Migalhas de Peso

A evasão de divisas

Trata-se de delito ofende de forma direta e reflexa os pilares de funcionamento da economia brasileira, pois o bem jurídico tutelado por essa norma visa resguardar a regularidade do sistema de política cambial do Brasil.

26/9/2023

A remessa ou a manutenção de valores, ao exterior, por qualquer meio, ainda que de forma fictícia, mediante compensações de valores no Brasil, é crime de evasão de divisas previsto no artigo 22 da lei 7.492/86:

O delito de evasão de divisas, previsto no art. 22, parágrafo único, da lei 7.492/86, pode ser praticado não só mediante a efetiva saída do território nacional de pessoa que deixe de declarar às autoridades moeda ou divisa como também mediante técnicas mais elaboradas e complexas como o sistema de remessas de valores por meio de compensações, o que é conhecido como operação dólar-cabo ou euro-cabo.(AgRg no REsp 1.463.883/PR, relator Ministro João Otávio de Noronha, Quinta Turma, julgado em 17/8/21, DJe de 20/8/21.)

De acordo a jurisprudência consolidada sobre o tema, a remessa fictícia de valores, que é conceitualmente conhecida como operação dólar-cabo ou euro-cabo, consiste em espécie de compensação de valores entre o beneficiário e o doleiro responsável pela concretização da remessa. Isso ocorre quando, por exemplo, o sujeito precisa pagar uma fatura no exterior, mas não quer fazer as comunicações obrigatórias às autoridades governamentais brasileiras.

O doleiro que, em regra, trabalha em co-autoria com outro doleiro que reside no exterior, e possui contas bancárias abertas no País vizinho, utiliza dessa facilidade para fazer o pagamento dessa fatura, sem a necessidade de saída material de qualquer valor do Brasil. Consequentemente, o beneficiário paga uma “taxa” sobre o valor da operação ao doleiro que reside no Brasil, e o negócio jurídico é concretizado.  

Portanto, de acordo com esse exemplo, não ocorre saída material de valores do Brasil, mas uma compensação financeira fictícia entre doleiros residentes em países opostos. Isto é, de forma simulada, o doleiro residente no Brasil promove, sem autorização legal, a saída de moeda ou divisa para o exterior, incorrendo, assim, no parágrafo único do artigo 22 da lei 7.492/86:

Art. 22. Efetuar operação de câmbio não autorizada, com o fim de promover evasão de divisas do País:

Pena - Reclusão, de 2 (dois) a 6 (seis) anos, e multa.

Parágrafo único. Incorre na mesma pena quem, a qualquer título, promove, sem autorização legal, a saída de moeda ou divisa para o exterior, ou nele mantiver depósitos não declarados à repartição federal competente.

Importante destacar que o crime em análise estará caracterizado independentemente do valor evadido, uma vez que o bem jurídico tutelado por essa norma visa resguardar as reservas cambiais brasileiras, ou seja, protege regularidade do sistema de política cambial do Brasil:  

“Comete o delito tipificado no art. 22, parágrafo único, primeira parte, da lei 7.492/86, aquele que efetua operações de câmbio não autorizadas e promove, sem autorização legal, a evasão de divisas do País, independentemente do valor, dado não carecer o referido tipo penal de complementação por ato regulamentar.” (APn 970/DF, relatora Ministra Maria Isabel Gallotti, Corte Especial, julgado em 4/5/22, DJe de 20/6/22.)

Aliás, como o objetivo da norma é proteger o Sistema Financeiro Nacional -SFN, a aplicação financeira realizada por meio da aquisição de cotas de fundo de investimento no exterior não declarado à autoridade competente pode caracterizar o crime de evasão de divisas:

Para fins de interpretação do termo "depósito" deve-se considerar o fim a que se destina a norma, pois visa proteção do SFN. A lei não restringiu a modalidade de deposito o local de depósito no exterior. Assim, não deve ser considerado apenas o depósito em conta bancária no exterior, mas também o valor depositado em aplicação financeira no exterior, em razão da disponibilidade da moeda e do interesse do SFN. (AREsp 774.523/SP, relator Ministro Joel Ilan Paciornik, Quinta Turma, julgado em 7/5/19, DJe de 13/5/19.)

