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Dados à deriva: quando a violação à lei geral de proteção de dados pelos partidos também se torna uma questão de gênero na política

Para garantir a integridade dos processos democráticos e a proteção dos dados pessoais, é fundamental abordar esse desafio com responsabilidade e rigor regulatório. O equilíbrio entre esses dois objetivos é essencial para a construção de uma sociedade justa e igualitária.

26/9/2023

Consideremos o seguinte cenário: uma mulher filiada a um partido político é surpreendida com a divulgação de seu nome como candidata nas eleições, mesmo sem ter participado da convenção partidária e sem autorizar que o partido solicitasse seu registro. Essa situação, que pode parecer hipotética, é, na verdade, um fato que tem sido recorrente em ações eleitorais que envolvem fraude ao sistema de cotas de gênero.

A busca pela igualdade de gênero é um movimento global que tem levado muitos países a adotarem cotas de candidatura para mulheres. O direito internacional dos direitos humanos, a proteção dos dados e a participação política das mulheres no mundo estão intimamente relacionados.

A privacidade é essencial para que as mulheres possam não só se expressar livremente e participar da vida pública sem medo de represálias, como também a proteção de seus dados é importante, pois é preciso haver certeza de que esses dados estarão seguros e não serão usados para fins discriminatórios e ilícitos.

Em relação ao processo eleitoral, no Brasil, a lei das eleições estabelece que cada partido político deve preencher um percentual mínimo de 30% de candidaturas femininas em eleições proporcionais. É poder-dever da agremiação partidária apoiar, formar, promover, incluir e proteger a participação política das suas mulheres filiadas, desde atos preparatórios eleitorais, como a pré-campanha, como durante todo o processo eleitoral1.

O debate entre processo eleitoral e dados se tornou relevante e atual após a promulgação da lei geral de proteção de dados pessoais (LGPD).

A LGPD traz especificações a respeito dos direitos das pessoas titulares de dados pessoais e estabelece obrigações para agentes que os tratam. A lei visa proteger os direitos fundamentais de liberdade e privacidade das pessoas, assegurando que seus dados sejam tratados de forma lícita, transparente e segura. Em seu artigo 6º, inciso IX, estabelece o seguinte:

Art. 6º As atividades de tratamento de dados pessoais deverão observar a boa-fé e os seguintes princípios:     

[...]

IX - não discriminação: impossibilidade de realização do tratamento para fins discriminatórios ilícitos ou abusivos.

A LGPD é uma ferramenta importante e sua correta aplicação, em nosso sentir, fortalecerá o modelo de proteção dos direitos das mulheres no Brasil, o qual tem no artigo 5º da CF sua matriz valorativa.

Mas, como e em que medida a proteção de dados e a prática de fraude ao sistema de cotas de gênero se relacionam?

Os partidos políticos são agentes de tratamento de dados pessoais, pois coletam, armazenam e processam dados pessoais de seus filiados, candidatos e eleitores. Por isso, devem obedecer à LGPD e cumprir algumas obrigações, como as que descreveremos, em resumo, a seguir.

Os partidos políticos só podem coletar e processar dados pessoais com o consentimento do titular. Portanto, devem obter o consentimento. As agremiações partidárias também devem tratar os dados pessoais de forma lícita, transparente e segura, cumprindo os princípios da LGPD.

Além disso, os partidos políticos devem adotar medidas técnicas e organizacionais para garantir a proteção dos dados pessoais contra acessos não autorizados, uso indevido, divulgação, destruição, perda ou modificação. Ou seja, deve agir para garantir a proteção dos dados pessoais, sobretudo, de seus filiados e filiadas.

Para tornar mais claro e ilustrativa nossa explanação, elencaremos, nas linhas abaixo, alguns exemplos de violações, por parte das agremiações, que podem vir a ocorrer.

No que tange ao ilícito “fraude à cota de gênero”, em resumo, ele ocorre quando indivíduos, representando organizações, manipulam o sistema para cumprir as exigências legais e burlar a ação afirmativa de representação de gênero na política, prejudicando a integridade do processo democrático, assim como os valores igualdade, normalidade e os princípios republicanos.

