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A afronta da MP 1.185 ao instituto das subvenções governamentais

Estes entes federados estão renunciando receber receitas públicas em seus orçamentos para que, do outro lado, a União abocanhe relevante fatia destas receitas na forma de IRPJ, CSLL, PIS e COFINS.

22/9/2023

Em 31/08/2023, o Governo Federal editou a MP 1.185 em mais uma tentativa de deturpar o instituto das subvenções governamentais para impor sua competência tributária para exigência de IRPJ, CSLL, PIS e COFINS, em total arrepio à Constituição e ao Código Tributário Nacional.

No anteprojeto do Código Tributário Nacional redigido por Rubens Gomes de Souza e apresentado ao Governo Central em 1954, ao tratar dos princípios que deveriam nortear a interpretação da legislação tributária, o patriarca do Direito Tributário brasileiro propôs que “os conceitos, formas e institutos de direito privado, a que faça referência a legislação tributária, serão aplicados segundo a sua conceituação própria, salvo quando seja expressamente alterada ou modificada pela legislação tributária”.

Contudo, o texto final publicado em 1966 e que vigora até hoje em nosso Código Tributário Nacional, em seu art. 110, determina, de modo ligeiramente diverso, que “a lei tributária não pode alterar a definição, o conteúdo e o alcance de institutos, conceitos e formas de direito privado, utilizados, expressa ou implicitamente, pela Constituição Federal, pelas Constituições dos Estados, ou pelas leis Orgânicas do Distrito Federal ou dos Municípios, para definir ou limitar competências tributárias”.

Vê-se, portanto, que a permissão originalmente prevista no anteprojeto para que a lei tributária pudesse alterar institutos, conceitos e formas de direito privado não vingou, tendo preferido o legislador de 1966 a prudência, a fim de evitar que a legislação tributária pudesse manipular indevidamente os atos e negócios jurídicos para o fim de deslocar a competência tributária entre os entes federados.

Aqui cabe uma reflexão: esta proibição também abrangeria os institutos, conceitos e formas de direito público, mais especificamente o Direito Financeiro? Certamente. Mas sem a necessidade de que esta proibição estivesse expressa no texto do Código Tributário Nacional, pois ao contrário dos negócios privados, os atos públicos não são regidos pela vontade e arbítrio dos particulares, mas pela fé pública.

Vale dizer, não caberia à lei tributária alterar institutos, conceitos e formas de direito público para definir ou limitar competências tributárias sob pena de comprometer a fé pública dos atos administrativos, bem como atentar contra a própria Federação, modelo de Estado brasileiro desde a Constituição de 1891 e protegido como cláusula pétrea na atual Constituição.

Portanto, é vedado à legislação tributária alterar institutos, conceitos e formas de direito público ou privado para definir ou limitar competências tributárias, sob pena de ofender, no âmbito constitucional, o pacto federativo e a imunidade tributária recíproca, e no âmbito infraconstitucional, o art. 110 do Código Tributário Nacional.

Pois bem. A despeito desta vedação, há 45 anos, desde o advento do decreto-lei 1.598/77, a União busca a todo custo, através de normas federais (à revelia de Estados e Municípios), alterar a definição, o conteúdo e o alcance do instituto das subvenções governamentais, mais especificamente as subvenções econômicas, para qualificá-las, sob a ótica tributária, como subvenções para custeio ou para investimento, subvertendo toda a definição, conteúdo e alcance das Normas Gerais de Direito Financeiro contidas na lei 4.320/64 (recepcionada como LC de cunho nacional), que em momento algum induzem a esta qualificação.

A União faz isto com o único propósito de definir e justificar sua competência tributária para legislar sobre tributos federais nas subvenções governamentais de qualquer natureza, ainda que concedidas pelo Distrito Federal, Estados ou Municípios, atraindo para si a competência para definir se o tributo federal incidirá ou não sobre os gastos tributários dos demais entes federados.

Ao desvirtuar para si tal competência, a União se julga capaz de qualificar as espécies de subvenções governamentais (custeio e investimento), à revelia das Normas Gerais de Direito Financeiro (lei nº 4.320/64), criando ficção jurídica com exclusivo propósito de exigir tributos federais, o que é expressamente vedado pelo art. 110 do Código Tributário Nacional.

Ora, não bastasse isto, atenta o Estado Democrático de Direito e o pacto federativo, cláusulas pétreas constitucionais, pois arroga para si na forma de arrecadação tributária parcela do orçamento público dos demais entes federados, parcela dos seus orçamentos que deveria ser revertida integralmente aos particulares subvencionados, e não desviada aos cofres da União.

