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Apontamentos sobre produção antecipada de provas

Sendo os processos administrativos sancionadores, punitivos ou disciplinares, de natureza penal, embora não resultem em penas restritivas de liberdade, exclusivas dos processos judiciais, neles igualmente busca-se a verdade real, impondo-se o contraditório, a ampla defesa e demais princípios constitucionais que compõem o devido processo legal.

6/9/2023

De grande utilidade e evidentemente excepcional na sistemática do CPC em vigor, a produção antecipada de provas ainda não ocupou seu lugar de destaque no pódio das ações preparatórias, encontrando-se, junto com a ata notarial (art. 384), fora do Livro V - Da tutela provisória (arts. 294 e ss), apartando-se das cautelares (tutela antecipada ou incidental), ambas ferramentas contemporâneas de apuração de dados e fatos juridicamente relevantes.

Integrando a parte especial do Código, cujo livro I dispõe sobre a cognição (processo de conhecimento) e a execução do título judicial, denominada cumprimento de sentença, essa ação de coleta de provas já não perfila com as medidas cautelares, como era na vigência do CPC/73.

Do CPC/39 para o Código Buzaid, experimentou significativo incremento de funcionalidade, abandonando-se o requisito único de risco do perecimento da prova, cuja conservação destinava-se ao uso futuro em juízo, para um foco maior que esse tradicional - da milenar vistoria ad perpetuam rei memoriam, onde fincou raízes profundas -, permitindo-se até então timidamente uma abordagem prospectiva, sobressaindo sua índole de protesto judicial, a par de medida preparatória. 

Já na roupagem atual1, admite-se que as partes também têm interesse na preservação da documentação, independentemente do suporte, v.g. papéis e quaisquer outros documentos, áudios, vídeos, depoimentos, perícias técnicas, qualquer prova, enfim (CPC 382, § 3º), não havendo lide, ou seja, pretensão resistida, apesar da contenciosidade, atributo genérico desse tipo de ação. Incorporou o procedimento de justificação, igualmente subutilizado no meio forense (art. 382, § 5º), não contencioso, e, em todos os casos, não há sucumbência, até porque descabem defesa e recurso (382, § 4º).

Para os casos abusivos, há mecanismos eficientes para coibi-los. Tradicionalmente, é vedado ao juiz autorizar medidas que impeçam ou dificultem formação de negócios lícitos - regra do protesto judicial, ao qual é assemelhada a ação autônoma aqui analisada -, examinando de modo discricionário as justificativas do requerente e o âmbito da prova pretendida (CPC, 382, caput), prevendo-se o indeferimento pleno da inicial, cabível, nessa única hipótese, apelação (382, § 4º).

Conforme o art. 381, § 1º, aplica-se seu rito ao arrolamento de bens, havendo quem defenda que essa ação probatória antecedente também abrange a exibição de documentos, cuja autonomia se perdeu, na abalizada opinião do saudoso min. Paulo de Tarso Sanseverino2:

(...) relembre-se que a ação cautelar de exibição, regulada no CPC/1973, como demanda de massa, passou a ser usada de forma abusiva, mediante o ajuizamento de lides artificialmente forjadas, com o objetivo único de gerar honorários advocatícios em duplicidade ao advogado da parte demandante, ou seja, honorários na ação de exibição e honorários na demanda principal. Talvez seja essa a explicação para o silêncio eloquente do legislador no CPC de 2015 em não regular a exibição de documentos como ação autônoma. Veio efetivamente em boa hora, portanto, a mudança implementada pelo novo Código de Processo Civil, estatuindo um procedimento autônomo, não litigioso, de produção probatória (arts. 381/382) À luz desses fundamentos, renovando as vênias ao eminente relator, entendo que não merece reforma o acórdão recorrido.

