantes produzem eficácia contra todos e efeito vinculante, relativamente aos demais órgãos do Poder Judiciário e à administração pública direta e indireta (art. 102, §2º e art. 103-A).
Quanto aos demais pronunciamentos contidos no art. 927, não há expressa previsão de vinculação da Administração Pública, nem na Constituição, nem no CPC, embora haja construção doutrinária nesse sentido1.
Por outro lado, os arts. 985, §2º e 1.040, inciso IV dispõem que se o incidente ou recurso tiver por objeto questão relativa à prestação de serviço público concedido, permitido ou autorizado, o resultado do julgamento deve ser comunicado ao órgão, ao ente ou à agência reguladora competente para fiscalização da efetiva aplicação, por parte dos entes sujeitos à regulação, da tese adotada.
A partir da leitura de tais dispositivos, indaga-se: considerando que notários e registradores exercem serviço público delegado, conforme o art. 236 da Constituição, tais delegatários estão submetidos aos pronunciamentos judiciais vinculantes? Os arts. 985, §2º e 1.040, IV do CPC aplicam-se à atividade notarial e registral?
A doutrina diverge sobre a natureza e o alcance das regras contidas nos arts. 985, §2º e 1.041, IV do CPC.
Para Sofia Temer, tais dispositivos produzem eficácia meramente persuasiva para a Administração Pública, pois não há subordinação direta dos entes e órgãos fiscalizadores à tese fixada2.
Para Cassio Scarpinella Bueno, o art. 985, §2º e o art. 1.041, IV estabelecem uma forma de cooperação entre o órgão judicial e as pessoas, entes ou órgãos administrativos, criando condições de efetividade daquilo que restou decidido judicialmente3.
Alexandre Freitas Câmara, ao tratar do art. 1.040, IV, sustenta que, a partir da fixação precedente vinculante, o ente regulador deve produzir ato normativo de natureza administrativa, cuja observância é obrigatória pelos entes sujeitos à regulação4.
Analisando o teor do art. 985, §2º do CPC, André Guskow Cardoso vislumbra na norma um instrumento de cooperação. A comunicação ali prevista, como regra, não tem efeito vinculante, nem pode ser tida como uma ordem direta ao ente regulador. Ele considera indispensável o chamamento da entidade, do órgão ou da agência responsável pela regulação da atividade na qual tenha surgido a controvérsia para participar do incidente e chama a atenção para a necessidade da divulgação a todos os agentes regulados de que tramita um IRDR em que se discute tese jurídica relevante para o setor5.
Entende-se que os arts. 985, §2º e 1.040, IV constituem instrumentos voltados à cooperação entre o Judiciário e a Administração Pública, visando também a redução de demandas. Estabelecem um dever de fiscalização dos entes fiscalizadores em relação à efetiva aplicação das teses firmadas nos precedentes judiciais que se relacionem às atividades públicas delegadas. Para que possam fiscalizar, devem utilizar o precedente como base para edição de ato normativo aplicável aos entes/pessoas sujeitos à delegação.
Assim, tais regras têm três destinatários: a) o órgão judicial responsável pelo julgamento do IRDR ou do recurso repetitivo, b) os entes reguladores/fiscalizadores e c) as pessoas e entes sujeitos à regulação.
O órgão judicial tem o dever de comunicar o resultado do julgamento aos entes fiscalizadores quando o processo versar sobre atividade pública delegada/sujeita à regulação.
O entre regulador/fiscalizador deve, ao ser comunicado da decisão, expedir ato normativo estabelecendo o cumprimento da tese fixada pelos entes/pessoas sujeitos à fiscalização ou alterar os atos normativos eventualmente existentes, para que possa cumprir a função de fiscalizar a efetiva aplicação da tese.
Em relação às pessoas e entes que exercem atividade pública delegada/sujeita à regulação, só estarão diretamente vinculados aos precedentes se forem parte nos processos em curso ou em processos futuros relativos à tese. Inobstante, pensa-se que os arts. 985, §2º e 1.040, IV do CPC estabelecem uma vinculação indireta aos precedentes, posto que se o ente regulador/delegante expedir ato normativo estabelecendo o cumprimento da tese vinculante, aqueles deverão cumpri-lo.
Para garantir o contraditório, a cooperação e o devido processo legal, considera-se que: a) o entre regulador/fiscalizador que não seja parte deve ser convocado a participar do processo de fixação da tese, como amicus curiae; b) deve haver a ampla divulgação do processo em que se debate o tema, inclusive com realização de audiências públicas; c) o entre regulador/fiscalizador deve promover a divulgação a todos os entes/pessoas fiscalizados sobre a existência de processo em que se discute tese jurídica que poderá ter efeito vinculante relativa ao setor regulado/fiscalizado, inclusive por meio de suas associações e sindicatos.
