Migalhas de Peso

As dificuldades de inserção do jovem negro no mercado de trabalho como reflexo do racismo estrutural

Não se pode olvidar que a intensidade e a abrangência do racismo variam conforme o nível de comprometimento do Estado para com o seu povo e de cada cidadão para com o outro. Todavia, o que não se pode negar é a universalidade de tal problemática.

15/8/2023

Em primeira seara, imperioso destacar que há diversos aspectos que necessitam da atenção dos Estados em geral e da pactuação social e política a fim de promover o bem-estar da sociedade. Em destaque, tem-se a questão do combate as desigualdades raciais que persistem em assolar a sociedade contemporânea, mais especificamente, as discrepâncias na esfera trabalhista. Nessa perspectiva, com fulcro em uma arcádia jurídica e sociocultural em constante construção, bem como nos ensinamentos adquiridos ao longo do curso EAD Combate ao Racismo proporcionado pelo Ministério Público do Trabalho, o presente artigo apresenta como escopo primordial denunciar as dificuldades que o jovem negro apresenta na tentativa de inserir-se verdadeiramente no mercado de trabalho, sendo tal problemática de natureza universal, dando um maior enfoque ao contexto brasileiro. Tal análise permitirá a propositura de soluções que concretizem uma inserção democrática e representativa do cidadão negro na sociedade à luz do Sistema Interamericano de Direitos Humanos, haja vista que tais desigualdades supramencionadas não podem ser consideradas naturais ou aceitáveis, mas sim um reflexo do racismo estrutural caracterizado pela omissão ou ação intencional do Estado contra indivíduos racialmente identificados, entendendo-se aqui raça como um fenômeno social e político e não biológico.

A vida escolar e os primeiros desafios

Para que possamos efetivar o aprofundamento almejado sobre a temática, manifesta-se imprescindível tratar de uma das raízes das mazelas sociais e econômicas que persistem em assolar de forma mais intensa uma população específica, ou seja, a falta de acesso e o abandono escolar.

Não se pode olvidar que a intensidade e a abrangência do racismo variam conforme o nível de comprometimento do Estado para com o seu povo e de cada cidadão para com o outro. Todavia, o que não se pode negar é a universalidade de tal problemática.

Nesse sentido, temos que a discriminação e o racismo são fenômenos que afetam as crianças de todo o mundo. Fundamentando essa afirmação, o novo relatório da UNICEF datado de 2022, antes do Dia Mundial da Criança, por intermédio da análise de 22 países de baixa e média renda, demonstra que crianças pertencentes a grupos étnicos, lingüísticos e religiosos marginalizados permanecem muito atrás de seus pares em habilidades de leitura. Em outras palavras, em média, os alunos de 7 a 14 anos do grupo mais favorecido apresentam duas vezes mais chances de ter habilidades básicas de leitura do que os do grupo menos favorecido (UNICEF, 2022).

O relatório supramencionado denominado “Direitos negados: O impacto da discriminação nas crianças” vai além ao abarcar todas as esferas da vida que são atingidas pelo racismo e pela discriminação, a exemplo do setor da saúde, da educação, até mesmo na esfera de acesso à justiça gratuita.

Com fulcro no mesmo relatório citado alhures, crianças negras nos Estados Unidos, por exemplo, apresentam quatro vezes mais chances de sofrer suspensão fora das escolas do que crianças brancas, além de duas vezes mais chances de prisões relacionadas às escolas ao tratarmos das políticas disciplinares desse país.

Abordando a problemática no Brasil, alvo primordial do presente estudo, de acordo com dados divulgados pela Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio Contínua (PNAD/19), dos jovens de 14 a 29 anos que abandonam as escolas ainda no ensino básico, 71% são jovens negros. Novamente, tal dado não condiz, não é proporcional com a composição da nossa sociedade hoje, 56% de pretos e pardos, aproximadamente, mas estes são os principais alvos da evasão escolar (JE, 2021).

De acordo esse mesmo estudo do PNAD, as causas de tal taxa de evasão escolar são diversas. Dentre estas, impende salientar a imensa necessidade de contribuir com a renda familiar de casa, sendo muitas vezes a conciliação entre os estudos e a atividade laboral extremamente exaustivo ou até inviável para uma criança ou um jovem.

