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OVNIs ou causas trabalhistas: Nenhuma verdade é absoluta

Extraterrestres, horas extras, presunções processuais e regras de experiência. O que tudo isso tem a ver? O fato de que o conhecimento humano vai até os limites do universo (e da mente) em constante expansão.

22/8/2023

Um episódio que já está sendo classificado como histórico movimentou o noticiário internacional. O Congresso americano resolveu iniciar uma série de audiências públicas para tratar não de questões de cunho econômico, legal, social ou geopolítico, mas, para trazer à tona, em sessão televisionada, a discussão sobre a possível (ou provável?) existência de vida extraterrestre.1

Ex-oficiais da Marinha e da Força Aérea estadunidense, incluindo um dos líderes da Agência Nacional de Inteligência Geoespacial, reuniram-se com congressistas no Capitólio e prestaram testemunhos, sob compromisso de dizer a verdade, alegando terem presenciado o avistamento e a interação com objetos voadores não identificados.  

Afirmaram tratar-se de tecnologia desconhecida em solo terrestre e, mais do que isso, reiteraram a afirmação de que o Pentágono preserva restos de material “não humano” obtidos dos destroços de um dos objetos voadores recuperados, com a finalidade de proceder pesquisa e engenharia reversa.

Dentre as informações prestadas, um dos testemunhos revelou que o avistamento de óvnis se tornou constante o suficiente para passar a fazer parte dos procedimentos oficiais de voo, a fim de orientar pilotos da Força Aérea a respeito do tema. Finalmente parece que, de fato, os Estados Unidos, depois de mais de cinquenta anos de silêncio, estão abrindo espaço para que todos estes aspectos sejam investigados e esclarecidos à nação.

Estes episódios recentes me fizeram lembrar de certa vez em que um magistrado, incumbido de julgar um processo trabalhista em que se discutia a pretensão ao recebimento de horas extras, intervalos e sobreaviso, sob a corajosa alegação de que o trabalhador permanecia 24 horas à disposição do empregador, trouxe um raciocínio curioso sobre a relação que deve ser estabelecida entre as presunções processuais em confronto com as máximas de experiência.

No caso em questão, a empregadora não havia comparecido em audiência e tampouco apresentado sua defesa, o que atraiu a aplicação dos dispositivos do CPC que tratam sobre a revelia e seu efeito, qual seja, a confissão tácita. Segundo a lei posta, a ausência de contestação faz presumir verdadeiras todas as alegações de fato trazidas ao Judiciário pela parte demandante. Ou seja: não contestou, dançou!

No entanto, a própria lei traz exceções e uma delas diz respeito precisamente às “alegações inverossímeis”. Basicamente, o CPC também assevera que a presunção de veracidade não se aplica automaticamente quando os fatos alegados pelo demandante não guardarem relação de proximidade com a realidade.

E o magistrado, à época do julgamento, ocorrido há quase quinze anos, fez constar de sua sentença que a revelia, por si só, não poderia fazer presumir como verídica uma alegação tão absurda. No raciocínio do julgador, alegar permanecer à disposição do empregador por 24 horas seria o mesmo que o autor afirmar ter visto “uma nave espacial sobrevoando sua casa e extraterrestres pousando em seu quintal”. E assim, por não ser capaz de acolher integralmente a pretensão, rejeitou o pedido, pautando-se apenas em outros indícios existentes nos autos.

Apesar de fundamentar-se nas regras objetivas de atribuição do ônus da prova e mencionar outros indícios existentes nos autos, ficou evidente que o magistrado, no caso em questão, entregou-se àquilo que a doutrina sempre definiu como “máximas de experiência” e que, atualmente, o CPC chama de regras de experiência, ou seja, à “observação do que ordinariamente acontece”. Para o magistrado, estava mais do que claro que aeronaves não voam por aí e nem podem cair ou pousar no quintal de quem quer que seja, assim como pessoas não trabalham 24 horas ininterruptamente.

Duas conclusões inusitadas advêm da relação excêntrica desses dois eventos. A primeira delas é que nenhum fato consegue permanecer oculto pela eternidade. Em algum momento, sob alguma circunstância, temas que pareciam definidos serão retomados à discussão sob a luz denudante da ciência e da história, ambas alimentadas pelo interesse humano.

A segunda é que nenhuma verdade é absoluta. Aquilo que parecia verossímil ontem, pode não o parecer hoje. Os fatos postos em perspectiva revelam novas verdades e as presunções são sempre relativas, jamais absolutas.

E assim, outra relação curiosa aflorou-me à mente: a ideia de universo em constante expansão apregoada pelo filósofo e matemático Charles Sanders Peirce, pai da Semiótica, que postulava a teoria do crescimento contínuo no universo e na mente humana. Segundo nos conta a professora Lúcia Santaella, Peirce defendia que as leis e princípios científicos não eram nunca rigorosos, mas sempre provisórios, por estarem sujeitos a mudanças contínuas, de modo que não há como se conceber princípios absolutos2. O universo vai até onde a mente humana alcança. O universo é inventado pela mente humana.

O pioneiro no estudo sobre as máximas de experiência em âmbito processual foi Friedrich Stein, que, dentre tantas contribuições sobre o tema, afirmou que “o processo não pode em nenhum momento ir além da sabedoria de seu tempo e de seu povo3”. Mas, Stein também alertava que uma pluralidade de casos está longe de ser uma máxima de experiência. Ou seja, há necessidade de uma observação maciça sobre os eventos e fenômenos sociais para que isso possa ser erigido ao status de uma regra de experiência, um uso ou costume.

Entre OVNIs, horas extras, presunções e regras de experiência, seguimos com uma certeza: como é difícil advogar e trabalhar, em cada caso concreto, os vieses da realidade, os interesses conflitantes, as experiências gerais e regionais, as tendências jurisprudenciais e tantas outras variáveis que precisam ser equilibradas. Realmente, é “coisa de outro mundo”!

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1 https://g1.globo.com/mundo/noticia/2023/07/27/material-biologico-nao-humano-encontrado-em-nave-o-que-foi-dito-em-audiencia-sobre-ovnis-nos-eua.ghtml

SANTAELLA, Lúcia. O que é semiótica. São Paulo: Brasiliense, 2012. p. 38-39.

3 FRIEDRICH STEIN, El conocimiento privado del juez, 2ª ed. Tradução de Andrés de la Oliva Santos. Madrid: Centro de Estudios Ramón Areces, 1990. p. 30.

Paulo Peressin
Counsel da prática Trabalhista do Lefosse Advogados.

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