Migalhas de Peso

A impossibilidade de modulação dos efeitos no caso da “Revisão da Vida Toda”

Não custa, por fim, rememorar a lição do saudoso Ministro Eros Grau: o Direito não se interpreta em tiras.

31/8/2023

A “revisão da vida toda”, tese que busca inserir na média dos benefícios do INSS os salários pagos antes de 7/94, ganhou mais um capítulo no STF. Após a via crucis enfrentada pelos segurados no âmbito do STJ e na própria Suprema Corte, a decisão de mérito garantiu o direito à revisão. O INSS, por sua vez, tenta limitar os efeitos dessa conquista – buscando, em síntese, restringir o alegado impacto financeiro.

A estratégia da autarquia consistiu em opor embargos de declaração, recurso que tem seu cabimento bastante restrito, limitando-se (via de regra) a esclarecer os termos da decisão judicial proferida. Com isso, a autarquia pretende diminuir os efeitos da decisão favorável em relação aos (i) benefícios extintos; à (ii) possibilidade de ajuizar ação rescisória; e ao (iii) pagamento dos atrasados desde a data do julgamento pelo Supremo (13/4/23).

Em outros termos, se não pretende matar o direito, pelo menos aleijá-lo.

A arma escolhida se chama “modulação dos efeitos da decisão”. Via de regra, as decisões devem ser cumpridas em seus estritos termos. Todavia, a legislação permite que, em casos excepcionalíssimos, haja restrição em nome do interesse social e da segurança jurídica. Esses casos estão previstos em lei e o Código de Processo Civil exige a observância do art. 927, § 3º, que diz: “na hipótese de alteração de jurisprudência dominante do STF e dos tribunais superiores ou daquela oriunda de julgamento de casos repetitivos, pode haver modulação dos efeitos da alteração no interesse social e no da segurança jurídica”.

Pela letra fria da lei, parece não existir motivo para o corte.

Quanto à primeira hipótese, não houve alteração de jurisprudência dominante. Não se pode confundir precedentes isolados (que variavam pelos Tribunais afora no país) com jurisprudência dominante. Dominante significa algo superior, preponderante, que expresse autoridade. Não tivemos nada que chegasse perto disso em relação à controvérsia. Nem no STF, nem nos Tribunais Superiores, nem mesmo se somarmos as prestações jurisdicionais que foram entregues em ambos. Havia, em sentido contrário, verdadeira oscilação de entendimentos, tanto que ensejaram o julgamento do Tema 999.

Nesse segundo caso, poder-se-ia levantar a questão de ter sido enfrentada por meio dos recursos repetitivos. Todavia, como dito, não se alterou nada que fosse dominante. Antes, resolveu-se controvérsia em que o entendimento variava não somente nos TRF’s, mas inclusive nas Turmas Recursais. Observou-se a intenção do legislador em garantir segurança jurídica com um precedente obrigatório, algo que em nada se assemelha a qualquer alteração que inculque surpresa.

Há ainda que se considerar as hipóteses previstas fora do Código de Processo Civil que, em síntese, visam preservar situações em que há declaração de inconstitucionalidade da lei. Não é o caso. Em nenhum momento o STF declara que o art. 3º da lei 9.876/99 é inconstitucional. A correta interpretação do dispositivo legal, à luz da Constituição Federal, não pode ser equiparada à declaração de sua inconstitucionalidade. Tamanha a gravidade desse tipo específico de pretensão que o legislador previu hipóteses específicas de resolução, o controle concentrado. A bem da verdade, o Supremo sempre entendeu pelo caráter infraconstitucional das matérias referentes aos cálculos previdenciários, sendo o Tema 1.102 um julgamento excepcional, exatamente porque a lide diz respeito à preservação da segurança jurídica, que tem raiz constitucional, pois é a pedra fundamental do Estado Democrático de Direito.