Estabelecidas essas premissas, buscar-se-á responder se os delegatários dos serviços notariais e de registros estão submetidos aos precedentes judiciais vinculantes e se os arts. 985, §2º e 1.040, IV do CPC aplicam-se à atividade notarial e registral.
Essa temática não é corrente na doutrina, nem na processual, nem na registral e notarial. Mesmo nos textos analisam os arts. 985, §2º e 1.040, IV do CPC não há menção às serventias extrajudiciais, embora sejam normas que se refiram a serviço público delegado.
Nos termos do art. 236, caput, da Constituição, “os serviços notariais e de registro são exercidos em caráter privado, por delegação do Poder Público”. A atividade, embora exercida em caráter privado, é pública, conforme já decidiu o STF6.
A delegação é sui generis. Não se encaixa em nenhuma das modalidades geralmente estudadas no Direito Administrativo (concessão, permissão e autorização). Também não se perfaz mediante licitação nem contrato administrativo.
O ingresso na atividade ocorre mediante aprovação em concurso público (art. 236, §3º, da CF), realizado pelo Poder Judiciário (art. 15 da Lei 8.935/94), a quem cabe também a outorga da delegação.
Sendo a atividade delegada pelo Poder Público, mais especificamente, pelos Tribunais de Justiça estaduais, os delegatários estão submetidos à normatização e à fiscalização por parte do ente público delegante e essas atividades são desempenhadas pelas corregedorias estaduais e pelo CNJ (art. 103-B, §4º, I e III, da CFRB).
Os notários e registradores estão também submetidos a processo administrativo disciplinar e à perda da delegação em caso de descumprimento de seus deveres, estabelecidos em Lei e nas normas administrativas (arts. 30, XIV, 31, I e 32 a 35, lei 8.935/94).
Se a atividade notarial e registral é delegada pelo Poder Público e se os arts. 985, §2º e 1.040, IV do CPC referem-se a serviço público delegado, entende-se que tais dispositivos se aplicam ao CNJ e às corregedorias estaduais e, bem assim, aos notários e registradores.
Em sendo assim, tem-se que os arts. 985, §2º e 1.040, IV, no tocante à atividade notarial e registral, têm três destinatários: a) o órgão judicial responsável pelo julgamento do IRDR ou do recurso repetitivo; b) os entes delegantes, no caso, o CNJ e as corregedorias estaduais; e c) os delegatários (notários e registradores).
O órgão judicial no qual a tese foi fixada tem o dever de comunicar o resultado do julgamento ao CNJ e às corregedorias estaduais, quando o processo versar sobre atividade notarial e registral.
Para fins de cumprimento do dever de fiscalização da atividade delegada em relação à efetiva aplicação das teses firmadas, o CNJ e as corregedorias estaduais devem utilizar o precedente como base para edição de ato normativo aplicável às serventias, estabelecendo o cumprimento da tese fixada pelos delegatários ou alterar os atos normativos eventualmente existentes.
Uma vez editado o instrumento normativo pelo CNJ, suas disposições prevalecem sobre as regras estaduais eventualmente existentes, dado o poder normativo nacional do CNJ em relação aos serviços extrajudiciais.
Ademais, o CNJ e as corregedorias estaduais devem ser convocados a participar como amicus curiae dos processos em que se discuta tema relativo à atividade notarial e registral (art. 138 do CPC). Uma vez cientes do processo, terão o dever de fiscalização do cumprimento efetivo da tese e de expedição do ato normativo correspondente para que o cumprimento seja obrigatório para os delegatários.
Entende-se que os notários e registradores só estarão diretamente vinculados ao pronunciamento judicial se forem partes no processo, individual ou coletivo, no qual foi fixada a tese ou no qual a tese foi aplicada.
De outro lado, considerando-se o teor dos arts. 985, §2º e 1.040, IV do CPC, uma vez expedido ato normativo adequando a atuação notarial e registral ao pronunciamento judicial vinculante, será obrigatória a sua observância, em razão dos deveres contidos na lei 8.935/94.
Caso não haja ato normativo expedido pelas corregedorias, considera-se possível a aplicação, pelos delegatários, dos entendimentos firmados nos precedentes judiciais vinculantes relacionados à atividade notarial e registral, considerando-se a sua independência técnica e prudencial e a sua submissão ao ordenamento jurídico, o que inclui os precedentes judiciais. A atuação dos notários e registradores em conformidade com os precedentes judiciais é medida que prestigia a cooperação7 e a boa-fé, inclusive.