Segundo Laena:

[…] há a configuração de uma fraude eleitoral praticada pelos partidos políticos, com a finalidade de garantir que seus candidatos reais – majoritariamente homens – participem da disputa eleitoral. Sem compromisso com a lei e com regras morais, tampouco com o princípio constitucional da igualdade de gênero, essas entidades usam mulheres para viabilizarem o deferimento do registro das chapas e a eleição dos concorrentes de seu interesse2.

Essa manipulação ocorre de muitas formas. Há muita criatividade partidária quando se trata de burlar o sistema de cotas de gênero. E uma delas tem sido apostar no uso dos dados das filiadas, sem seu conhecimento e consentimento, para registrá-las como candidatas fictícias com o intuito de garantir a registrabilidade da chapa e o deferimento do Demonstrativo de Registro de Atos Partidários (DRAP).

Portanto, a interseção entre a fraude à cota de gênero e a LGPD ocorre quando a coleta de dados pessoais é usada para criar um ar de aparente validação do registro partidário em conformidade com o sistema de cotas de gênero.

Em meio a essa discussão, importante registrar que a legislação eleitoral estipula várias regulamentações às atividades político-partidárias, as quais estão diretamente relacionadas à proteção de dados pessoais.

Nos termos do guia elaborado pelo TSE e ANPD:

as disposições da LGPD são aplicáveis ao contexto eleitoral e devem ser observadas sempre que um partido político, uma candidata, um candidato ou qualquer outro(a) agente de tratamento realize uma operação com dados pessoais. É o que a lei denomina de “tratamento”, o qual inclui, entre outras, as atividades de coleta, classificação, armazenamento, transferência, transmissão e eliminação de dados pessoais3.

Percebe-se que esse uso, proteção e tratamento de dados pessoais não passa ao largo das questões atinentes à participação política da mulher, já que, o que tem se constatado nos últimos tempos, é justamente a prática de abuso de poder político partidário mediante o uso, sem consentimento, de dados de mulheres para fraudar o DRAP.

Até no debate entre uso e proteção de dados, o gênero feminino está em desvantagem, quando se trata de utilização para fins político-partidários, principalmente porque estamos falando de dados sensíveis, para os quais há maior rigor em sua proteção.

Entendemos que quando a prática de fraude às cotas de gênero ocorre ao arrepio do consentimento da candidata lançada fictamente, o ilícito se torna ainda mais grave e repudiável, pois a agremiação, que deveria controlar, tratar e proteger seus dados pessoais e sensíveis, disponibilizados quando da filiação e/ou atualização cadastral, passa a usá-los com desvio de finalidade para fraudar um documento indispensável ao processo eleitoral e à justiça democrática.

A fraude à cota de gênero, por si só, é um tema que levanta questões éticas e legais complexas. Quando estamos diante de casos que apostam no uso dos dados das filiadas, sem seu conhecimento e consentimento, para registrá-las como candidatas fictícias, a gravidade das circunstâncias do ilícito ganha maiores contornos, vez que o fator risco à privacidade dos indivíduos, no caso, filiadas, e a integridade dos processos democráticos mediante o uso indevido de dados, são fatores legais que se somam ao que já estamos habituados a enxergar com abuso de poder para fins de aplicação do art. 22, caput, da LC 64/90.

O art. 22, da LC 64/90, em seu inciso XIV, prevê que, julgada procedente a representação, a JE aplicará as sanções previstas no inciso e, além delas, determinará a remessa dos autos ao MPE, para instauração de processo disciplinar, se for o caso, e de ação penal, ordenando ainda quaisquer outras providências que a espécie comportar. No mínimo, cabe à JE oficiar a Agência Nacional de Proteção de Dados (ANPD) para que ela, enquanto entidade reguladora, tenha ciência dos fatos e passe a investigá-los.