Não é demais rememorar que a tese está ancorada no direito ao melhor benefício, reconhecido pelo STF desde 23/9/13, quando do julgamento do Tema 334, com repercussão geral reconhecida. Vale dizer, não somente o direito dos aposentados não contraria qualquer jurisprudência dominante, como reafirma o entendimento da Corte Suprema e visa sedimentar algo que, aparentemente, deveria estar pacificado.

Homenageia, portanto, a segurança jurídica.

Apesar de tudo levar a crer pela impossibilidade de se modular os efeitos da decisão, sua possibilidade foi suscitada baseada na cláusula geral e implícita rebus sic stantibus (“enquanto as coisas estão assim”). Seu conteúdo consiste em dizer que, nas prestações sucessivas, se mantém o cumprimento das obrigações contratuais acordadas desde que as situações de fato permaneçam, buscando evitar onerosidades que venham a acontecer durante a vigência da avença por alguma situação imprevisível.

Causa estranheza a aplicação de uma “cláusula implícita”, afeta ao direito contratual, nas relações jurídicas previdenciárias. Igualmente estranho é imaginar que a onerosidade ficou com a autarquia e não com o segurado que perdeu o valor de sua aposentadoria com base na alteração de uma lei que, no final das contas, desconsiderou algo que foi efetivamente pago e embolsado pela autarquia, durante anos a fio.

Duas razões saltam aos olhos.

Em primeiro lugar, pela evidente razão de em nada se assemelharem as duas relações. A relação jurídica contratual, em regra, presume a mesma capacidade das partes de discutirem suas avenças. A relação jurídica previdenciária, por outro lado, é uma relação entre o administrado e o Poder Público. É um seguro obrigatório, em que não se avença nada, não se discutem cláusulas. Impõe-se o pagamento de uma quantia para que, em caso de alguma contingência (velhice, doença, acidente), possa-se exigir seu pagamento. Difícil imaginar que se houvesse alguma discussão, as cláusulas escolhidas pelos aposentados seriam as que aí estão.

Todavia, ainda que se admitisse, por puro amor ao debate, a aplicação do referido instituto, outra razão nos leva a crer pela impropriedade do que se pretende. Admitamos, em juízo hipotético, que as cláusulas gerais e os princípios típicos das relações contratuais cíveis se aplicam, ainda que de forma meio torta, às relações jurídicas previdenciárias. Propõe-se, nesse contexto, abordá-los à luz de dois outros.

O primeiro é o nemo auditur propriam turpitudinem allegans, que em vernáculo significa dizer que a ninguém é permitido beneficiar-se da própria torpeza. Analisemos o comportamento da autarquia durante o processo.

É literalmente público e notório o comportamento inadequado do INSS durante a condução do processo, que buscou compensar a derrota jurídica com dados alarmantes na mídia. A todo novo julgamento, novas Notas Técnicas foram elaboradas inflando números de maneira aleatória (para não dizer irresponsável). Algumas sequer foram levadas ao Poder Judiciário, impedindo mesmo o exercício da garantia fundamental da ampla defesa e do contraditório. Toda essa estratégia fora dos muros do processo, visando aterrorizar os Ministros do STF, postergou o cumprimento da decisão judicial que reconheceu o direito dos aposentados em 2019.

Em outros termos, de 2019 para cá o INSS em nada buscou dar efetividade a um entendimento que estava ancorado em um julgamento de recurso repetitivo – que, pela lei, tem observância obrigatória. Nada foi feito. Nenhuma resolução, nenhuma portaria, nenhum acordo ou desistência recursal. A continuidade do direito de ação, manifestada na resistência da pretensão mediante os sucessivos recursos, demonstram injustificada recalcitrância que culminou em anos de pagamentos de atrasados por culpa exclusiva de seu comportamento.

À luz do referido princípio, questiona-se: pode agora o INSS, de forma transversa, buscar reduzir um impacto financeiro que ele mesmo deu causa? Se a preocupação era tamanha com os cofres públicos, por qual razão não houve qualquer alteração em âmbito administrativo que viesse a reduzir o alegado impacto?

