Migalhas de Peso

Condenação em R$ 1 bilhão por danos morais coletivos

A simples existência deste processo já depõe e muito contra o país. Eventual manutenção desta decisão poderá fazer o Brasil retroceder a uma era pré-internet, tornando verdadeira a máxima de Millôr Fernandes: “o Brasil tem, como futuro, um imenso passado pela frente”.

25/9/2023

Da não configuração do vínculo empregatício

Tem sido bastante comentado em todas as mídias, jurídicas ou não, que a 4ª Vara do Trabalho da Comarca de São Paulo (na Ação Civil Pública 1001379-33.2021.5.02.0004) condenou a UBER em R$ 1bilhão por danos morais coletivos, e, ainda, reconheceu o vínculo empregatício de todos os motoristas com a plataforma.

Com as devidas vênias àqueles que têm opinião jurídica diversa, entendemos a decisão temerária. Explicamos. Comecemos pela lei: o artigo 3º da CLT nos diz que empregado e todo aquele que presta serviço de natureza não eventual a empregados, [e] sob a dependência deste e mediante salário.

Em primeiro lugar temos que, como regra geral, toda a relação de trabalho é personalíssima, isto é, o empregado – salvo aquiescência do empregador não pode se fazer substituir. Com efeito, o caráter personalíssimo não diz respeito apenas às relações de emprego, mas às relações profissionais lato senso.

Um advogado “X” quando contratado para uma prestação de serviços não se pode fazer substituir por outro, salvo também, se previamente acertado com o cliente. (E a práxis nos mostra que esse tipo de substituição, mesmo quando previstas contratualmente, costumam gerar estremecimentos nas relações advogado-cliente.)

Esta é a regra geral que, para além da CLT, nos é dada pelo artigo 605 do Código Civil Brasileiro: Art. 605. Nem aquele a quem os serviços são prestados, poderá transferir a outrem o direito aos serviços ajustados, nem o prestador de serviços, sem aprazimento da outra parte, dar substituto que os preste.

Quanto à não-eventualidade da prestação de serviços, temos que a natureza da relação motorista-aplicativo é essencialmente eventual. Conversem com motoristas de aplicativos, não apenas da UBER. Há aqueles que dependem do aplicativo para a sua sobrevivência, mas há também aqueles que ficam longos períodos de tempo sem aceitar corrida alguma. Em nosso escritório temos alguns clientes que, por questões familiares, complementam sua renda com corridas esporádicas para empresas de aplicativo.

Mais ainda, motoristas de aplicativo, frequentemente, cancelam corridas (já aceitas inclusive). Não nos parece que isso seja algo comum a uma relação de emprego. Será que um garçom de um restaurante qualquer pode, deliberadamente, deixar de atender uma mesa em vista de que a gorjeta a ser deixada pela mesma será baixa? Certamente que não, se assim o fizer será demitido, quiçá por justa causa.

Importa dizer, ainda, que a remuneração paga pelo cliente ao motorista, não necessariamente depende da intermediação do aplicativo. Basta o motorista aceitar apenas clientes que optem por pagar em espécie, ou PIX, que sua remuneração virá, diretamente, dos clientes.

O ponto é, se entendermos que a relação do Uber com seus motoristas é de emprego, necessariamente seremos obrigados a entender, também, que a relação de sites de correspondentes jurídicos, incluindo aí Migalhas e Jusbrasil também seria uma relação de emprego.

Certo que tal entendimento causaria imensa insegurança jurídica à sociedade, mormente pelo fato de vivermos numa sociedade altamente digitalizada, onde podemos contratar vários (possivelmente quase todos) serviços imagináveis via Internet.

Algumas perguntas, aqui, hão que ser feitas: 1) se entendermos que UBER e motoristas têm vínculo empregatício entre si, não deveríamos, então, inserir no polo passivo da demanda a Apple e a Google, visto que estas duas empresas também lucram com o seriço do obreiro, visto que hospedam o aplicativo do UBER – e inúmeros outros – em suas lojas virtuais? 2) Vendedores do Mercado Livre, que se submetem, tal como os motoristas de UBER, a avaliação de qualidade dos usuários, bem como às regras do Mercado Livre, poderiam ser – por analogia ao case citado – enquadrados como empregados daquela empresa?

Do dano moral – R$ 1bilhão

Temos para nós que a relação não é de emprego, sendo assim, não haveria ilícito. Ainda que houvesse um ilícito contratual, hipótese aceitável por apreço à retórica, o fato de estar estabelecida num contrato sinalagmático afastaria a responsabilidade civil.

Ainda que a houvesse, fica a pergunta: de qual Cartola Mágica o Magistrado em questão sacou a importância de R$ 1.000.000.000,00?