Em verdade, o conceito das subvenções governamentais e suas espécies deve ser desenvolvido a partir das normas de Direito Público brasileiro, especialmente de Direito Financeiro. Vejamos.

Uma vez que apenas traça as diretrizes gerais das finanças públicas e orçamento, a Constituição não é útil para definir o conceito prático de subvenção governamental, tampouco suas espécies. Para tanto, deve-se debruçar sobre a LC e normas correlatas.

Para este mister, duas leis devem ser avaliadas: a LC 101/00, que estabelece normas de finanças públicas voltadas para a responsabilidade na gestão fiscal e dá outras providências, mas também a lei 4.320/64, que rege normas gerais de Direito Financeiro para elaboração e controle dos orçamentos e balanços da União, dos Estados, dos Municípios e do Distrito Federal.

O conceito de subvenção governamental não está expresso e literal na LC 101/00, que o traz apenas no Capítulo VI, ao tratar das limitações para destinação de recursos públicos para o setor privado:

Art. 26. A destinação de recursos para, direta ou indiretamente, cobrir necessidades de pessoas físicas ou déficits de pessoas jurídicas deverá ser autorizada por lei específica, atender às condições estabelecidas na lei de diretrizes orçamentárias e estar prevista no orçamento ou em seus créditos adicionais.

§ 1o O disposto no caput aplica-se a toda a administração indireta, inclusive fundações públicas e empresas estatais, exceto, no exercício de suas atribuições precípuas, as instituições financeiras e o Banco Central do Brasil.

§ 2o Compreende-se incluída a concessão de empréstimos, financiamentos e refinanciamentos, inclusive as respectivas prorrogações e a composição de dívidas, a concessão de subvenções e a participação em constituição ou aumento de capital.”

Logo, é possível identificar no caput deste art. contornos objetivos que definem uma subvenção governamental destinada ao setor privado, a saber: (i) constituem recursos públicos destinados a cobrir necessidades de pessoas físicas ou déficits de pessoas jurídicas; (ii) deve ser autorizada por lei específica, (iii) deve atender às condições estabelecidas na lei de diretrizes orçamentárias e, (iv) deve estar prevista no orçamento ou em seus créditos adicionais.

Porém, estes contornos dão apenas a forma a ser observada para a concessão de uma subvenção governamental destinada ao setor privado, mas não diz muito sobre seu conteúdo.

Em matéria de finanças públicas e orçamento, a lei 4.320/64 é que traduz de maneira mais transparente o conceito de uma subvenção governamental, inclusive suas espécies. Ao classificar as receitas e despesas públicas, esta lei divide as despesas entre correntes e de capital, para posteriormente subdividir as despesas correntes em despesas de custeio e transferências correntes, e as despesas de capital em investimentos, inversões financeiras e transferências de capital.

Após classificar, a lei informa o conceito subjetivo de cada despesa, afigurando-se relevante os conceitos das transferências correntes e de capital:

Depreende-se, portanto, que as despesas públicas destinadas a atender a manutenção de entidades de direito privado, ou destinadas a investimentos que pessoas de direito privado devam realizar, independentemente de contraprestação direta em bens ou serviços, configuram contribuições, auxílios ou subvenções.

Identificamos, aqui, um viés daquilo que seja subvenção governamental para o setor privado: uma despesa pública destinada a entidades ou pessoas de direito privado sem contraprestação direta em bens ou serviços. Apesar de não existir contraprestação direta, certamente que há contraprestação indireta, pois o interesse público deve sempre nortear e permear os atos administrativos, e os recursos públicos entregues à iniciativa privada devem sempre ter por finalidade a preservação dos objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil elencados no art. 3º da Constituição:

“Art. 3º Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil:

I – construir uma sociedade livre, justa e solidária;

II - garantir o desenvolvimento nacional;

III - erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais;

IV - promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação.”

Portanto, quaisquer contribuições, auxílios ou subvenções governamentais, ainda que entregues ao setor privado sem contraprestação direta em bens ou serviços, deverão sempre estar lastreados nos objetivos fundamentais da federação brasileira acima elencados.

Quando tratamos especificamente das subvenções governamentais destinadas ao setor privado, inequívoca a obrigação da lei que as instituir ter por objetivo a garantia do desenvolvimento nacional, a redução das desigualdades sociais e regionais e, acima de tudo, a promoção do bem de todos.