Nas palavras de Sérgio Roberto Kieling Franco, doutor em Educação pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), “por questões que envolvem o racismo estrutural no país, as famílias negras, em sua maioria, têm poder financeiro menor do que o das famílias brancas. Então, entre o emprego e o estudo, acabam optando pelo trabalho.” Ainda aduz Sérgio, “alguns empregos oferecem uma carga horária que inviabiliza a conciliação de emprego e estudo. Uma das áreas que mais contratam jovens negros e de favela são as linhas de supermercado, mas você vê que o horário não é compatível com a escola. Isso faz os jovens optarem pelo trabalho para ajudar em casa.”

Por essas razões, reitera-se: enquanto o Estado não assegurar por intermédio de políticas públicas condições básicas para que se tenha uma vida minimamente humana para aqueles que se encontram em situação de pobreza, mazela esta que afeta especialmente a população negra, a educação e o auto-aperfeiçoamento social e tecnológico dificilmente manifestar-se-ão prioridades na vida dessas pessoas, haja vista a constante luta para atender as necessidades imediatas.

Para romper com a falsa ideias de que os problemas que cercam os jovens negros brasileiros são apenas de natureza econômica sem correlação com raízes históricas racistas que persistem até os dias de hoje, faz-se indispensável trazer estudos que apontam persistência da desigualdade racial na educação em todas as faixas de renda.

Nesse desiderato, tem-se os dados compilados pela Interdisciplinaridade e Evidências no Debate Educacional (IEDE), a pedido da Fundação Lemann, que indicam que a diferença de desempenho educacional ocorre mesmo quando não há discrepâncias econômicas. Em outras palavras, há a manifestação da diferença de desempenho mesmo quando comparamos apenas alunos brancos e pretos de alto nível socioeconômico (CNN, 2021).

Destrinchando os resultados do estudo, no quinto ano, por exemplo, 74,8% dos alunos brancos de alto nível socioeconômico demonstraram desempenho positivo na Língua Portuguesa, enquanto para os alunos pretos de nível socioeconômico igualmente elevado esse número cai para apenas 48,9%.

Tais dados se manifestam no território brasileiro em sua plenitude, havendo, obviamente, variações nas discrepâncias de região para região.

Dentre outros fatores, tal problemática se manifesta pela falta de representatividade negra nos ambientes de ensino, a exemplo de professores, não se podendo duvidar da falta de reforço que comumente se oferece a alunos e de materiais adequados, o que acaba desestimulando o jovem.

Reputa-se conveniente trazer as palavras do diretor-executivo do Iede, Ernesto Faria, haja vista servir de base para o que foi alegado anteriormente: “Diversas situações da escola, desde materiais didáticos a reforços positivos na escola, podem desestimular ou fazer uma criança preta a acreditar menos em si. Por não haver reforço positivo, referências negras, entre outros aspectos”. Continua ainda o diretor, “professores e gestores escolares que conhecem poucos seus alunos muitas vezes avaliam seus alunos por meio de estereótipos ou até o que chamamos no meio acadêmico de discriminação estatística. Como alunos pretos têm média mais baixa, eles passam a ter uma expectativa mais baixa em relação a um aluno preto”.

Assim, o resultado desses fenômenos raciais e sociais não poderia ser diferente senão o crescimento absurdo e desproporcional de cidadãos negros na informalidade, provocado pela falta de qualificação muitas vezes exigida, mas também pelas práticas discriminatórias nos processos seletivos de emprego, tema este que será abordado oportunamente quando tratarmos especificamente da busca de trabalho.

Tem-se, assim, uma reação em cadeia, a qual é caracterizada pela consolidação da informalidade, pelo aumento exagerado da desigualdade de renda e pela persistência do ciclo de pobreza e miséria assolando de forma mais intensa um grupo específico.

A conjuntura dessas informações conectadas com a história da humanidade no que pertine à desvalorização e ao desprezo ao cidadão negro, seja no contexto da escravatura que persistiu por séculos em diferentes países do mundo, seja na falta de amparo por parte do Poder Público no fenômeno da abolição ou mesmo na institucionalização do racismo por intermédio do sistema apartheid até o racismo estrutural caracterizado pela ação ou omissão do Estado contra grupos racialmente identificados nos dias de hoje, demonstra a urgência de um processo mais intenso de conscientização dos cidadãos acompanhado da atuação de um efetivo poder normativo por parte do Estado. Não é à toa que a função legitimadora do Estado é justamente a promoção da defesa dos direitos humanos e da dignidade humana. 

Um nível superior ainda excludente

A construção do raciocínio lógico fundado em elementos fáticos até o presente momento nos permite concluir quais são as características que marcam essa fase da vida quando trabalhamos com a situação do jovem negro.

