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A citação eletrônica: requisitos e bom senso

A citação eletrônica é forma prioritária de convocar a parte contrária para a relação jurídica processual. Não se ignora o fato de que, atualmente, deve-se privilegiar esse tipo de citação pela celeridade e pelos custos envolvidos.

18/8/2023

A citação eletrônica é forma prioritária de convocar a parte contrária para a relação jurídica processual. Não se ignora o fato de que, atualmente, deve-se privilegiar esse tipo de citação pela celeridade e pelos custos envolvidos. Porém, é preciso ressaltar a importância de garantir que tal ato citatório cumpra a sua inequívoca finalidade que é, antes de tudo, cientificar o réu sobre a existência da demanda. Trata-se de um importante pressuposto processual (de validade para uns e de existência para outros) que não permite, ao nosso ver, se distanciar muito de uma formalidade estrita.

Assim, alguns cuidados devem ser tomados e a lei 14.195/21, que alterou profundamente o art. 246 do CPC (que trata da formalização da citação) não ajudou muito. A atual redação legal trouxe espaço para algumas medidas que fomentam a insegurança jurídica em um momento do procedimento que é simplesmente a base de todo o processo e espelha a consequência para o futuro, mormente considerando a efetividade da tutela, através da execução. Nada mais frustrante do que chegar o momento de exigir a condenação e ver o processo regredir em virtude de vicio de citação. Se discute, por exemplo, se a redação dada ao art. 246 pela lei de 2021 teria modificado (ou até afastado) o sistema de citação eletrônica já vigente e regulamentado pela lei de processo eletrônico (lei 11.419/06).

Pensamos que o sistema já previsto na lei 11.419/06 permanece válido e representa, em verdade, maior segurança na realização do ato do que se tem entendido como “permitido” (e que na verdade não está) na atual redação do art. 246 do CPC. De fato, existe um açodamento ou imprecisão na interpretação prática do dispositivo. A redação do art. 246 do CPC, já alterada pela lei 14.195/21, insere a citação eletrônica como preferencial, porém, também elenca para sua formalização, dois requisitos muito importantes.

O primeiro é que o endereço eletrônico utilizado para citação tem que ser indicado pelo citando. Ou seja, é necessário que, pessoas jurídicas (públicas ou privadas), informem previamente os endereços eletrônicos em que poderão receber citações de processos judiciais, incumbência já prevista no CPC de 2015, mesmo antes da referida lei modificadora, no § 1º do mesmo dispositivo. A redação original excepcionava a exigência para microempresas e empresas de pequeno porte, o que entendemos também ser de bom senso, ainda mais no Brasil em que há uma grande quantidade de prestadores de serviços que possuem microempresa apenas como forma de exercício de uma atividade, mas sem a instrução técnica/tecnológica adequada que acaba sendo presumível para empresas maiores. Ou seja, essa imposição, até para ME/EPP é um açodamento desmedido num pais com uma grande desigualdade também na distribuição de acesso tecnológico. É destoante da realidade brasileira (infelizmente).

O segundo requisito, também extraível da redação do dispositivo legal, é que tais informações (endereços eletrônicos) constem na base de dados do Poder Judiciário. É do Judiciário, portanto, a atribuição de gerenciar e manter essa base de dados com o fim exclusivo de comunicação para processos judiciais.

É de se ver, portanto, que citação será feita, preferencialmente, por meio eletrônico respeitados os requisitos acima, de mínima formalidade, de modo a garantir segurança. Não havendo, para determinado réu, cadastro preexistente no banco de dados mantido e organizado pelo Poder Judiciário, a realização do meio citatório eletrônico – na forma daquilo que dispõe o art. 246 do CPC - não estará permitido e restará viciado.

De imediato, deve-se ter por rechaçada a prática que tem sido observada e que não está autorizada na lei, consistente em fazer-se a citação por endereço eletrônico (e-mail) com dado fornecido pelo próprio autor ou ainda através de utilização de dado constante do registro da pessoa jurídica no CNPJ mantido pela Receita Federal. Nas duas hipóteses, a informação não é coletada de banco de dados mantido, organizado e supervisionado pelo Poder Judiciário conforme determina o art. 246, caput.

Não se pode presumir que as informações que são prestadas à Receita Federal, para fins de cadastro no âmbito fiscal (e muitas das vezes são informações de correio eletrônico de contadores ou escritórios de contabilidade para a entrega de demonstrações e informações financeiras perante o fisco) ou ainda aquelas informações que o autor possui e unilateralmente informa (ressalvados casos em que as partes previamente tenham acordado um endereço para recebimento de comunicações processuais, o que se consubstanciaria, a princípio, em negócio processual atípico e válido), sejam fontes confiáveis para a concretização do ato mais importante do processo, que sabe-se, funciona como verdadeiro pressuposto processual.