Ainda sobre a classificação das subvenções governamentais na lei 4.320/64, ao tratar das transferências correntes para custeio das entidades, que incluem as contribuições e as subvenções, encontramos uma classificação destas subvenções correntes: subvenções sociais são as que se destinem a instituições públicas ou privadas de caráter assistencial ou cultural, sem finalidade lucrativa e subvenções econômicas: as que se destinem a empresas públicas ou privadas de caráter industrial, comercial, agrícola ou pastoril.

Logo, as despesas públicas classificadas como transferências correntes para custeio de entidades, quando destinadas a empresas privadas com fins lucrativos, só podem ser classificadas como subvenções econômicas, não se admitindo a destinação de subvenções sociais para entidades com finalidade lucrativa. Outro detalhe: mesmo as subvenções econômicas, em regra, não podem ser concedidas a empresas privadas com fins lucrativos, salvo se expressamente autorizada em lei especial.

Neste ponto, é possível definir um primeiro conceito de subvenção governamental destinada ao setor privado com fins lucrativos: dotações destacadas da despesa pública e destinadas a manutenção de empresas privadas de caráter industrial, comercial, agrícola ou pastoril, sem contrapartida em bens ou serviços, e desde que expressamente autorizadas em lei especial, cujos objetivos sejam a garantia do desenvolvimento nacional, a redução das desigualdades sociais e regionais e, acima de tudo, a promoção do bem de todos.

Vale dizer, a subvenção econômica faz parte da despesa pública e para ser destinada a empresas privadas com fins lucrativos deve ser autorizada em lei especial cujo objetivo fundamental deve ser sempre perseguir os interesses descritos no art. 3º da Constituição.

Por outro lado, há também os auxílios ou contribuições destacados da despesa pública para investimentos ou inversões financeiras que outras pessoas de direito privado devam realizar. Aqui, deve-se perquirir a respeito da natureza destes auxílios ou contribuições como subvenções governamentais.

Uma vez que tais auxílios ou contribuições configuram transferências de capital para investimentos em obras públicas ou equipamentos e instalações que outras pessoas de direito privado devam realizar, não parece haver aqui uma subvenção governamental. Isto porque transparece aqui a alocação de recursos públicos em prol do interesse público para fins de investimento em capital realizado por pessoa jurídica de direito privado, mas em benefício exclusivo da Administração Pública.

Identificamos aqui auxílios ou contribuições destacados da despesa pública e do orçamento público para investimentos realizados por empresas privadas em benefício daqueles objetivos elencados no art. 3º da Constituição Federal. Não por outra razão, o art. 21 da lei 4.320/64 proíbe a lei orçamentária de consignar auxílio para investimentos que se devam incorporar ao patrimônio das empresas privadas de fins lucrativos.

Em outras palavras: é defeso ao orçamento destinar dotação para fazer frente a auxílio para investimentos em empresas privadas de fins lucrativos cujos investimentos se devam incorporar ao seu patrimônio. Aqui, ao contrário das subvenções econômicas para custeio e manutenção das empresas privadas de fins lucrativos, não se previu sequer a possibilidade de lei especial autorizar aquela dotação para investimento a ser incorporado ao patrimônio da empresa privada com finalidade lucrativa.

Portanto, os auxílios ou contribuições para investimento em empresas privadas são até admitidos no orçamento público, mas desde que não integrem o patrimônio destas empresas.

Diante disto, não parece correto denominar como subvenção governamental tais auxílios ou contribuições, pois que não devem agregar o patrimônio da pessoa jurídica de direito privado com finalidade lucrativa.

Resgatando o Capítulo VI da LC nº 101/00 supra transcrito, especialmente seu art. 26, que trata das limitações para destinação de recursos públicos para o setor privado, se constatará que tal norma jurídica autoriza única e exclusivamente a concessão de subvenções governamentais para cobrir necessidades de pessoas físicas ou déficits de pessoas jurídicas, em linha com as subvenções econômicas, espécies de transferências correntes, definidas na lei nº 4.320/64, mas sem qualquer semelhança aos auxílios ou contribuições para investimento.

Neste tocante, a LC 101/00 reconheceu a existência das subvenções governamentais correntes ou para custeio, destinadas a cobrir custos, prejuízos ou despesas das pessoas jurídicas, mas, por outro lado, não tratou das transferências de capital para empresas privadas com fins lucrativos.

Portanto, para fins de Direito Financeiro, as subvenções governamentais devem ser todas elas enquadradas como transferências correntes, previstas no orçamento público, preordenada a auxiliar entidades públicas ou particulares a desempenhar atividades consideradas de interesse público, conforme o que está prescrito no art. 12, § 3º da lei 4.320/64.