No julgamento do HC 132.826/MS, relator Ministro Sebastião Reis Júnior, Sexta Turma, julgado em 13/9/11, DJe de 24/10/11 foi noticiado que a manutenção de depósito no exterior não declarado às autoridades governamentais não depende de resultado naturalístico, ou seja, se consuma independentemente de prejuízo. Confira os seguintes trechos do voto exarado pelo eminente relator do caso:

Os pacientes foram condenados por terem omitido, em suas declarações de imposto de renda, a manutenção de depósitos, no valor de US$ 619.100,00 (seiscentos e dezenove mil e cem dólares norte-americanos), em conta no exterior, agência de Nova Iorque/EUA, do Banco do Estado do Paraná, caracterizando a conduta tipificada no art. 22, parágrafo único, 2ª parte, da lei 7.492/86.

O referido crime é de natureza formal, ou seja, não exige o resultado naturalístico para sua consumação. Sendo assim, o prejuízo resultante da sua prática não é elementar do tipo penal, motivo pelo qual pode ser utilizado como fundamento para agravar a pena-base dos condenados.

Sendo assim, por possuírem objetos jurídicos distintos, o crime de evasão de divisas não se confunde com o delito tributário, ou seja, estará tipificado ainda que não ocorra o lançamento fiscal definitivo pela autoridade da Receita Federal: 

De acordo com o entendimento desta Corte, uma vez configurado o crime de evasão de divisas (art. 22, parágrafo único da lei 7.492/86), decorrente da conduta de manter no exterior valores não declarados à autoridade competente, não importa, para a existência do tipo penal, se eventuais créditos tributários foram ou não constituídos em favor do fisco, pois de crime contra a ordem tributária não se trata. Precedentes. (RHC 126.853/SP, relator Ministro Nefi Cordeiro, Sexta Turma, julgado em 25/8/20, DJe de 4/9/20.)

Além do mais, como o Sistema Financeiro Nacional é considerado um dos pilares de funcionamento da economia, o despretensioso negócio jurídico feito entre amigos, onde há uma compensação material de valores não declarados às autoridades governamentais, pode constituir o crime de evasão de divisas:   

A condenação do agravante foi justificada pelo Tribunal de origem com base nas conversas interceptadas e documentos apreendidos, bem como na sua admissão de ter emprestado dinheiro em reais e recebido no exterior em dólares, a configurar a prática de "dólar-cabo".” AgRg no REsp 1.905.931/SP, relator Ministro Joel Ilan Paciornik, Quinta Turma, julgado em 10/8/21, DJe de 16/8/21

Com efeito, se o proveito da infração penal tem aptidão suficiente para ocultar ou dissimular os valores oriundos da evasão de divisas, aqueles que participaram ou contribuíram para que o crime fosse consumado poderão ser responsabilizados por lavagem de dinheiro:

No que concerne à materialidade e à autoria do crime de lavagem de capitais, tem-se que as instâncias ordinárias, apreciando detalhadamente a prova produzida nos autos, concluíram pela caracterização do delito previsto no art. 1º da lei 9.613/98, pois os recorrentes ocultavam valores obtidos com a prática de outros ilícitos utilizando-se das off-shores Seline Finance Inc. e Fonteway C.S.A. (AgRg no REsp 1.535.111/SC, relator Ministro Felix Fischer, Quinta Turma, julgado em 6/3/18, DJe de 14/3/18.)

Como visto o crime de evasão de divisas pode ser praticado por qualquer meio, ainda que de forma fictícia, mediante compensação de valores entre doleiros residentes no Brasil e no exterior. Trata-se de delito ofende de forma direta e reflexa os pilares de funcionamento da economia brasileira, pois o bem jurídico tutelado por essa norma visa resguardar a regularidade do sistema de política cambial do Brasil.

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lei 7.492, de 16 de junho de 1986.

lei 9.613, de 3 de março de 1998.

APn 970/DF, relatora Ministra Maria Isabel Gallotti, Corte Especial, julgado em 4/5/22, DJe de 20/6/22.

AREsp 774.523/SP, relator Ministro Joel Ilan Paciornik, Quinta Turma, julgado em 7/5/19, DJe de 13/5/19.

HC 132.826/MS, relator Ministro Sebastião Reis Júnior, Sexta Turma, julgado em 13/9/11, DJe de 24/10/11.

RHC 126.853/SP, relator Ministro Nefi Cordeiro, Sexta Turma, julgado em 25/8/20, DJe de 4/9/20.

AgRg no REsp 1.905.931/SP, relator Ministro Joel Ilan Paciornik, Quinta Turma, julgado em 10/8/21, DJe de 16/8/21.

AgRg no REsp 1.535.111/SC, relator Ministro Felix Fischer, Quinta Turma, julgado em 6/3/18, DJe

Ricardo Henrique Araujo Pinheiro
Advogado especialista em Direito Penal. Sócio no Araújo Pinheiro Advocacia.

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