Nos últimos 300 anos, testemunhamos um incrível avanço do desenvolvimento econômico, impulsionado por fontes de energia que fornecem recursos cada vez mais abundantes para avançar com a industrialização, a automação e a evolução tecnológica.
As duas primeiras revoluções industriais, baseadas principalmente no carvão e no petróleo como fontes primárias de energia, rapidamente se infiltraram em todos os setores da sociedade, estabelecendo uma dependência severa que transformou o fornecimento de energia, antes nas mãos de entidades privadas, em um serviço público de caráter essencial. Em 1972, na histórica Conferência de Estocolmo, representantes de todo o mundo se reuniram pela primeira vez para discutir os impactos desse progresso humano no planeta. A partir desse encontro, a temática ganhou importância crescente, tornando-se uma pauta permanente nas agendas governamentais.
No entanto, em paralelo a essas discussões, o mundo continuou a aumentar o consumo de recursos naturais, resultando em uma forte dependência energética no século XXI, com a maior parte dela ainda proveniente de combustíveis fósseis prejudiciais ao meio ambiente. Infelizmente, não há previsão para o fim dessa dependência, uma vez que a revolução tecnológica que estamos presenciando também demanda energia, afinal, nenhum dispositivo tecnológico ou inteligência artificial pode funcionar sem ela.
Diante da crescente preocupação ambiental que tem permeado a sociedade, surge a indagação sobre como a evolução tecnológica se harmoniza com essa problemática. É exatamente nesse contexto que as pesquisas têm progredido, visando encontrar soluções que possibilitem a continuidade do consumo energético sem prejudicar o meio ambiente, o que é conhecido como transição energética. Nesse sentido, as atuais apostas concentram-se na combinação do uso de fontes de energia renovável com a aplicação do hidrogênio como vetor energético.
Obviamente não se trata de uma descoberta recente no que diz respeito ao hidrogênio. Afinal, todos nós aprendemos sobre esse elemento na tabela periódica durante as aulas de química. Além disso, há mais de um século, o hidrogênio já era utilizado comercialmente em dirigíveis e em uma ampla variedade de outras aplicações.
Existem diversas vias para a obtenção de hidrogênio, sendo a reforma do gás natural a opção mais econômica. Entretanto, embora essa abordagem seja mais acessível em termos de custo, ela também é acompanhada de emissões poluentes mais significativas. É importante ressaltar que, décadas atrás, a preocupação ambiental não era tão proeminente como hoje em dia, e, portanto, essa forma de produção de hidrogênio expandiu-se e se inseriu na indústria global.
Atualmente, o hidrogênio desempenha um papel fundamental como matéria-prima em setores industriais, como a produção de fertilizantes e o refino de petróleo. No entanto, em meio à crescente preocupação ambiental, tem havido uma busca por alternativas de produção de hidrogênio mais limpas. Dentre as diferentes abordagens, destaca-se a eletrólise, um processo no qual a energia elétrica é aplicada à água, permitindo a separação do hidrogênio (H2) e do oxigênio (O).
Embora o custo atual da eletrólise seja mais elevado em comparação à produção de hidrogênio a partir do gás natural, a utilização de eletricidade proveniente de fontes renováveis e limpas permite que todo o processo seja ambientalmente sustentável, atendendo, assim, às demandas ambientais cada vez mais prementes para a redução dos gases de efeito estufa e, consequentemente, para mitigar as mudanças climáticas.
Conforme evidenciado pelo título deste artigo, a aplicação do hidrogênio expandirá para além dos setores industriais que já o utilizam, tornando-se um potencial substituto de combustíveis poluentes em diversos segmentos. Por exemplo, o transporte pesado e as indústrias que requerem altas temperaturas são áreas promissoras para a implementação do hidrogênio como solução energética.
Ao eletrificar os veículos de trabalho, como os automóveis utilizados para deslocamentos diários curtos, torna-se viável recarregá-los enquanto estão parados durante o expediente, garantindo que a eletricidade utilizada seja proveniente de fontes limpas e, assim, evitando danos ao meio ambiente.
No entanto, surge o desafio de encontrar soluções adequadas para o transporte aéreo de longa distância e para a navegação oceânica, onde a eletrificação com baterias ou placas solares não atende às necessidades. Nessas situações, o hidrogênio ou seus derivados, como a amônia, surgem como alternativas promissoras.
Além disso, veículos terrestres e fornos de indústrias siderúrgicas também podem adotar o hidrogênio como combustível, entre outras possibilidades de aplicação.
A crescente relevância do hidrogênio foi acelerada pelo início do conflito entre Rússia e Ucrânia, pois a Europa passou a buscar a redução da dependência dos combustíveis provenientes da Rússia, mantendo, ao mesmo tempo, suas metas de descarbonização. Isso é evidenciado pelos investimentos significativos direcionados ao hidrogênio limpo e renovável. Em 2022, a Comissão Europeia criou um banco específico para financiar projetos relacionados ao hidrogênio.
É importante ressaltar que todos esses investimentos são direcionados especificamente para o hidrogênio limpo e renovável. Essa distinção é crucial, pois, se o hidrogênio for produzido a partir do gás natural, resultará em altas emissões de CO2, enquanto a eletrólise com energia elétrica renovável pode garantir uma produção livre de impactos ambientais. Portanto, a diferença não está no gás em si, mas sim na pegada de carbono deixada ao longo do processo produtivo.