Não se pode relativizar o mínimo de formalidade para um ato que ocasiona sérios desdobramentos jurídicos ao réu, sob pretexto de imprimir celeridade sem desconsiderar a consequência. O que se vê, na prática, com a adoção de tais medidas precipitadas (e frisa-se, em total afronta da norma vigente) é o fomento de processos que acabam em revelia, sem a instauração do efetivo contraditório e que estarão fadados à nulidade e a rescindibilidade, gerando, ao revés, uma morosidade maior do que se fossem cumpridos os requisitos para a validade do ato conforme assegurado em lei.

A teoria das nulidades processuais não pode ser enxergada como inimiga da prestação jurisdicional célere e efetiva e vem sendo já bastante atenuada, na exata proporção em que se garanta ao procedimento, o efetivo conhecimento da demanda pelas partes e o cumprimento efetivo do contraditório. Evidentemente que o vício será afastado e o ato será convalidado no caso do réu comparecer espontaneamente nos autos e se atingir a finalidade. Não se pode ultrapassar a barreira do bom senso sob pena de se criar verdadeira inversão do papel jurisdicional. O que se objetiva é julgar com a plena ciência e participação das partes em ambiente dialético.

De outro lado, também é necessário ressaltar que o disposto no atual art. 246 e parágrafos não revoga outra modalidade de citação eletrônica,  que já vem,  há muito, sendo feita, prevista na lei 11.419/09, consistente na inserção da comunicação em sistema gerido pelo judiciário (normalmente portal de serviços disponibilizado por cada tribunal) em que, previamente,  a empresa se cadastra e assume a responsabilidade – com o cadastro feito - de verificação periódica da caixa postal disponibilizada na plataforma, com a possibilidade, inclusive,  de citação tácita pelo transcurso do tempo caso a mensagem não seja aberta pelo usuário.

Tal dinâmica, também não é imune de críticas, pois ao contrário do que seria razoável, não há, na justiça comum, uma uniformização de sistemas (plataformas). Existem Tribunais que simplesmente adotam dois ou três tipos de sistemas diferentes, simultâneos e com utilidades por vezes, nenhum pouco intuitivas, impondo às empresas (que, muitas das vezes, não possuem conhecimento juridico ou prática judicial) um ônus de terem que acessar, por diversos meios, tais sistemas. E mais, fere o bom senso exigir da empresa um cadastro para cada tribunal do país.  Não é uma tarefa fácil e não é uma imposição lógica, necessitando de uma solução urgente e firme CNJ para também unificar (de fato) a utilização de uma só plataforma para todo o Brasil.

 Aliás, neste aspecto de uniformização, interessante a redação dada ao art. 246, pela lei de 2021, que ao final condiciona a prática de citação eletrônica “de acordo regulamento do CNJ”. Esse regulamento também deve instituir uma única plataforma em que o acesso deve ser compartilhado por todo o judiciário. É necessário não apenas um regulamento, mas uma fiscalização de adoção (efetiva) por todos os tribunais de uma mesma e única plataforma. Não temos bons exemplos na utilização de plataformas e na sua dispersão. Mais uma vez, fere o bom senso.

Concluindo, é necessário distinguir as formas previstas em lei (e que devem ser respeitadas). A primeira, prevista na lei 11.419/06, ainda em vigor e em plena consonância com o disposto no caput do art. 246 do CPC, dependente de comunicação via portal de serviços, em que a crítica é a necessidade urgente de unificação de um só sistema e um só cadastro para compartilhamento com todos os tribunais com regras mais claras, públicas e acessíveis para usuários que não possuem conhecimento técnico e juridico. Tal modalidade tem previsão de citação tácita, como visto.

A segunda, é a prevista apenas no CPC, decorrente exclusivamente do art. 246, que não permite a citação eletrônica como válida, utilizando-se de dados que não estejam em poder de banco de dados do próprio judiciário e que não tenham sido informados pelos próprios citandos. Para essa modalidade não há previsão de citação tácita. Neste caso, o § 1º-A do art. 246, impõe que não havendo confirmação de ciência deve a citação ser feita por outro meio (correio, oficial de justiça, etc). Para chegarmos a eficiência que se espera da citação eletrônica, resguardando o pressuposto processual, é necessário, enfim, mais bom senso.

Scilio Faver
Advogado e sócio do escritório Vieira de Castro, Mansur & Faver Advogados. Pós-graduação em Processo Civil pela Universidade Cândido Mendes e em Direito Empresarial pela Fundação Getúlio Vargas.

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