Para além da serventia tradicional ligada ao risco de perecimento ou crescente dificuldade de colheita, ou seja, ao periculum in mora (381, inc. I) e das novas vertentes, uma que viabiliza a autocomposição em suas mais variadas formas (381, II) e outra que visa, com a complementação de elementos e prévio conhecimento dos fatos, melhor diagnóstico, ao ponto de “evitar ajuizamento” (inc. III), vislumbram-se facilmente imensas possibilidades de manejo:

A) Nos processos civis em geral, para documentação em geral, vistorias, depoimentos, justificação de fatos relevantes e, em arrolamento de bens (sem medidas constritivas), nos inventários, em ações falimentares e similares, no divórcio ou apuração de haveres em sociedades lato sensu, mercantis e civis, inclusive as amorosas e afetivas!), sendo indiscutível sua imensa utilidade e enorme abrangência.;

B) Na esfera penal, há medidas homônimas específicas, baseada a primeira no poder cautelar geral e discricionariedade do Juiz (CPP, art. 156, I) e a outra, do art. 366, em caso de revelia (réu citado por edital, sem patrono constituído, cabendo, na urgência, ordem motivada e fundamentada de produção antecipada da prova, junto com suspensão do processo (e da prescrição), bem como o decreto de prisão preventiva.

C) Na órbita trabalhista, coletando-se documentos em complementação, sendo o empregador depositário de acervos que dizem respeito não só aos trabalhadores, mas ao Estado e à Previdência. Por cautela e a precisão exigida pela lei, deve-se indicar, tanto quanto possível, os fatos sobre os quais o reclamante fará prova, e os direitos deles consequentes, favorecendo assim o acesso à Justiça. Assim indicado o objetivo, não há que falar em aplicação da Súmula TST 268.A admissibilidade da medida preparatória é indiscutívelembora tenha havido polêmica desde a reforma de 2017, em que se adotou a sucumbência para inibição dos jurisdicionados, debate de pouca envergadura e já superado em ADin.

Admitindo-a, com a interrupção de prescrição, há precedentes, destacando-se julgado recente do E. TST em que o (...) relator, ministro Alberto Balazeiro, explicou que a cumulação dos pedidos atende aos princípios constitucionais da economia, da celeridade processual e ao direito fundamental à razoável duração do processo. Balazeiro lembrou que as duas ações têm natureza cautelar e que a produção de provas visa ao acesso a documentos que serão usados na ação posterior. Como medida preparatória de outra ação, ela interrompe o prazo prescricional.  O ministro disse ainda que não há nenhum prejuízo ou dano processual para as partes (....) (grifamos)

D) Em âmbito administrativohá expressa previsão da produção antecipada da prova, determinada pela própria autoridade administrativa federal, na lei 9784/99, art. 29, pois “as atividades de instrução destinadas a averiguar e comprovar os dados necessários à tomada de decisão realizam-se de ofício ou mediante impulsão do órgão responsável pelo processo”. Por isso é imprescindível conhecer os poderes e limitações da autoridade processante, em todo e qualquer procedimento desse gênero, delimitando o advogado atuante, com exatidão, as fronteiras da legalidade.

Aliás, sendo os processos administrativos sancionadores, punitivos ou disciplinares, de natureza penal, embora não resultem em penas restritivas de liberdade, exclusivas dos processos judiciais, neles igualmente busca-se a verdade real, impondo-se o contraditório, a ampla defesa e demais princípios constitucionais que compõem o devido processo legal.

Finalizando, pode-se usar quase ilimitadamente a produção antecipada de prova, com trâmite na justiça comum, observada a competência da Justiça Federal, (do Trabalho, inclusive6 - pois, apesar de não haver decisão de mérito (simplesmente homologatória), a solenidade que a envolve e os cuidados formais a que se sujeita o procedimento, sob a égide do princípio da unidade da administração pública, tornam-no, em nossa humilde opinião, confiável e apto a surtir efeitos em todas as esferas.

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1 A partir de 18.03.2016 (STJ - Pleno)

2 REsp 1.803.251/SC

3 “A ação trabalhista,ainda que arquivada, interrompe a prescrição somente em relação aos pedidos idênticos.”

4 LOPES, Fabio Juliate. https://jus.com.br/artigos/67866/a-producao-antecipada-de-provas-no-processo-do-trabalho-ante-a-reforma-trabalhista

5 Ribeiro, Mário. https://jus.com.br/artigos/28401/a-aplicacao-de-medidas-cautelares-no-processo-administrativo-sancionador, com interessantes exemplos de legislação autorizadora, do TCU e outros órgãos.

6 Súmula STJ 32

Paulo Deives Ferreira de Queiroz
Militante (Belo Horizonte e região, capital paulista), criminalista por paixão, operário das demais especialidades, com pós lato sensu em Processo Civil (EPM) e Previdenciário (Legale, em conclusão).

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