Nos Estados Unidos, um pacote de incentivos foi lançado através do e Infrastructure Investment and Jobs Act - IIJA e do Inflation Reduction Act - IRA, com a injeção de valores na ordem de US$ 370 bilhões e com a criação de incentivos fiscais destinados ao desenvolvimento da produção de energia limpa, incluindo o hidrogênio de baixa intensidade de carbono.
Assim como no Brasil, os Estados Unidos estão desenvolvendo um amplo debate sobre a regulação do Hidrogênio, focados primordialmente nos conceitos de segurança energética e de sustentabilidade ambiental. Parte dessa discussão tem seus esforços direcionados para um cenário de estabilidade regulatória, definindo-se as normas e os entes envolvidos na implementação das diretrizes governamentais, e para uma definição de prioridades para fortalecer a cooperação global, o que inclui a necessidade de uma certificação internacionalmente aceita para o produto de baixo carbono.
Nesse contexto, a certificação dos processos de produção de hidrogênio torna-se uma atividade fundamental para garantir sua sustentabilidade e fomentar o emergente mercado global. Esforços estão sendo feitos em todo o mundo para desenvolver métodos de certificação. No Brasil, a Câmara de Comercialização de Energia Elétrica (CCEE), como operadora oficial do mercado de energia elétrica no país, lançou uma certificação para a produção de hidrogênio, visando impulsionar o desenvolvimento da indústria nacional.
Quanto ao posicionamento do Brasil no cenário global, muitos países estão se direcionando para a utilização de hidrogênio de baixo carbono (embora não haja um consenso universal quanto à terminologia, sendo denominado de "verde", "limpo", "renovável" ou, neste contexto, "baixo carbono"), sendo que muitos deles buscam a autossuficiência nesse recurso. A Europa e o leste asiático, especialmente o Japão, indicaram que precisarão de grandes volumes de hidrogênio de baixo carbono nos próximos anos, mas não conseguirão produzi-los em seus territórios, o que torna necessária a importação, seja na forma de hidrogênio puro ou de outros produtos derivados, como a amônia.
O Brasil se apresenta como um potencial exportador de hidrogênio para a Europa, embora seja necessário superar o desafio da distância, já que o transporte atualmente é ineficiente e dispendioso. No âmbito nacional, a indústria do hidrogênio está em constante evolução. Centros de pesquisa em universidades brasileiras têm se dedicado ao estudo do hidrogênio há décadas. Mais recentemente, iniciativas de formação de mão de obra e o desenvolvimento de projetos piloto para a produção de hidrogênio de baixo carbono em pequena escala têm surgido no país.
Há diversos estudos em andamento em várias regiões do Brasil, especialmente no Nordeste, para a implantação de projetos de médio e grande porte. No primeiro semestre de 2023, esses estudos estão em fase de avaliação de viabilidade econômica, buscando alcançar preços que sejam aceitáveis para o mercado em relação a esse produto descarbonizado.
No contexto normativo brasileiro, a promulgação de três resoluções do Conselho Nacional de Política Energética (CNPE) no Brasil teve impactos positivos no desenvolvimento do setor de hidrogênio no país. A Resolução CNPE 2 de 2021 priorizou o hidrogênio na alocação de recursos para pesquisa, desenvolvimento e inovação, regulados pela Aneel e ANP. A Resolução CNPE 6 de 2021 estabeleceu diretrizes para o Programa Nacional do Hidrogênio (PNH2), e a Resolução CNPE 6 de 2022 criou o Programa Nacional do Hidrogênio, com o Comitê Gestor correspondente, proporcionando uma estrutura governamental para impulsionar essa importante fonte energética. Essas ações refletem o compromisso institucional em fomentar o avanço do hidrogênio, reconhecendo seu potencial estratégico nas políticas energéticas nacionais.
No âmbito legislativo, o Congresso Nacional está debatendo projetos de lei relacionados ao hidrogênio verde no Brasil, tais como o PL 725/22, o PL 1.878/22 e o PL 2.308/23, conhecido como Lei do Hidrogênio. O PL 725/22 busca incluir o hidrogênio na lei 9.478/97, a Lei do Petróleo, o que o tornaria um combustível regulado pela Agência Nacional do Petróleo (ANP). Além disso, a criação da Comissão Especial para Debate de Políticas Públicas sobre Hidrogênio Verde (CEHV) no Senado, em março de 2023, tem como objetivo harmonizar esses projetos em tramitação no Congresso. A implementação de resoluções conjuntas, conforme previsto no artigo 29 da lei 13.848/19, possibilitaria que as agências reguladoras coordenem a regulamentação de questões multidisciplinares relacionadas ao hidrogênio, garantindo maior segurança jurídica aos investidores e evitando sobreposição de normas.
Vale ressaltar que, mesmo sem um marco legal ou regulatório estabelecido, o mercado está progredindo com investimentos e estudos. É certo que leis e regulamentos serão criados, porém, é crucial que tais medidas apoiem e auxiliem onde for necessário, sem interferir em pontos que a indústria e o mercado já estão tratando em termos de necessidades e desafios.
Com esse progresso, poderemos observar nos próximos anos o crescimento do hidrogênio como um importante vetor energético, contribuindo para a transição energética pela qual o mundo está passando como um todo.