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Lei 14.620/23 corrige uma das maiores distorções da jurisprudência no lançamento do IPTU sobre lotes constantes de loteamentos em execução

Apesar da lapidar clareza da nova disposição legal não será surpresa se os juízes continuarem validando os lançamentos de IPTU sobre lotes virtuais à luz da Súmula 626 do STJ que vem sendo aplicada equivocadamente ao longo do tempo.

15/8/2023

Um dos maiores absurdos jurídicos diz respeito ao lançamento individualizado sobre lotes previstos no projeto de loteamento em execução. Às vezes esses lançamentos alcançam os lotes virtuais de loteamento, parcial ou totalmente abandonado.

Tivemos casos de lançamentos feitos em nome do compromissário comprador de lotes que adquiriu na planta do loteamento que não foi executado.

Depois de inteiramente quitado o preço convencionado o loteador desistiu de executar as obras em sua totalidade.

Apenas parte do loteamento foi executado e as obras de infraestrutura entregues à municipalidade.

Na parte onde se situam os lotes adquiridos pelo cliente não foi executado o loteamento. O abandono dessa parte por anos seguidos ensejou a formação de uma floresta vegetal que segundo a legislação ambiental não mais pode ser devastada e, por conseguinte, não mais pode proceder à edificação, mesmo porque não há via de acesso para o local.

Impugnações judiciais restaram negativas porque o juiz aplicou a jurisprudência que se formou à sombra da Súmula 626 do STJ in verbis: 

“A incidência do IPTU sobre imóvel situado em área considerada pela lei local como urbanizável ou de expansão urbana não está condicionada à existência dos melhoramentos elencados no art. 32, § 1º, do CTN.”       

As áreas urbanizáveis, ou de expansão urbana a que se refere essa Súmula são apenas e tão somente aquelas áreas constantes de loteamentos aprovados por órgãos competentes (órgãos municipais, estaduais e federais).

De fato prescreve o § 2º, do art. 32 do CTN: 

“§ 2º - A lei municipal pode considerar urbanas as áreas urbanizáveis, ou de expansão urbana, constantes de loteamentos aprovados pelos órgãos competentes, destinados à habitação, à indústria ou ao comércio, mesmo que localizados fora das zonas definidas nos termos do parágrafo anterior.”           

Não é, portanto, qualquer área que o Município pode declarar como área urbana.

Por outro lado, a lei que declarar como sendo urbana deverá descrever o respectivo perímetro para afastar o conflito de competência com a União, titular da cobrança do Imposto Territorial Rural sobre áreas rurais, cujo conceito se extrai por exclusão: imóvel não contido no perímetro urbano.

A origem da Súmula 626 do STJ está ligada à tributação das chamadas “chácaras de recreio” constantes dos loteamentos fechados executados nas periferias das cidades.

Pouco tem a ver com loteamentos executados nas zonas centrais da cidade servidos de toda as infraestrutura urbana como iluminação pública, rede de água e esgotos, calçamentos, comunicação etc.

Diferentemente dos entendimentos manifestados pelos juízes e tribunais locais a Súmula 626 não diz respeito ao lançamento individualizado dos lotes sob execução. Diz respeito ao lançamento do IPTU sobre imóveis localizados em área urbanizável, ou de expansão urbana, (área bruta) independentemente da presença de dois dos melhoramentos públicos referidos no § 1º, do art. 32 do CTN (meio-fio ou calçamento; abastecimento de água, sistema de esgotos sanitário, rede de iluminação pública, escola primária ou posto de saúde a uma distância máxima de três kilômetros do imóvel considerado).

O valor venal do m2 da área bruta do loteamento é infinitamente menor do que o do lote inserido na infraestrutura da cidade, cujo valor venal é apurado com base na PGV.

Entretanto, juízes e tribunais locais vêm validando o lançamento do IPTU sobre lotes virtuais. Pergunta-se: como ficam esses lançamentos na hipótese de cancelamento do registro do loteamento mencionado no art. 23 da Lei nº 6.766/79?