Se tais transferências foram revertidas pelas empresas privadas de fins lucrativos para suprir déficits de caixa do seu ativo circulante ou para investir em bens e direitos do ativo não circulante, isto não desqualifica as subvenções governamentais como transferências correntes de recursos públicos para o setor privado, excepcionalmente autorizadas por lei especial.

As transferências de capital, conforme preceituado na lei 4.320/64, não integram o patrimônio da pessoa jurídica de direito privado com fins lucrativos, antes servindo como bens reversíveis ao patrimônio público, uma vez esgotado o interesse público que originou aquela transferência de capital.

Conclui-se, portanto, que, a luz do Direito Financeiro, as subvenções governamentais consubstanciam despesa pública destinada a suprir déficit da pessoa jurídica de direito privado com fins lucrativos, sem contrapartida direta em bens e serviços, mas, antes, atrelada ao interesse público encartado no art. 3º da Constituição Federal, qual seja: a garantia do desenvolvimento nacional, a redução das desigualdades sociais e regionais e, acima de tudo, a promoção do bem de todos.

Qualquer subvenção governamental concedida pela União, Distrito Federal, Estados ou Municípios deve, obrigatoriamente, almejar os objetivos fundamentais da Federação entabulados na Constituição Federal, sob pena do ato que a concedeu ser enquadrado como um ato com desvio de finalidade.

Nota-se, portanto, que o conceito de subvenção para investimento é uma criação e ficção jurídica do Decreto-lei federal, que não encontra amparo no Direito Financeiro, visto que para fins do Orçamento Público não há subvenções para investimento, mas, isto sim, subvenções econômicas consubstanciadas em transferências correntes para custeio das atividades da pessoa jurídica no exclusivo interesse público.

Eventuais transferências de capital, que não guardam correlação com o conceito de subvenção para investimento extraído da lei fiscal, são destinadas a investimentos de capital colocados temporariamente à disposição do particular, mas que deverão reverter obrigatoriamente ao patrimônio da Administração Pública ao final do período em que foi útil no desempenho do interesse público pela entidade privada.

O desvirtuamento do conceito de subvenção econômica do Direito Financeiro pela lei fiscal, acentuado agora pela MP 1.185, procura criar a dicotomia entre subvenção para investimento e subvenção para custeio, o que tem acarretado décadas de controvérsias e litígios a respeito da tributação do IRPJ, da CSLL, do PIS e da COFINS sobre os recursos públicos destinados aos particulares.

Sob a ótica do Direito Financeiro, qualquer subvenção governamental destinada aos entes particulares é enquadrada como subvenção econômica a custear as atividades do particular em prol do interesse público. O que se tem, em paralelo, são transferências de capital, que não guardam correlação com o conceito de subvenção governamental, apesar de serem tratadas pela legislação fiscal como subvenção para investimento, repita-se: conceito criado artificialmente pela lei fiscal.

Bem delimitada a definição, o conteúdo e o alcance do instituto da subvenção governamental no Direito Financeiro, resta inequívoca a afronta do antigo Decreto-lei 1.598/77 e, agora, da MP 1.185/23, ao Estado Democrático de Direito e ao Pacto Federativo, visto que a União busca alterar aquele instituto de direito público com a finalidade de definir sua competência para exigência de tributos federais.

Ou uma LC de âmbito nacional vem para regular a matéria (e já há a LC 160/17 para regular a questão das subvenções de ICMS), delineando de forma harmônica e federativa a competência tributária da União, Distrito Federal, Estados e Municípios sobre as subvenções governamentais, ou se verá a União avançando sobre subvenções governamentais do Distrito Federal, dos Estados e dos Municípios em total arbítrio e ofensa ao pacto federativo, imunidade tributária recíproca e art. 110 do Código Tributário Nacional.

De um lado, estes entes federados estão renunciando receber receitas públicas em seus orçamentos para que, do outro lado, a União abocanhe relevante fatia destas receitas na forma de IRPJ, CSLL, PIS e COFINS. Afigura-se legítimo, inclusive, que o Distrito Federal, Estados e Municípios se socorram do Supremo Tribunal Federal caso esta Medida Provisória avance no Congresso Nacional.

Aos contribuintes, restam os advogados para defesa de seus direitos frente a sanha arrecadatória do governo da ocasião.

Bruno Aguiar
Advogado tributarista, sócio do escritório Rayes e Fagundes Advogados Associados.

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