Nessa perspectiva, assim como foram relatados os graves aspectos da vida escolar, não se pode deixar de denunciar o atual cenário universitário abrangendo os grupos racialmente identificados supramencionados. Para que não haja dúvidas, reitera-se: raça deve ser aqui compreendida não como um fenômeno biológico, mas sim como um fenômeno social e político. Sabemos que há uma só raça: a raça humana.

Com fulcro em estudos divulgados sobre ação afirmativa e população negra na educação superior pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA), em 2020, aproximadamente 18% dos cidadãos negros de 18 a 24 anos cursam o ensino superior, enquanto para a população branca tal número aumenta para 36% (GIFE, 2022).

Não se pode olvidar do elevado crescimento que ocorreu entre o período de 2010 e 2019 concernente ao número de jovens negros nas universidades, mais especificamente, um aumento de 400%, passando estes a representar uma parcela de 38,15% dos matriculados. Não obstante tal avanço, manifesta-se notória a inadequação entre tais dados com a proporcionalidade que compõe o quadro étnico do Estado, ou seja, cerca de 43,1% de brancos e 55,8% de negros, sendo 9,3% composto por pretos e os pardos representando 46,5%. Pela lógica, se estivéssemos tratando de uma verdadeira igualdade e de uma verdadeira democratização de acesso, o número de matriculados deveria ser dividido de maneira racialmente idêntica ou pelo menos semelhante.

Outrossim, imperioso mencionar que, de acordo com dados levantados pela Liga de Ciência Preta Brasileira, em 2020, dentre os alunos de pós-graduação, 2,7% são pretos, 12,7% são pardos, 2% são amarelos, menos de 0,5% é indígena e 82,7% são brancos. A análise foi efetivada a partir de dados da Plataforma Lattes, serviço do CNPq que agrupa informações curriculares, grupos de pesquisa e instituições das áreas de ciência e tecnologia.

Esse cenário nacional de desigualdade de acesso e de permanência nas instituições de ensino demonstra que apenas a adoção de políticas públicas, a exemplo das cotas, embora possa aduzir extrema importância, manifesta-se insuficiente se não acompanhada por um intenso investimento, entrada de recursos por parte do Poder Público e da iniciativa privada, entendendo esta como sendo a própria atuação da sociedade civil e conscientização desta, de forma a fomentar a pesquisa e fornecer as condições necessárias para a manutenção de jovens brilhantes nas universidades que, em decorrência de sua cor, seja pela discriminação ou pelo racismo indireto cujo reflexo é a omissão do Estado diante de uma situação de miséria cujas raízes históricas se encontram no racismo, acabam apresentando as maiores taxas de evasão. 

Conquistando o mercado: uma dupla barreira

Impende destacar que dessa conjuntura de informações trabalhadas de forma conexa até o presente momento se pode captar o nascimento de duas problemáticas previsíveis e predominantes, sem embargo as exceções felizmente identificáveis na sociedade. A primeira e provavelmente a mais notória é o crescimento absurdo do número de cidadãos negros na informalidade seja pela falta de estímulo nas redes de ensino ou pela falta de oportunidades de estudo, fatores já bem trabalhados com os dados supramencionados. Sobre isso, com fulcro nos dados divulgados pelo IBGE, Pesquisa Nacional Por Amostra de Domicílio Contínua 2018, enquanto 34,6% das pessoas ocupadas de cor ou raça branca estavam em ocupações informais, entre as de cor ou raça negra tal percentual alcançou 47,3%. Ademais, concernente à desocupação, a população branca representa 34,6% na força de trabalho em face de 64,2% da população preta ou parda (MPT-PE, 2022).

Ato contínuo, adentremos agora para a segunda consequência esta que, não obstante manifestação mais sutil, reputa ser a mais repudiável por estar intrinsecamente concatenada ao desprezo, à desvalorização do próximo em decorrência de sua cor, demonstrando que o cerne da questão não é apenas a pobreza ou a desigualdade econômica, mas sim violações à dignidade humana marcadas por raízes históricas racistas que persistem no tempo. Mesmo aqueles sujeitos de alto grau de instrução, com um nível superior concluído com êxito, em virtude de sua cor, seja parda ou preta, acabam apresentando grandes dificuldades em processos seletivos e em entrevistas de emprego.