Proteger os dados das mulheres filiadas aos partidos políticos contra o uso indevido, especialmente para praticar fraude à cota de candidatura de gênero, é fundamental para garantir a integridade do processo democrático e promover a igualdade de gênero. Por essa razão, elencamos, abaixo, algumas medidas que podem ser tomadas para proteger as filiadas:

Para evitar que os dados das filiadas continuem à deriva, não podemos mais fingir que os partidos não infringem a LGPD quando praticam tais ilícitos; ou que a aplicação da LGPD não deve ser exigida, e com ainda mais rigor, das agremiações partidárias.

Isso porque, quando da prática de fraude às cotas de gênero, as agremiações partidárias ofendem e afrontam muitas camadas e dimensões do ordenamento jurídico brasileiro com vistas a burlar a integridade do sistema político.

Os partidos políticos devem adotar medidas para garantir o tratamento adequado dos dados pessoais de seus filiados(as), candidatos(as) e eleitores(as).

 A aplicação da LGPD com mais seriedade aos partidos e ao processo eleitoral é uma necessária e importante ferramenta para desinibir a prática de fraude à cota de gênero quando esta ocorrer pelo uso indevido dos dados das filiadas, principalmente em razão das severas sanções que a LGPD estabelece.

Contudo, precisa haver compromisso e seriedade no trato da questão, o que não se tem observado. Para ser eficaz, a implementação da LGPD deve ser encarada como um processo amplo e integrado, que não se limite a medidas pontuais e preventivas. Uma visão limitada à prevenção de responsabilidades pode ser equivocada e ineficiente4.

Estamos diante de uma situação em que a JE, em parceria com a ANPD, deverá enfrentar o desafio de equilibrar a promoção da igualdade de gênero com a proteção dos dados pessoais.

Para garantir a integridade dos processos democráticos e a proteção dos dados pessoais, é fundamental abordar esse desafio com responsabilidade e rigor regulatório. O equilíbrio entre esses dois objetivos é essencial para a construção de uma sociedade justa e igualitária.

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1 ALMEIDA, Jéssica Teles de. A proteção jurídica da participação política da mulher: fundamentos teóricos, aspectos jurídicos e propostas normativas para o fortalecimento do modelo brasileiro. 2018. 217f. Dissertação (Mestrado) - Faculdade de Direito, Universidade Federal do Ceará, Fortaleza-CE, 2018.

2 LAENA, Roberta. Fictícias: candidaturas de mulheres e violência política de gênero. Fortaleza: Radiadora, 2020. p. 147.

3 BRASIL, Tribunal Superior Eleitoral. Guia orientativo: aplicação da Lei geral de proteção de dados pessoais (LGPD) por agentes de tratamento no contexto eleitoral [recurso eletrônico]. – Dados eletrônicos (65 páginas). – Brasília. 2021. Disponível https://www.tse.jus.br/hotsites/catalogo-publicacoes/pdf/guia-orientativo-aplicacao-da-lgpd.pdf. Acesso em 22/8/23.

4 RODRIGUES, Tatiana Kolly Wasilewski.  Lei geral de proteção de dados (LGPD) e data mapping (mapeamento de dados): desa?os, perspectivas e como se adequar à nova lei na prática. In Empresas e implementação da LGPD ? Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais. Tarcísio Teixeira (coordenador). Salvador: Editora JusPodivm, 2021, p. 53.

Raquel Cavalcanti Ramos Machado
Mestre pela UFC, doutora pela Universidade de São Paulo. Professora de Direito Eleitoral e Teoria da Democracia. Membro da Academia Brasileira de Direito Eleitoral e Político - ABRADEP, do ICEDE, da Comissão de Direito Eleitoral da OAB/CE e da Transparência Eleitoral Brasil. Integra o Observatório de Violência Política contra a Mulher.

Jéssica Teles de Almeida
Mestre e Doutoranda pela UFC. Professora de Direito Eleitoral e Direitos Humanos da UESPI. Membro da Academia Brasileira de Direito Eleitoral e Político - ABRADEP, da Comissão de Direito Eleitoral da OAB/CE e do Grupo Ágora (UFC).

Tatiana Kolly Wasilewski Rodrigues
Mestra em Direito Negocial pela Universidade Estadual de Londrina (UEL). Assessora da Ouvidoria (Unidade Encarregada de Proteção de Dados) do Tribunal Superior Eleitoral.

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