Com o avanço da tecnologia nos últimos anos, principalmente com o advento da inteligência artificial em diversos setores da sociedade, algumas pautas de cunho ético, moral, de trato social, e jurídico vem sendo calorosamente debatidas. Ao mesmo tempo que a evolução tecnológica oferece melhorias para o desenvolvimento da sociedade como um todo e um progresso para o país, diretamente ligado ao quesito inovação, também apresenta potenciais desafios, principalmente para proteção de dados pessoais e a proteção aos direitos de personalidade enquanto Direitos fundamentais.
Assim como no restante do mundo, o desenvolvimento tecnológico no Brasil tem sido veloz, contudo, - aparentemente -, ainda não gerou preocupação em grande parcela da sociedade. Segundo o mapeamento global para medir a concepção da população sobre inteligência artificial produzido pela KPMG e publicado pela Universidade de Queensland da Australia1 no início deste ano, o Brasil se encontra dentre os cinco países com o maior nível de confiança da população em IA ficando à frente de países como Estados Unidos, Alemanha, Australia, Reino Unido e França.
Apesar de não gerar imediata preocupação na sociedade brasileira, observando os dados publicados no relatório acima citado, o avanço dessa tendência tecnológica, dentre outras, tem gerado preocupação no cenário jurídico brasileiro, principalmente no que diz respeito a privacidade dos dados pessoais e os seus impactos na proteção aos direitos de personalidade.
Um dos traços marcantes que vem sendo transmitido para sociedade no decorrer desses anos, em razão do advento de novas tecnologias, é a banalização da informação e a manipulação de dados pessoais no ambiente digital, em ambos os casos utilizados para doutrinar determinados interesses individuais e coletivos, bem como para prática de novos crimes, como o de fraude eletrônica, por exemplo, tipificado no Código Penal (art. 171, §2º-A) incluído pela lei 14.155/21.
O resultado da manipulação de dados pessoais tem ameaçado a segurança à privacidade de milhares de cidadãos pelo mundo. Por aqui não seria diferente. No Brasil, no início do ano de 2021, foi revelado o maior escândalo de vazamento de dados pessoais no território nacional. Ao todo, mais de 220 milhões de brasileiros sofreram com o vazamento de seus dados, que incluíam informações como nome, CPF, RG, título de eleitor, e-mail, endereço, pontuação de crédito, renda, foto de rosto, dentre outras.
Notam-se que essas mudanças tecnológicas, principalmente no que diz respeito ao desenvolvimento e utilização de IA, apresentam grandes desafios quanto a regulação de novas tecnologias, responsabilização de provedores de serviços de internet, bem como a responsabilização civil de empresas pelo tratamento de dados pessoais e segurança da privacidade desses dados.
O Poder Judiciário tem estado atento a esse contexto. Pouco tempo atras, o juiz Jayter Cortez Junior, da 7ª vara Cível de Bauru/SP, ao proferir uma decisão liminar nos autos do processo 1014335-85.2023.8.26.0071 (em segredo de Justiça) determinou que a Microsoft retirasse do ar o material que continha informações falsas produzidas por meio da ferramenta de inteligência artificial do Bing, plataforma da Microsoft, desenvolvida em parceria com a OpenAI, acusando falsos crimes de assédio sexual contra um médico da cidade de Bauru. De acordo com a matéria vinculada no site Migalhas, ao analisar o pedido liminar feito pelo médico, o juiz considerou preenchidos os requisitos para concessão da liminar, tendo em vista o fato da plataforma possuir grande alcance mundial, o que caracterizaria o perigo da demora, e por apresentar dados falsos e graves contra a honra e dignidade do autor, risco de dano.
Nesse conjunto de circunstâncias, o direito e seus aplicadores encontram-se diariamente desafiados a preverem novas formas de regulação dos conflitos oriundos do ambiente digital e dessas inovações tecnológicas, assim como na incumbência de trabalhar ativamente para implementar uma uniformidade de interpretação e julgamento dessas questões, entre outras.
Nesse ponto de vista, conforme o ensinamento de Rony Vainzof “(...) a preocupação com a proteção de dados pessoais está associada à própria noção de proteção da privacidade, um bem jurídico cuja inviolabilidade foi elevada ao status de direito fundamental pelas principais constituições democráticas do mundo”.