É até intuitivo saber que o lote projetado só pode suportar o lançamento do IPTU depois de executado o loteamento e após o poder público local receber real e formalmente as obras de infraestrutura do loteamento. Até lá os lotes estão desprovidos de disponibilidade econômica, fato gerador do IPTU. Sem a faculdade de usar e gozar a propriedade estará desfalcada de um de seus elementos essenciais previstos no art. 1.228 do CC.

Da mesma forma uma unidade autônoma adquirida na planta de um edifício em construção só comportará lançamento individualizado quando for expedido o habite-se que permite ao proprietário fazer o uso da unidade adquirida. Com o lote virtual deveria acontecer o mesmo. Como utilizar um lote que existe apenas na planta e no memorial descrito no projeto de loteamento registrado no Registro de Imóveis competente?

Porém, o único Tribunal neste imenso País que exige a formalidade da entrega dos equipamentos urbanos à Prefeitura local após a conclusão do loteamento é o Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, conforme ementas abaixo:

 “Ementa: EMBARGOS INFRINGENTES. TRIBUTÁRIO. IPTU E TCL. EMBARGOS À EXECUÇÃO. LANÇAMENTO SOBRE UNIDADES NÃO INDIVIDUALIZADAS FORMALMENTE. INVIABILIDADE DO PARCELAMENTO VIRTUAL. Somente após o registro imobiliário do projeto de individualização do imóvel aprovado pelo município é que o IPTU e o TCL poderão incidir sobre cada área individualizada. EMBARGOS ACOLHIDOS. POR MAIORIA. (Embargos Infringentes Nº 70064011992, Primeiro Grupo de Câmaras Cíveis, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Lúcia de Fátima Cerveira, Julgado em 07/08/2015) 

“APELAÇÃO CÍVEL. DIREITO TRIBUTÁRIO. AÇÃO DECLARATÓRIA C/C REPETIÇÃO DE INDÉBITO. IPTU E TCL. LANÇAMENTO SOBRE UNIDADES NÃO INDIVIDUALIZADOS FORMALMENTE. IMPOSSIBILIDADE. AUSÊNCIA DE AVERBAÇÃO DA INDIVIDUALIZAÇÃO NA MATRÍCULA DO IMÓVEL. Indevido o lançamento do IPTU e TCL sobre unidades autônomas enquanto não houver o registro dos imóveis individualizados na matrícula imobiliária. Precedentes do TJRS. REPETIÇÃO DE INDÉBITO. CORREÇÃO MONETÁRIA. LEI 11.960/09. INAPLICABILIDADE. Inaplicáveis as alterações da Lei nº 11.960/09, que deu nova redação ao art. 1º -F da Lei nº 9.494/97 para a correção monetária na repetição de indébito tributário, uma vez que incide, no caso, regramento próprio, devendo ser observado o princípio da especialidade. Precedentes do TJRS e STJ. Manutenção, na hipótese, da aplicação do IGP-M, conforme a sentença. Apelação a que se nega seguimento.” (Apelação Cível Nº 70044834331, Vigésima Segunda Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Carlos Eduardo Zietlow Duro, Julgado em 09/09/2011). 

“APELAÇÃO CÍVEL. DIREITO TRIBUTÁRIO. IPTU. MUNICÍPIO DE PORTO ALEGRE. RELANÇAMENTO TRIBUTÁRIO SOBRE IMÓVEIS NÃO INDIVIDUALIZADOS FORMALMENTE. AUSÊNCIA DE AVERBAÇÃO DA INDIVIDUALIZAÇÃO NA MATRÍCULA DO IMÓVEL (TERRENO) INDIVISO. FALTA DO REGISTRO DOS IMÓVEIS NO REGISTRO IMOBILIÁRIO. A incidência do IPTU sobre unidades autônomas somente se mostra possível após o registro aprovado na matrícula imobiliária do imóvel indiviso. Jurisprudência desta Corte. APELAÇÃO DESPROVIDA.” (Apelação Cível Nº 70034078048, Segunda Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Arno Werlang, Julgado em 28/04/2010) 