Por vezes é difícil termos a noção da ordem de grandeza bilhão. Vamos dar um exemplo para que possamos demonstrar o quão grande é 1bilhão. Um bilhão de segundos é igual a 31 anos, ao passo que 1milhão de segundos é igual a 11 semanas.

Trata-se uma quantia irrazoável de dinheiro, em razão de algo, que mesmo que considerássemos um ilícito trabalhista, não feriu – em momento algum – o Princípio da Boa-fé contratual previsto no artigo 422 do Código Civil Brasileiro (Art. 422. Os contratantes são obrigados a guardar, assim na conclusão do contrato, como em sua execução, os princípios de probidade e boa-fé).

Consequências jurídicas, econômicas e sociais da referida decisão em comento

Aqui, é importante estabelecer o impacto jurídico e econômico que esta decisão trará para a UBER, bem como para qualquer outro aplicativo/software que ligue o prestador de serviço ao usuário do mesmo. 

Para além das verbas trabalhistas devidas, caso mantenha-se a decisão no TRT e, posteriormente, no TST e no STF que deverão dar a solução definitiva a esta demanda, temos que observar, também, que será devido aos motoristas cadastrados o ressarcimento pelo uso de seus próprios veículos automotores, bem como combustível e outros.

Com efeito, é vedado em nosso Ordenamento Jurídico exigir-se que o empregado assuma o risco da atividade econômica e utilize seu patrimônio para o desenvolvimento da atividade do empregador. Isso nos é dado pelo artigo 2º da CLT (Considera-se empregador a empresa, individual ou coletiva, que, assumindo os riscos da atividade econômica, admite, assalaria e dirige a prestação pessoal de serviço).

Significa dizer que a UBER, que tem algo como 1milhão de motoristas cadastrados no país, teria que indenizar esses motoristas à ordem de R$ 2.000,00 (custo médio da locação de um veículo mensalmente, fora combustível e manutenções). Por outra, se tomarmos um período médio de 12 meses de serviço por motorista, temos que, além dos danos morais coletivos e encargos trabalhistas, terá que indenizar cada seus motoristas em – nada menos – R$ 24.000.000.000,00 (ou 744 anos, se cada real equivalesse a um segundo).

Obviamente que este montante indenizatório, se mantida a decisão, não será pago e a empresa em questão irá se retirar do país. Arriscamos o palpite de dizer que, qualquer que seja o desfecho desta demanda, a UBER já tomou a decisão de se retirar do país. Quem perde com isso? Simples: Toda a sociedade, visto que uma decisão destas evidencia a falta de segurança jurídica do país, o que é um fator repelente de investimentos internos, mormente após a pandemia de Covid-19 que impôs uma severa recessão a quase todo o planeta, mormente os países industrializados.

(Aqui fazemos uma breve nota pessoal: Quando fizemos nosso Mestrado em Portugal tivemos a experiência de compartilhar experiências acadêmicas e profissionais com diversos profissionais de Direito que atuam na União Europeia. Pois bem, quase todos eles, mormente os magistrados, ficam estarrecidos com o grau de volatilidade da Jurisprudência no Brasil, sobre os mais variados assuntos. Decisões judiciais que se alteram com mais frequência que as estações do ano são um fator que, indiscutivelmente, afastam investidores do país. Não outra razão o Brasil é um dos países que tem as maiores taxas de juros ao consumidor no mundo.)

Se o investimento na sociedade, fora o péssimo recado passado aos investidores (e temos, nas mais diversas áreas do direito, verdadeiras coleções de decisões judiciais atrozes) resta prejudicado com a simples existência desta sentença; melhor sorte não resta a motoristas e usuários do aplicativo.

Grosso modo, o motorista do UBER e o profissional que, por diversas questões, ficou desempregado e viu, naquele aplicativo, uma oportunidade de não passar fome, de não ser despejado. Com a inevitável saída do UBER do país este profissional, que supostamente deveria ser protegido pelo Judiciário, ficará sem condições mínimas de manutenção de sua própria vida, bem como a de sua família.

O usuário da plataforma, por seu turno, como regra geral é a pessoa pobre/classe média baixa que viu nestas novas tecnologias (smartphones e aplicativos) a possibilidade de, por um valor pouco maior que um bilhete de transporte coletivo, poder se deslocar diariamente no conforto de um ar-condicionado.

Em suma, a simples existência deste processo já depõe e muito contra o país. Eventual manutenção desta decisão poderá fazer o Brasil retroceder a uma era pré-internet, tornando verdadeira a máxima de Millôr Fernandes: “o Brasil tem, como futuro, um imenso passado pela frente”.

Paulo Antonio Papini
Advogado em São Paulo. Mestre e Doutorando pela Universidade Autónoma de Lisboa. Pós-graduado em Processo Civil. Especialista em Direito Imobiliário. Professor na ESA/UNIARARAS e ESD-Campinas.

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