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Extinção da punibilidade por "morte" da pessoa jurídica será decidida pelo STF

Sobre essa causa de extinção de punibilidade que inaugura o rol do citado dispositivo, é lição de Cezar Roberto Bitencourt: “Com a morte do agente (indiciado, réu, condenado, reabilitando) cessa toda atividade destinada à punição do crime: com o processo penal em curso encerra-se ou impede-se que ele seja iniciado, e a pena cominada ou em execução deixa de existir.

31/8/2023

Em se tratando de persecução criminal, a morte do agente é causa de extinção de sua punibilidade, conforme estatui o inc. I, art. 107, Código Penal, regra aplicável a todo tipo de crime previsto na legislação brasileira.

Sobre essa causa de extinção de punibilidade que inaugura o rol do citado dispositivo, é lição de Cezar Roberto Bitencourt: “Com a morte do agente (indiciado, réu, condenado, reabilitando) cessa toda atividade destinada à punição do crime: com o processo penal em curso encerra-se ou impede-se que ele seja iniciado, e a pena cominada ou em execução deixa de existir. Essa causa é uma decorrência natural do princípio da personalidade da pena, hoje preceito constitucional (art. 5º, XLV, da CF), segundo o qual a pena criminal não pode passar da pessoa do criminoso: mors omnia solvit. Nem mesmo a pena de multa pode ser transmitida aos herdeiros”.1

Esse princípio, também chamado de princípio da intranscendência da pena, está presente no ordenamento jurídico penal das nações civilizadas e impede que a persecução penal seja estendida ou transferida a pessoas estranhas ao delito, mesmo que estejam elas vinculadas ao condenado por laços de parentesco2.

Quando o agente é pessoa física, dotada de vida biológica, a consequente extinção da punibilidade pela morte do agente não dá azo a grandes questionamentos. De igual forma, a Constituição Federal deixa bem claros os limites de aplicação do princípio da intranscendência, restringindo-a a sanções penais, sejam elas pecuniárias ou não. Os efeitos civis do crime remanescem e são transmitidos aos herdeiros3.

No entanto, quando se cuida de pessoa jurídica, passível de ser processada, julgada e até condenada criminalmente por delito ambiental, o tema da extinção da punibilidade com base no inc. I, art. 107, CP e da eventual aplicação do princípio da intranscendência da pena torna-se uma questão tormentosa e complexa, a envolver análise detida de institutos de diferentes ramos do Direito e com potencialidade de impactar presentes e futuras relações jurídicas.

É certo que os entes coletivos têm seu momento de surgimento, seu período de existência com direitos e obrigações e, eventualmente, de sua extinção, todos estes previstos na legislação pertinente (Código Civil, Código de Processo Civil e Lei das Sociedades Anônimas, por exemplo), mas, na seara penal, pode a incorporação de uma empresa ré ser equiparada à morte humana, a ponto de atrair, por analogia, a incidência do disposto no inc. I, art. 107, CP? Mais: declarando-se extinta a punibilidade da empresa incorporada, vigerá no caso o basilar princípio da intranscendência da pena?

Instado a se manifestar sobre esse inédito assunto, o Superior Tribunal de Justiça, por 5 votos a 4, respondeu afirmativamente a essas questões e extinguiu, nos autos do REsp 1.977.172-PR4, ação penal instaurada em face de empresa que havia sido legal e legitimamente incorporada por outra sociedade empresária, deslinde esse fulcrado no art. 107, I, do Código Penal, aplicado analogicamente ao caso, e no art. 5º, XLV, CF.5

O aresto foi desafiado por recurso ordinário interposto pelo Ministério Público, de modo que a decisão final acerca do assunto virá do Supremo Tribunal Federal.

Embora se trate de questão ainda a ser escrutinada e decidida pelo Pretório Excelso, merecem ser aqui mencionados os pontos que reputamos os mais importantes no voto do relator, o Min. Ribeiro Dantas, que negou provimento àquele Recurso Especial6, no que foi seguido por outros quatro integrantes daquela Seção julgadora, cujos votos, que formaram a maioria, em sua essência ratificaram as razões expostas no voto condutor.