Nessa perspectiva, como já dito anteriormente, há o que chamamos de racismo estrutural contemporâneo, problemática de natureza universal que perpassa fronteiras e atinge diferentes povos. Assim, com o escopo primordial de investigar se europeus filhos de imigrantes sofriam discriminação de acordo com a cor da pele e/ou aspectos religiosos culturais, foi desenvolvido na Europa um dos maiores estudos do mundo sobre o tema, cuja publicação se deu em 2016 e 2018 na revista acadêmica “Socio-Economic Review”, da Universidade de Oxford (JEM, 2023).

De forma resumida, um grupo de pesquisadores desenvolveu uma série de currículos fictícios fundados na manipulação dos traços físicos e dos nomes de candidatos idênticos para processos seletivos de 12.783 vagas de emprego na Alemanha, na Holanda e na Espanha, envolvendo seis categorias profissionais: jovens para os cargos de cozinheiro, cabeleireiro, vendedor de loja, recepcionista, contador e profissional de TI.

Como conclusão, tem-se que a aparência racial sozinha sem informações de origem, interfere na probabilidade de um candidato receber uma resposta positiva do recrutador nos três países, sendo tal impacto significativamente maior na Alemanha e na Holanda.

Na Alemanha e na Holanda, com fulcro no resultado aduzido, todos os fenótipos “visíveis” são penalizados, especialmente o asiático/indígena e o negro, com probabilidade média de resposta positiva de 44% em comparação aos 55% para candidatos idênticos. Os caucasianos de pele escura registraram 47%.

Por fim, referente à Espanha, a aparência racial tem impacto menor, haja vista os resultados terem demonstrado menor diferença entre a aprovação do candidato branco e o mesmo candidato na condição de negro. Todavia, vale ressaltar que a diferença aumenta a depender do nome associado à foto.

No Brasil, o quadro se agrava ainda mais. No desiderato de demonstrar a força do racismo no ambiente de trabalho contra mulheres pretas e pardas e de quebrar com o mito da democracia racial, elaborou-se uma pesquisa intitulada “Mulheres Negras no Mercado de Trabalho” por intermédio do uso da rede social Linkedin que contou com a participação de 155 mulheres na faixa etária de 19 e 55 anos, sendo a média prevalente entre 30 e 40 anos. Desse aglomerado de participantes, 50,3% possuíam nível superior e pós-graduação ou especialização; 13,5% mestrado e doutorado; e 24,5% ensino superior completo (AGBRA, 2023).

A pesquisa revela que mais de 50% das consultadas aduziram que a cor da pele e o lugar onde moravam foi perguntado durante a entrevista online no recrutamento. Nas palavras da pesquisadora e diretora-presidente da consultoria, Juliana Kaizer, “Elas perceberam que, durante as entrevistas, no processo seletivo, tudo ia muito bem no formato online, com análise do currículo, mas que, no momento da entrevista ao vivo, com a câmara aberta, os recrutadores, em geral mulheres brancas, voltavam atrás.”

Outrossim, imperioso mencionar também outro dado alarmante proferido pela mesma pesquisa concernente à discriminação racial, estando a pessoa já inserida no contexto laboral da empresa. Nesse sentido, cerca de 68% das profissionais relatam ter sido confundidas, em algum momento, com a faxineira ou moça da limpeza da empresa. Para que não haja dúvidas, estamos tratando de mulheres com mestrado e doutorado (AGBRA, 2023). 

O combate à discriminação racial como um dever internacional

O ilustre escritor e professor da universidade de Harvard, Michael J. Sandel, em seu livro intitulado “Justiça: O que é Fazer a Coisa Certa?”, traz um interessante debate sobre três tipos de responsabilidade moral: 1. Deveres naturais: universais; não requerem consentimento; 2. Obrigações voluntárias: particulares; requerem consentimento; 3. Obrigações de solidariedade particulares, não requerem consentimento. Esta é alvo de intensas discussões entre estudiosos e políticos, envolvendo, por exemplo, a própria questão de políticas afirmativas (MICHAEL, 2022).

Nesse contexto, muitos vão questionar se o Estado e a sociedade, formada pelos seus indivíduos, teriam o dever de reparar danos ocasionados à população negra por erros do passado, a exemplo da escravidão. Para responder a essa questão, o presente artigo não pretende impor uma verdade, mas sim trazer os elementos necessários para uma reflexão fundamentada. Assim, a resposta para essa questão depende do tipo de sociedade que queremos construir, ou seja, se queremos construir uma sociedade virtuosa, marcada pela solidariedade e pela preocupação com o bem-estar do próximo, há sim esse dever. Pelo menos, a nossa Carta Magna, fruto da representação da vontade do povo, traz o princípio da solidariedade como um dos preceitos básicos fundamentais, tornando a encargo do Estado e da própria sociedade a promoção do bem-estar geral, à luz da igualdade e da dignidade da pessoa humana, os quais também consagrados.