É possível, nesse contexto, simplesmente mandar a conta para os aposentados que confiaram no Poder Judiciário e que acreditaram que há, no país, alguma segurança jurídica capaz de dar credibilidade a um precedente qualificado da Corte Cidadã? A resposta parece ser negativa, sob pena de se homenagear um comportamento que deveria ser reprovado.

Isso nos leva ao segundo ponto.

Nas relações contratuais cíveis, impede-se que uma parte busque reparação por um dano que ela poderia reduzir por conta própria. O instituto do duty to mitigate the loss, importado do direito inglês, veda que alguém aumente o próprio dano e, posteriormente, pleiteie uma reparação que lhe poderia ser menor. Olhemos o caso concreto. Não poderia a autarquia adotar qualquer procedimento que mitigasse o valor do montante financeiro? Otimizar o fluxo de trabalho? Por qual razão até mesmo o botão criado pelo INSS em sua plataforma eletrônica culminou em indeferimentos maciços de pedido de revisão?

À luz desse mesmo raciocínio, indaga-se: poderia a autarquia buscar uma reparação, ainda que de forma transversa (repita-se), por um montante que ela mesmo deu causa? Não teria ela, pois, o dever de agir de forma a diminuir o valor dessas diferenças, por meio de uma atuação efetiva dessas lides previdenciárias típicas, em âmbito judicial ou administrativo?

Parece, mais uma vez, que a resposta é negativa.

Não se pode perder de vista que o valor dos atrasados não é causa do aposentado, pura e simplesmente. Lide é pretensão resistida. Quem resiste de forma injustificada dá causa ao protelamento do impacto financeiro. Aparentemente, nos princípios que informam o direito contratual, não há qualquer espaço para se premiar esse tipo de comportamento – seja por vedar que dele se aproveite, seja por obrigar as partes a agirem de forma a reduzir a extensão da obrigação.

Tudo isso guarda um núcleo essencial comum.

Em qualquer relação jurídica, dentro e fora do processo, o ordenamento jurídico vigente premia a boa-fé. Protege-a. Todos esses princípios citados guardam em comum essa proteção. Esse núcleo essencial comum não pode ser perdido de vista. Não se ignora que a boa-fé se presume e a má-fé se prova. Contudo, se é certo que não houve discussão aprofundada sobre a existência de má-fé no processo por parte da autarquia, seria bastante confuso defender a referida presunção.

A edição de Notas Técnicas desprovidas de método científico, alterando-se de forma a majorar o impacto financeiro; sua divulgação midiática de forma sensacionalista; a orientação de retardamento e suspensão de processos em normativos internos; o acréscimo de teses em peças defensivas nos processos judicializados, enfim, todo esse arsenal que compõe a estratégia do INSS, permite extrair a boa-fé processual? A pergunta é retórica, pois a intenção destas linhas não busca essa conclusão.

Lançando mão da sabedoria popular dos aposentados que aguardam o deslinde final do processo, justificamos: nossa intenção é demonstrar que, ainda que a caminhada venha sendo cansativa e que já tenha anoitecido nesse processo tão longo, nem todo gato é pardo. As coisas diferentes continuam guardando suas distinções essenciais e a expectativa é que a confiança depositada seja resguardada pela Corte Suprema.

Não custa, por fim, rememorar a lição do saudoso Ministro Eros Grau: o Direito não se interpreta em tiras. Não se pode pinçar, de forma conveniente, pedaços do ordenamento jurídico que justifiquem uma conclusão. Se é certo que aquilo que informa e regula as relações cíveis são aplicáveis às relações jurídicas previdenciárias, cumpre observar o todo e não somente a parte. E, nessa perspectiva, à luz de qualquer princípio que se busque iluminar a pretensão dos embargos de declaração que tramitam no Supremo, forçoso reconhecer a dificuldade de se amparar a pretensão do INSS, consistente em diminuir uma conta que ele mesmo causou - ainda que a isso se dê o nome de “modulação dos efeitos da decisão”.

Sandro Lucena Rosa
Previdenciarista e professor. Membro do IEPREV.

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