Assim, para efeito imediato desta breve digressão, que é o de bem sucintamente apresentar os fundamentos da tese vencedora, alinhavamos o raciocínio desenvolvido pelo Ministro Relator, em uma ordem que nos pareceu mais lógica para a rápida apreensão do seu conteúdo.

Na incorporação, operação societária regida pelo Código Civil e pela Lei das S.A., há a assunção, pela incorporadora, de responsabilidade pelas obrigações da incorporada, cujos credores, contratantes e contratados terão, na incorporadora, sua contraparte negocial. O patrimônio da incorporadora torna-se, assim, a garantia das obrigações ainda pendentes da incorporada. Não há descontinuidade nas relações negociais. Pelo lado da incorporada, a incorporação marca o fim de sua existência jurídica, que equivaleria, caso as pessoas jurídicas fossem dotadas de vida biológica, a uma forma de morte do ente coletivo.

À luz dos arts. 1.116 do CC e 227 da Lei das S.A., a incorporadora sucede a incorporada em todos os direitos e obrigações. Partindo dessa previsão legal e do conceito jurídico de obrigação (“vínculo de direito que liga uma pessoa a outra, ou relação de caráter patrimonial, que permite exigir de alguém uma prestação”), em que há três elementos estruturantes (as partes ativa e passiva, o objeto e o vínculo jurídico que os une), as consequências de atos ilícitos cabem no conceito de obrigação.

Embora os efeitos práticos da imposição de alguma das sanções previstas nos arts. 21 a 24 da Lei de Crimes Ambientais tenham feições de uma obrigação, seja de dar, fazer ou não fazer, mormente visando à reparação de algum dano ambiental, não há como equipará-las a veras obrigações cíveis. Na relação entre o Ministério Público e o réu em uma ação penal inexistem os três elementos estruturantes da obrigação, exatamente porque a pretensão punitiva criminal não é uma obrigação, que tem fontes, estruturas e consequências distintas daquela.

Além disso, a pena criminal submete-se a um regime normativo próprio, de características garantistas sem correspondência no campo das obrigações, como o é o princípio da intranscendência, constitucionalmente previsto.

Não se vislumbra, pois, à luz da Constituição, qualquer interpretação que se lhe possa dar no sentido da inaplicabilidade do princípio da intranscendência às pessoas jurídicas, mesmo porque o próprio sistema criminal (nele incluindo a Constituição) admite a punição dos entes morais a despeito de suas peculiaridades advindas do fato de não terem corpo físico.

Assim, nada obsta a que se persiga a incorporadora quanto a eventuais efeitos civis decorrentes da suposta má-conduta da incorporada, pois estes não são abrangidos pelo princípio da intranscendência, segundo os expressos falares do art. 5°, XLV, CF.

Por fim, as circunstâncias do fato analisado demonstram que a incorporação foi realizada de forma legal e regular, sem qualquer fito de burlar a lei, de escapar a um processo criminal que culminaria em uma eventual condenação.

Destarte, concluiu o STJ, andou bem o Tribunal a quo (TJPR) ao embasar sua decisão no art. 107, I, CP e aplicando o que determina o princípio da intranscendência.

Vale a pena aqui lembrar que muito antes desse assunto chegar ao Judiciário, Ivan Santiago já havia se ocupado de analisar os efeitos que determinadas operações societárias teriam sobre a punibilidade de pessoas jurídicas rés em processos-crime ambientais, prelecionando, no que toca especificamente à operação objeto do acórdão aqui discutido: “Duas consequências distintas podem ocorrer, dependendo de qual tenha sido a empresa que cometeu o crime antes da incorporação. Sendo a sociedade que cometeu a infração penal, a que foi incorporada, será inviável prosseguir na persecução penal ou na execução da pena, pois essa pessoa jurídica estará extinta. Já se for a sociedade que realizou o crime, aquela que incorporou as demais, ser-lhe-á possível continuar imputando a prática do delito, mesmo após a incorporação, haja vista que ela não se extinguiu”.7

