Migalhas de Peso

O STF e o telefone sem fio

Na vida real, o fim da corrupção, das fraudes, da desonestidade não costuma ser fruto do excesso de normas criando milhares de proibições, punições severas e dificuldades aqui e acolá.

23/8/2023

Os nossos tribunais superiores às vezes proferem decisões criticáveis? Os nossos tribunais superiores às vezes, realmente, erram?

A resposta a essas duas perguntas infelizmente é positiva. De fato, por uma série de razões que não devem ser comentadas num espaço como este, às vezes os tribunais superiores decidem a favor do fisco, quando não seria o caso de fazê-lo; a favor dos consumidores, em decisões que efetivamente beneficiam um deles mas não toda a categoria. E assim por diante.

Mas muitas vezes felizmente nossos tribunais superiores proferem decisões excelentes: oportunas, juridicamente corretas e ótimas para o país!

No entanto, talvez porque notícia ruim faça mais sucesso, a mídia está difundindo a notícia de que o STF decidiu algo que, na verdade, o STF não decidiu.

Em veículos de comunicação como, por exemplo, o instagram, se disse que o juiz poderá julgar processos em que sua mulher é advogada. Ou vice-versa. E sempre com brincadeiras maliciosas.

Na verdade, a decisão da ADIn 5953, em que se discutiu a constitucionalidade do 144, VIII do CPC, versou sobre tema diferente!    

No último dia 22 de agosto, o STF, por maioria, julgou procedente a mencionada ação, declarando a inconstitucionalidade do inciso VIII do art. 144 do CPC/15, que versa sobre a seguinte hipótese: o juiz não poderia julgar ação em que fosse parte uma pessoa física ou jurídica que tivesse também outras ações em que fossem advogados seus parentes. Assim, por exemplo, se o juiz J é casado com a advogada A, e se a advogada A tem algumas ações da empresa X, este juiz não poderia julgar qualquer ação da empresa X.

Prevaleceu o voto divergente do ministro Gilmar Mendes, que entendeu que a restrição ali imposta é incompatível com o princípio da proporcionalidade.

Além de difícil e quase impossível cumprimento – porque o magistrado não pode ser obrigado a saber e nem tem mesmo como saber quais são os clientes das bancas em que atua parente seu, nem este, enquanto advogado, pode ser obrigado a informar ao juiz todos os clientes de seu escritório -, o objetivo da regra já é alcançado pelo inciso III c/c o § 3º do CPC.

O inciso VIII cria esta hipótese de impedimento:  haveria impedimento do juiz no processo “em que figure como parte cliente do escritório de advocacia de seu cônjuge, companheiro ou parente, consanguíneo ou afim, em linha reta ou colateral, até o terceiro grau, inclusive, mesmo que patrocinado por advogado de outro escritório”.

Em comentários a esse dispositivo, desde que o código de 2015 entrou em vigor, nós já questionávamos a constitucionalidade, em especial, da sua segunda parte, com base na qual seria nula, e, portanto, rescindível, a sentença proferida, por exemplo, por juiz em processo em que fosse parte cliente do escritório do seu filho, sobrinho ou cunhado, mesmo que estivesse sendo patrocinado por profissional de outra banca de advogados.1

O que se pretendeu com essa regra, conforme expusemos naquela oportunidade, foi evitar que o parente do juiz continuasse a atuar no processo, de forma oculta, por meio de contratação transversa.

O legislador, por assim dizer, criou uma presunção absoluta da existência de conluio entre os escritórios, sem levar em conta a realidade de que há grandes empresas, partes em inúmeros litígios, que contratam escritórios que atuam em todo o território nacional, sendo improvável que todos estivessem envolvidos nessa tentativa presumida de fraude.

A aplicação dessa regra, conforme alertava Evaristo Aragão2, já na entrada em vigor do CPC/2015, poderia provocar a manipulação do quórum de tribunais e da distribuição de competências nas comarcas, bastando, para tanto, à parte contratar um escritório de que fizesse parte parente do juiz, para que este se tornasse impedido de julgar toda e qualquer ação que dissesse respeito ao contratante.

A nosso ver efetivamente trata-se de regra quase que “demagógica”. Primeiro porque como já dissemos é quase impossível de ser cumprida... Segundo porque dá a aparência de que o legislador estaria realmente combatendo a possibilidade de parcialidade por todos os possíveis flancos. Mas quando se examina o dispositivo com serenidade, como fez o ministro Gilmar Mendes, se percebe que este não se compatibiliza com o princípio da proporcionalidade, criando um ônus impossível de ser cumprido para o próprio judiciário.

Na vida real, o fim da corrupção, das fraudes, da desonestidade não costuma ser fruto do excesso de normas criando milhares de proibições, punições severas e dificuldades aqui e acolá. A grande verdade é que é a cultura de uma nação e não uma superabundância de regras que gera a convivência tranquila, sem medos, sem sustos. Se é essa a sociedade que nós queremos, está nas nossas mãos cria-la.

______________               

1 ALVIM, Teresa Arruda; CONCEIÇÃO, Maria Lúcia Lins; RIBEIRO, Leonardo Ferres da Silva; MELLO, Rogério Licastro Torres de. Primeiros comentários ao Código de Processo Civil. 3. ed. rev., atual. e ampl. – São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2020, p. 338.

2 CPC em foco – Temas essenciais e sua repetitividade: dois anos de vigência do novo CPC/Teresa Arruda Alvim, coordenação. 2ª ed. São Paulo: RT, 2018, p. 81-82.

Teresa Arruda Alvim
Sócia do escritório Arruda Alvim, Aragão, Lins & Sato Advogados. Livre-docente, doutora e mestre em Direito pela PUC/SP.

Maria Lúcia Lins Conceição
Doutora em Direito pela PUC/SP. Mestre em Direito. Membro do Instituto Brasileiro de Direito Processual (IBDP). Membro da Associação dos Advogados de São Paulo (AASP). Advogada sócia escritório Arruda Alvim, Aragão, Lins & Sato Advogados.

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