No Brasil, a LGPD (L13709/18), que nesse ano completa cinco anos desde que entrou em vigor, tem como objetivo proteger os direitos fundamentais de liberdade e de privacidade e o livre desenvolvimento da personalidade da pessoa natural. Consolida proteção pulverizada em outras normas, além de definir princípios, esclarecer e definir classificações de dados pessoais, com normas específicas para tratamento dos dados pessoais, tanto em meio físico como digital. Dentre os fundamentos estabelecidos na LGPD também se encontram o respeito à privacidade e a inviolabilidade da intimidade, da honra e da imagem.
Isto é, a LGPD veio para tutelar os direitos de personalidade e dignidade da pessoa natural, abrigados na Constituição Federal (art. 5°, incisos X, XI e XIII) e abordados no Código Civil (art. 20 e 21) e no Código de Defesa do Consumidor (art. 43), a fim de assegurar tudo aquilo ligado à dignidade e integridade da pessoa natural, seja por meio dos princípios da boa-fé no tratamento os dados pessoais, transparência sobre a realização do tratamento, segurança de medidas técnicas e administrativas para proteção dos dados pessoais de acesso não autorizados e até mesmo por meio de ação de medidas para prevenção da ocorrência de danos em virtude do tratamento de dados pessoais.
Nessa perspectiva, no ano de 2020, o STF, em decisão unânime no bojo da ADI 6.387 DF, votou para suspensão da eficácia da MP 954/20 que tratava sobre o compartilhamento de dados por empresas de telecomunicações e reconheceu o direito à proteção de dados pessoais como direito fundamental autônomo. Dois anos depois, com a promulgação da Emenda Constitucional 115/22, a proteção de dados pessoais foi inclusa na Constituição Federal como direito fundamental. Referida norma também fixou a competência da União para legislar sobre a proteção e tratamento de dados pessoais.
Igualmente, o Marco Civil da Internet (L12965/14), responsável por regular os direitos e deveres no uso da internet, assegura, em seu art. 8°, o direito à privacidade e à liberdade de expressão nas comunicações, como condição ao exercício do direito de acesso à internet. O mesmo dispositivo legal também endossa a necessidade de se respeitar o direito à privacidade, à proteção de dados pessoais e ao sigilo das comunicações privadas na operação de tratamento dos dados pessoais.
Dessa forma, os direitos à privacidade e intimidade garantidos na Constituição Federal, respaldados na LGPD e Marco Civil da Internet, servem como um dos fundamentos que regem as formas de tratamento e proteção dos dados pessoais. Assim, mitigar os riscos de vazamento de dados ou utilização indevida de dados pessoais, muita das vezes para prática de crimes virtuais, bem como as formas de tratamento desses dados, regulamentação de novas tecnologias, dentre outros pontos indispensáveis, por meio de iniciativas do Poder Legislativo e do Poder Judiciário, é um importante passo para preservação dos direitos da personalidade, principalmente no meio digital, na atual era em que vivemos.
Apesar dessa tarefa ser complexa e envolver questões para mais de jurídicas, mas também éticas, morais e sociais, conforme mencionado no primeiro parágrafo deste texto, é extremamente necessário a adequação do Direito às inovações tecnológicas, a fim de assegurar a efetividade dos direitos e garantias fundamentais estabelecidas em nosso ordenamento jurídico. À vista disso, não há dúvidas que a proteção aos dados pessoais traz uma nova visão sobre a importância de coibir violações aos direitos personalíssimos, resgatando pela tecnologia uma visão humanística.
Com isto, demonstra-se que o Brasil vem progredindo acerca da regulamentação da proteção dos dados pessoais e dos direitos de personalidade, se levarmos em consideração a constante e acelerada ascensão de novas tecnologias. Todavia, o rápido desenvolvimento da inteligência artificial abre novas fronteiras, forçando uma atualização (permanente) da regulação normativa e jurídica para a importante preservação da tutela aos direitos de personalidade, por um lado, e de uma segurança jurídica, por outro.