Lembra ainda o autor que no caso de fusão - operação que determina a extinção das sociedades que se unem, para formar sociedade nova, que a elas sucederá nos direitos e obrigações, como textualmente dispõe o art. 1.119 do Código Civil -, as consequências são semelhantes à da incorporação, uma vez que, ao se unirem, têm suas personalidades jurídicas extintas e o novo ente moral a surgir da fusão não poderá ser responsabilizado criminalmente pelos crimes cometidos pelas empresas antes da fusão8.

____________

1 BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de direito penal. 29. ed. São Paulo: Saraiva, 2023. E-book.

2 LUISI, L. Os princípios constitucionais penais. 2. ed. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 2003. p. 51.

3 “Nenhuma pena passará da pessoa do condenado, podendo a obrigação de reparar o dano e a decretação do perdimento de bens ser, nos termos da lei, estendidas aos sucessores e contra eles executadas, até o limite do valor do patrimônio transferido” (art. 5°, XLV).

4 https://processo.stj.jus.br/processo/pesquisa/?tipoPesquisa=tipoPesquisaNumeroRegistro&termo=202103792243&totalRegistrosPorPagina=40&aplicacao=processos.ea. Acesso em 06.08.2023.

5 A ementa do respectivo acórdão tem a seguinte verbetação: “PENAL E PROCESSUAL PENAL. RECURSO ESPECIAL. CRIME DE POLUIÇÃO (ART. 54, § 2º, V, DA LEI 9.605/1998). CONDUTA PRATICADA POR SOCIEDADE EMPRESÁRIA POSTERIORMENTE INCORPORADA POR OUTRA. EXTINÇÃO DA INCORPORADA. ART. 1.118 DO CC. PRETENSÃO DE RESPONSABILIZAÇÃO PENAL DA INCORPORADORA. DESCABIMENTO. PRINCÍPIO DA INTRANSCENDÊNCIA DA PENA. APLICAÇÃO ANALÓGICA DO ART. 107, I, DO CP. EXTINÇÃO DA PUNIBILIDADE MANTIDA. RECURSO ESPECIAL DESPROVIDO.”

6 Sobredito recurso especial foi interposto pelo Ministério Público em face de acórdão promanado pelo Tribunal de Justiça do Estado do Paraná, que entendeu ter a empresa ré originária perdido sua personalidade jurídica ao ter sido incorporada por outra sociedade empresária, sendo inviável a continuidade da persecução criminal em relação à incorporadora, por força do princípio da intranscendência da pena, insculpido no art. 5º, XLV, da CF. Em suas razões recursais, o MP argumenta que tal princípio é incompatível com a natureza ideal das pessoas jurídicas e que sua aplicação a estas pode viabilizar a realização de ‘manobra de esquiva consistente na extinção formal do ente’. O Parquet também defende que há diferenças entre o tratamento jurídico-penal das pessoas físicas e aquele dispensado a pessoas jurídicas e as sanções patrimoniais previstas na lei como pena a sociedades empresárias não são abrangidas pelo princípio da intranscendência por terem feições obrigacionais e, por isso, podem muito bem ser transmitidas à incorporadora.

7 SANTIAGO, Ivan. Responsabilidade penal da pessoa jurídica nos crimes ambientais. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2005. p. 148-151.

8 Idem, p. 151.

Édis Milaré
Advogado fundador de Milaré Advogados. Professor e consultor em Direito Ambiental; Doutor e Mestre em Direitos Difusos e Coletivos pela PUC/SP; Criador e 1° Coordenador das Promotorias de Justiça do Meio Ambiente do Estado de São Paulo; Secretário do Meio Ambiente do Estado de São Paulo (1992/1994).

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