Inobstante, se a tese fixada contrariar norma das corregedorias às quais estão submetidos, não será possível a utilização dos entendimentos firmados nos precedentes judiciais pelos notários e registradores – face ao que dispõem os arts. 30, IV e 31, I da lei 8.935/94 – até que sejam modificadas, sob pena de responderem processo administrativo disciplinar.
Importante destacar que, mesmo não sendo formalmente comunicados acerca dos pronunciamentos judiciais vinculantes, nada impede que os entes delegantes tomem a iniciativa de expedir ato normativo com a finalidade de adequar a atuação notarial e registral ao seu teor. E isso tem ocorrido, notadamente no que se refere ao CNJ, que editou diversos atos normativos após decisões proferidas pelo STF com efeito vinculante, a exemplo do Provimento 73/18, que dispõe sobre a averbação da alteração de prenome e gênero no RCPN, editado após o julgamento da ADIn 42758; e do Provimento 63/17 que dispõe sobre o procedimento de reconhecimento socioafetivo de filiação no RCPN, editado com base no Tema 622 de Repercussão Geral9.
Trata-se de uma atuação voluntária do CNJ, levada a efeito de acordo com critérios de oportunidade e conveniência, que certamente toma em consideração a relevância de serem respeitados e observados os pronunciamentos vinculantes oriundos das Cortes Superiores, como forma de garantir a isonomia, a proteção da confiança e a segurança jurídica ao jurisdicionado e, no caso, ao usuário dos serviços notariais e de registros.
Essa adequação normativa, entrementes, deve ser a regra quando houver processos em que se discutam temas relacionados diretamente à atividade notarial e registral. Aliás, quando o pronunciamento judicial vinculante for oriundo de Tribunal Superior, o ato normativo deve ser expedido preferencialmente pelo CNJ, para que o tema seja regulamentado em todo o território nacional.
Na III Jornada de Direito Processual Civil do CJF, esta autora apresentou, perante a Comissão IV, enunciado com o seguinte teor: “Os arts. 985, §2º e 1.040, inciso IV aplicam-se aos serviços notariais e de registro”. Embora aprovado na Comissão e apesar de ter recebido voto favorável da maioria dos processualistas presentes na Plenária, o enunciado não alcançou o quórum necessário para aprovação (2/3). Espera-se que, com a publicação do presente texto, o tema seja bem compreendido e tratado com a relevância que possui pela doutrina processual, notarial e registral.
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1 A esse respeito, veja o texto de Marco Aurélio Peixoto e Rodrigo Becker: Como os precedentes constantes do art. 927 do CPC podem vincular a Administração Pública? E, por conseguinte, a atuação dos advogados públicos? Disponível em: https://www.jota.info/opiniao-e-analise/colunas/coluna-cpc-nos-tribunais/como-os-precedentes-constantes-do-art-927-do-cpc-podem-vincular-a-administracao-publica-13092019, capturado em 18.08.2021).
2 Incidente de Resolução de Demandas Repetitivas. Salvador: Juspodivum, 2016, p.221
3 BUENO, Cassio Scarpinella. Novo Código de Processo Civil anotado. São Paulo: Saraiva, 2015, p. 629 e 683.
4 O novo processo civil brasileiro. São Paulo: Atlas, 2015, p. 555.
5 O Incidente de Resolução de Demandas Repetitivas – IRDR e os serviços concedidos, permitidos ou autorizados. In: Revista de Direito Administrativo Contemporâneo, Vol.23 (março-abril 2016). Disponível em: Disponível em http://www.mpsp.mp.br/portal/page/portal/documentacao_e_divulgacao/doc_biblioteca/bibli_servicos_produtos/bibli_boletim/bibli_bol_2006/RDAdmCont_n.23.06.PDF. Acesso em: 20.08.2021.
6 ADIn 2415, Relator Min. AYRES BRITTO, j. em 22/09/2011, DJe 09-02-2012
7 A desjudicialização e o necessário incremento da cooperação entre as esferas judicial e extrajudicial”. ALVES, Lucélia de Sena. SOARES, Carlos Henrique. FARIA,Gustavo de Castro. BORGES, Fernanda Gomes e Souza. 4 anos de vigência do Código de Processo Civil de 2015. Belo Horizonte: D'Plácido. 2020. Pp. 173-203.
8 ADIn 4275, Relator p/ Acórdão Min. EDSON FACHIN, j. em 01/03/2018, DJe 07-03-2019.
9 RE 898060, Relator Min. LUIZ FUX, j. em 21/09/2016, DJe 24-08-2017.