“APELAÇÃO CÍVEL. TRIBUTÁRIO. AÇÃO ANULATÓRIA. IPTU. RELANÇAMENTO. TERRENO NÃO INDIVIDUALIZADO FORMALMENTE. Somente se mostra possível a incidência do IPTU sobre unidades autônomas após o registro imobiliário do projeto de loteamento ou de desmembramento aprovado pelo Município. Inteligência do artigo 18 da Lei n° 6.766/79. Jurisprudência desta Corte. APELAÇÃO DESPROVIDA.” (Apelação Cível Nº 70034529792, Vigésima Primeira Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Francisco José Moesch, Julgado em 04/08/2010) 

“DIREITO TRIBUTÁRIO. IPTU. MUNICÍPIO DE PORTO ALEGRE. RELANÇAMENTO TRIBUTÁRIO SOBRE IMÓVEL PERTENCENTE AO TODO MAIOR INDIVISO. LOTEAMENTO NÃO REGISTRADO NA MATRÍCULA IMOBILIÁRIA. AGRAVO EM JULGAMENTO MONOCRÁTICO DE APELAÇÃO CÍVEL. A incidência do IPTU sobre unidades autônomas somente se mostra possível após o registro do loteamento ou desmembramento aprovado na matrícula imobiliária do imóvel indiviso. Inteligência do art. 18 da Lei nº 6.766/79. Jurisprudência desta Corte. AGRAVO DESPROVIDO.” (Agravo Nº 70030963359, Vigésima Segunda Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Rejane Maria Dias de Castro Bins, Julgado em 30/07/2009) 

“TRIBUTÁRIO. IPTU. LOTEAMENTO. APROVAÇÃO. REGISTRO. EFEITOS. REVISÃO DE LANÇAMENTO. 1. A subdivisão de área em lotes está subordinada à prévia aprovação do projeto pelo Município, que deverá ser registrado no Ofício Imobiliário. 2. Somente a partir do registro, no Ofício Imobiliário, do projeto de loteamento aprovado pelo Município, que deve ser comunicado à Prefeitura, é que o IPTU deixará de incidir sobre toda a área, incidindo sobre cada um dos lotes. Recurso provido. (Apelação Cível Nº 70016428401, Vigésima Segunda Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Maria Isabel de Azevedo Souza, Julgado em 30/11/2006).

Nesse cenário, em que a parte embargante é, formalmente, titular de fração única, não há o que se exigir IPTU e TCL sobre unidades autônomas virtualmente consideradas.

Pelo exposto, acolho os embargos infringentes, nos termos da sentença e do voto minoritário proferido pelo E. Desembargador Sérgio Luiz Grassi Beck no âmbito da C. 1ª Câmara Cível deste Tribunal.

É o voto.” 

Em boa hora a lei 14.620/23 veio exigir a formalidade da conclusão do loteamento e emissão de documento pelo poder público local.

De fato, foi acrescido o § 3º ao art. 22 da lei 6.766/79 com a seguinte redação. 

“§ 3º Somente a partir da emissão do Termo de Verificação e Execução de Obras (TVEO), o Município promoverá a individualização dos lotes no cadastro imobiliário municipal em nome do adquirente ou compromissário comprador no caso dos lotes comercializados e, em nome do proprietário da gleba, no caso dos lotes não comercializados.”           

Apesar da lapidar clareza da nova disposição legal não será surpresa se os juízes continuarem validando os lançamentos de IPTU sobre lotes virtuais à luz da Súmula 626 do STJ que vem sendo aplicada equivocadamente ao longo do tempo.  

Kiyoshi Harada
Sócio do escritório Harada Advogados Associados. Especialista em Direito Tributário pela USP. Presidente do Instituto Brasileiro de Estudos de Direito Administrativo, Financeiro e Tributário - IBEDAFT.

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