Não obstante a importância do respeito à autonomia e à soberania das nações, não se pode olvidar que há certos preceitos normativos universais consagrados que transcendem a vontade dos Estados cuja observância é indispensável para a manutenção dos valores da sociedade internacional. Dentre tais normas, temos o conjunto que vai compor o chamado jus cogens (MAZZUOLI, 2022).

O jus cogens representa uma categoria de normas fundamentais de natureza imperativa e que não podem ser derrogadas, seja por tratados, costumes ou mesmo princípios gerais de Direito Internacional, a não ser por outra norma de mesma natureza imperativa. Tais normas abarcam valores como a proibição da agressão, do genocídio e a proteção contra a escravidão e a discriminação racial. Em outras palavras, estamos tratando de um grau hierárquico superior que vincula os Estados em geral.

Sem embargo de o jus cogens já ser razão suficiente para responsabilizar os Estados pelas suas ações e omissões perante um quadro de desigualdade racial fruto de raízes históricas racistas, reputa-se interessante adentrarmos para uma fonte do Direito Internacional Público que traz uma maior segurança jurídica pela manifestação evidente da vontade dos Estados em sua celebração e pela previsão concreta de direitos e deveres: os tratados.

Recentemente, decreto promulgado pelo Poder Executivo ratifica o Brasil como um dos países a adotar a Convenção Interamericana Contra o Racismo, a Discriminação Racial e Formas Correlatas de Intolerância, tendo sido originalmente adotada na Guatemala, no contexto da 43° Sessão Ordinária da Assembléia Geral da Organização dos Estados Americanos, em 5 de junho de 2013 (RADSEN, 2022). O projeto de decreto legislativo que confirmou o texto foi aprovado no Congresso, recebendo status de emenda constitucional, haja vista estarmos tratando de um tratado de proteção de direitos humanos.

Tal tratado aduz extrema importância na medida em que prevê a cooperação entre o público e o privado, a atuação do Poder Público e das instituições da sociedade civil de forma conjunta no combate às desigualdades raciais ainda persistentes, permitindo e conferindo até importância, pois, à adoção de ações afirmativas, ainda que de forma temporária, para tratar os desiguais de forma desigual na medida de suas desigualdades de maneira a alcançar a verdadeira igualdade, com fulcro nos seguintes dispositivos da Convenção (BRASIL, 2022).

Art. 1° Para os efeitos desta Convenção

(...) 2. Discriminação racial indireta é aquela que ocorre, em qualquer esfera da vida pública ou privada, quando um dispositivo, prática ou critério aparentemente neutro tem a capacidade de acarretar uma desvantagem particular para pessoas pertencentes a um grupo específico, com base nas razões estabelecidas no Artigo 1.1, ou as coloca em desvantagem, a menos que esse dispositivo, prática ou critério tenha um objetivo ou justificativa razoável e legítima à luz do Direito Internacional dos Direitos Humanos. (...) ”

“Artigo 5 Os Estados Partes comprometem-se a adotar as políticas especiais e ações afirmativas necessárias para assegurar o gozo ou exercício dos direitos e liberdades fundamentais das pessoas ou grupos sujeitos ao racismo, à discriminação racial e formas correlatas de intolerância, com o propósito de promover condições equitativas para a igualdade de oportunidades, inclusão e progresso para essas pessoas ou grupos. Tais medidas ou políticas não serão consideradas discriminatórias ou incompatíveis com o propósito ou objeto desta Convenção, não resultarão na manutenção de direitos separados para grupos distintos e não se estenderão além de um período razoável ou após terem alcançado seu objetivo”

“Artigo 7 Os Estados Partes comprometem-se a adotar legislação que defina e proíba expressamente o racismo, a discriminação racial e formas correlatas de intolerância, aplicável a todas as autoridades públicas, e a todos os indivíduos ou pessoas físicas e jurídicas, tanto no setor público como no privado, especialmente nas áreas de emprego, participação em organizações profissionais, educação, capacitação, moradia, saúde, proteção social, exercício de atividade econômica e acesso a serviços públicos, entre outras, bem como revogar ou reformar toda legislação que constitua ou produza racismo, discriminação racial e formas correlatas de intolerância.”

