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Processo legislativo e reforma tributária

A reforma tributária, caso aprovada, terá também o efeito de alterar a dinâmica do processo legislativo tributário Federal, fortemente centrado na avaliação e deliberação de normas veiculadoras de benefícios tributários.

15/8/2023

A aprovação da PEC 45/19 pela Câmara dos Deputados foi um grande passo para a tão necessária e demandada reforma do sistema tributário brasileiro. É um consenso a necessidade de alteração de um sistema que, após a promulgação da CF/88, tornou-se regressivo, excessivamente complexo e litigioso, com grave déficit de racionalidade legislativa e dissociado do projeto constitucional. Mas o dissenso sobre qual o modelo de reforma, devido à dificuldade de se atender aos diversos interesses envolvidos, inviabilizou os projetos e tentativas anteriores no Congresso Nacional.

O contexto político atual, em que pela primeira vez se viabilizou um consenso entre os Estados da alteração da tributação do consumo para o destino, e o amadurecimento na sociedade e nos meios empresariais da visão de que o contexto tributário se tornou insustentável, vem viabilizando o andamento da proposta no legislativo Federal.

Como se trata de uma alteração que tem efeito disruptivo do status quo (estado atual), qualificada por sua multidimensionalidade, por afetar de forma diversa entes federativos, classes sociais, setores econômicos, categorias profissionais e demais grupos de interesse, sempre foi extremamente difícil a construção de uma proposta que obtivesse um ponto de consenso. Isso por não ser possível a identificação e a certificação, em tese e no ponto zero (início de aplicação das alterações), dos efeitos avaliados como favoráveis pelos mais diversos grupos de interessados. Até porque, os efeitos de uma reforma tributária profunda serão ditados pela economia, que irá os absorver e repercutir em cadeia.

O projeto da PEC 45/19 ou seu desdobramento na PEC 110/19, que acabou sendo o que prevaleceu na Câmara dos Deputados (IVA dual), tinha como base pressupostos técnicos trazidos da análise dos IVAs mais modernos em vigência em outros países e a necessidade de se coibir as principais mazelas que caracterizam o nosso sistema atual, tais como o excesso de benefícios fiscais e a existência de sistemas tributários diferenciados, com a prodigalidade de reduções de base cálculo, créditos presumidos, regimes especiais, conflitos de competência e uma série de outras especificidades presentes nas legislações dos entes federados.

Contudo, na reta final do processo legislativo na Câmara do Deputados, acabou se repetindo a dinâmica que caracteriza o processo legislativo tributário em matéria tributária, com a intensa movimentação dos entes federativos e de grupos de interesse, cada qual visando alterar o texto normativo segundo os seus próprios objetivos. Esse movimento em si não é contrário ao jogo democrático, mas tende a deturpar a racionalidade do processo legislativo ao expor que a norma tributária incorra em graves vícios de racionalidade sistêmica, teleológica e mesmo ética, com interesses específicos prevalecendo em face da coerência estrutural do sistema tributário.

O texto com a proposta original havia sido objeto de intenso debate no grupo de trabalho da reforma tributária, com inúmeras audiências públicas, em que participaram especialistas de diversas áreas (economistas, tributaristas, representantes dos fiscos), o que culminou com a apresentação do relatório final em 06/06/23 e no texto do substitutivo do relator, deputado Agnaldo Ribeiro, já incorporando alterações.

Na reta final, às vésperas da votação no plenário da Câmara, novas modificações de última hora foram inseridas no texto da PEC, para viabilizar o acordo político de sua aprovação, sem preocupação com a sua pertinência com a lógica e base técnica que informa a reforma tributária, com a redução da alíquota dos setores favorecidos para 40% (previsão anterior de 50%) e, principalmente no que se refere à forma de deliberação do Conselho Federativo e da previsão da competência dos estados para criação de contribuição sobre produtos primários e semielaborados.

As modificações de última hora, efetuadas no contexto de acordo político, acabam por excluir ou colocar em segundo plano a necessária avaliação ex ante da proposição, considerada a busca e a identificação dos efeitos potenciais futuros, como baliza para a estruturação da norma e a tomada da decisão legislativa. No caso da reforma tributária, a busca de exponenciação de exceções tem como efeito previsível o aumento do percentual da alíquota básica, como tem alertado o secretário extraordinário da reforma tributária, Bernard Appy.  

Com o envio do texto para o Senado Federal, já se notícia na imprensa a vontade de Senadores de alterarem de forma mais profunda o texto, incorporando pleitos de entes federativos e setores econômicos e categorias profissionais por novas exceções. Outra característica do nosso processo legislativo é a avaliação parlamentar baseada na denominada “escolha racional”, pela qual a decisão é baseada em uma análise de ganhos e perdas políticos e nos objetivos da coalização governamental, e não em face do objetivo de racionalizar o sistema e de adequá-lo ao projeto constitucional vinculado à capacidade contributiva e à tributação não regressiva.

Espera-se que no caso da reforma tributária não prepondere esse raciocínio instrumental, não havendo a desfiguração do texto base da PEC 45/19, além do que já houve de modificações na Câmara dos Deputados. É importante que o Senado avalie o texto, considerando a coerência do projeto, que não é aderente a (ou muitos) regimes diferenciados e, também, efetue a retirada de alterações injustificáveis efetuadas pelos Deputados, como é o caso da competência para a instituição da contribuição estadual sobre semielaborados.

A reforma tributária, caso aprovada, terá também o efeito de alterar a dinâmica do processo legislativo tributário Federal, fortemente centrado na avaliação e deliberação de normas veiculadoras de benefícios tributários, conforme demonstra a pesquisa de Lazzari, Arretche e Mahlmeister, “O que o Congresso brasileiro prefere em matéria tributária. Políticas públicas, Cidades e Desigualdades.” (2022). O que, espera-se, estará vinculado a um cenário de uma tributação mais estável, equilibrada e previsível. 

Alessandro Mendes Cardoso
Sócio do Rolim Goulart Cardoso Advogados. Doutor em Direito Público (PUC/MG) e Mestre em Direito Tributário (UFMG).

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