Destarte, não há como negar a legitimidade e a importância da adoção de políticas sociais, a exemplo das cotas, quando tratamos do ingresso de jovens negros nas universidades, bem como da luta pela promoção de uma igualdade racial nas empresas ao modificarmos um quadro incoerente de menos de 30% dos cargos gerenciais serem compostos por negros em face de mais da metade negra representando a população.

Infelizmente, pouquíssimos países da Organização dos Estados Americanos adotaram tal Convenção. Nesse sentido, temos Antígua e Barbuda, Costa Rica, Equador, México, Uruguai e Brasil. Espera-se que outros países que também apresentam graves problemas raciais, a exemplo dos Estados Unidos, possam aderir a essa forma sistemática de combate ao racismo (OEA, 2021).

_______________

AGBRA. Agência Brasil. Pesquisa: 86% de trabalhadoras negras relatam casos de racismo. 2023. Disponível em: https://agenciabrasil.ebc.com.br/direitos-humanos/noticia/2023-03/pesquisa-86-de-trabalhadoras-negras-relatam-casos-de-racismo Acessado em 01/08/2023.

BRASIL. Presidência da República. DECRETO Nº 10.932, DE 10 DE JANEIRO DE 2022. Promulga a Convenção Interamericana contra o Racismo, a Discriminação Racial e Formas Correlatas de Intolerância, firmado pela República Federativa do Brasil, na Guatemala, em 5 de junho de 2013. DOU de 11.1.2022.

CNN. Cable News Network. Estudo aponta desigualdade racial na educação em todas as faixas de renda. 2021. Disponível em: https://www.cnnbrasil.com.br/nacional/estudo-aponta-desigualdade-racial-na-educacao-em-todas-as-faixas-de-renda/ Acessado em 29/07/2023.

GIFE. Grupo de Institutos, Fundações e Empresas. Apesar do aumento de pessoas negras nas universidades, cenário ainda é de iniquidade. 2022. Disponível em: https://gife.org.br/apesar-do-aumento-de-pessoas-negras-nas-universidades-cenario-ainda-e-de-desigualdade/#:~:text=No%20entanto%2C%20o%20Fies%20terminou,38%2C15%25%20dos%20matriculados. Acessado em 31/07/2023.

JE. Jornal Estadão. Jovens negros lideram evasão escolar. 2021. Disponível em: https://mobilidade.estadao.com.br/patrocinados/jovens-negros-lideram-evasao-escolar/ Acessado em 05/08/2023.

JEM. Jornal Estado de Minas. Estudo europeu indica racismo em seleção para emprego. 2023. Disponível em: https://www.em.com.br/app/noticia/diversidade/2023/05/02/noticia-diversidade,1488486/estudo-europeu-indica-racismo-em-selecao-para-emprego.shtml Acessado em 31/07/2023.

MAZZUOLI, V. O. Curso de Direito Internacional Público. 15° edição Editora Forense, pág 109-116. 2022.

Michael J. S. Justiça: O que é fazer a coisa certa? editora Civilização Brasileira – 37° edição, p.277, Rio de Janeiro 2022.

MPT-PE. Ministério Público do Trabalho – PE. Curso EAD MPT- PE. Combate ao Racismo no Ambiente de Trabalho, Módulo 02. 2022. Disponível em: https://ead.mpt.mp.br/ Acessado em 31/07/2023.

OEA. Organização dos Estados Americanos. O Brasil ratificou a Convenção Interamericana contra o Racismo, Discriminação Racial e Formas Conexas de Intolerância na OEA. 2021. Disponível em: https://www.oas.org/pt/centro_midia/fotonoticia.asp?sCodigo=FNP-100850 Acessado em 05/08/2023.

RADSEN. Rádio Senado. Convenção Interamericana contra o Racismo passa a ser adotada no Brasil. 2022. Disponível em: https://www12.senado.leg.br/radio/1/noticia/2022/01/11/convencao-interamericana-contra-o-racismo-passa-a-ser-adotada-no-brasil Acessado em 03/08/2023.

UNICEF. Fundo das Nações Unidas para a Infância Racism and discrimination against children rife in countries worldwide. 2022. Disponível em: https://www.unicef.org/press-releases/racism-and-discrimination-against-children-rife-countries-worldwide Acessado em 01/08/2023. 

Caio Gonçalves
Graduando em Direito pela Universidade Federal de Pernambuco, 8° período (UFPE). Pesquisador, estagiário do Ministério Público do Trabalho (MPT-PE) e membro da Comissão da Promoção da Igualdade Racial OAB-CE.

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