Migalhas de Peso

O caso Alexandre de Moraes em Roma

Ilações acerca da extraterritorialidade penal e a personificação do Estado.

13/8/2023

Em meados do mês de julho, 14, o mundo assistiu atônito a mais um grave episódio de agressão a membros do Poder Judiciário do Brasil. Enquanto embarcava para uma palestra na Universidade de Siena, o ministro do STF, Alexandre de Moraes, foi hostilizado por um grupo de brasileiros no Aeroporto Internacional de Roma, na Itália, ocasião que seu filho também foi agredido.

Conforme relatado pela mídia1, a ação começou quando um dos envolvidos chamou o magistrado de “bandido, comunista e comprado”. Ato seguinte, outro agente do grupo gritou e agrediu fisicamente o filho do ministro com um empurrão e um tapa em seus óculos. Logo após o ocorrido, mais precisamente no momento do desembarque, o grupo foi abordado pela Polícia Federal (PF), pois haviam sido identificados pelo serviço de reconhecimento fácil.

A Polícia Federal instaurou inquérito policial para apurar acusações de agressão, ameaça, injúria e difamação (crimes previstos nos artigos 129, 147, 140 e 139, ambos do Código Penal, respectivamente) contra o ministro e seu primogênito.

Ainda que o fato seja extremamente lamentável, a questão a ser analisada nesta ocasião é: Qual a competência para processar e julgar o ocorrido narrado? E, neste sentido, por qual motivo o STF entendeu ter competência para tal?

Tendo em vista o local de ocorrência dos fatos, julgamos importante começar esta análise mencionando as hipóteses excepcionais que a legislação penal brasileira pode ser aplicada para fatos ocorridos além dos limites do território nacional, a chamada extraterritorialidade penal. Neste instituto, o princípio da territorialidade cede espaço a outros princípios, como os da proteção, da nacionalidade, da justiça universal e da representação.

As hipóteses de aplicação extraterritorial da lei penal brasileira estão previstas no artigo 7º e constituem exceções ao princípio geral do artigo 5º (princípio da territorialidade), ambos do Código Penal. Dentro do instituto mencionado, firmam-se duas hipóteses de aplicação, quais sejam:

(a) incondicionada (art. 7º, I, CP): hipótese que a lei brasileira é aplicada sem nenhuma condicionante, ainda que o agente tenha sido julgado no estrangeiro, com fundamento no princípio da defesa (art. 7º, I, a, b e c, CP) e da universalidade (art. 7º, I, d, CP); e

(b) condicionada (art. 7º, II, CP): hipótese que a lei brasileira é aplicada quando satisfeitos os requisitos que se seguem: (i) entrar o agente no território nacional; (ii) ser o fato punível também no país em que foi praticado; (iii) estar o crime incluído entre aqueles pelos quais a lei brasileira autoriza a extradição; (iv) não ter sido o agente perdoado no estrangeiro ou não ter aí cumprido a pena; e (v) não ter sido o agente perdoado no estrangeiro ou, por outro motivo, não estar extinta a punibilidade, segundo a lei mais favorável.

Conforme ensina a doutrina2, a diferença das duas hipóteses apresentadas reside na natureza do objeto jurídico atingido. Na extraterritorialidade incondicionada parece haver uma presunção de interesse do Estado em julgar tais delitos – por se tratar de crimes contra à segurança nacional, aos interesses da Administração Pública e aos crimes contra a humanidade, mais especificamente genocídio -. Desta maneira, presume-se que o fato tem muita relevância ao país, não obstante praticado fora de seu território. A extraterritorialidade condicionada, por sua vez, parece ser a mais adequada no sistema penal, uma vez que sua excepcionalidade exige o preenchimento de condições que restrinjam ao máximo seu alcance.

Ao analisar o caso narrado, entendemos se tratar da hipótese de extraterritorialidade penal condicionada, pois (i) os requisitos estabelecidos pelo artigo 7º, II, CP estão devidamente preenchidos e (ii) o bem jurídico atingido parece ser de caráter individual (crimes contra a honra e contra a liberdade pessoal), não sendo o caso de crime contra à segurança nacional, interesses da Administração Pública ou contra a humanidade.

Feito a explanação sobre o instituto da extraterritorialidade, voltemos às perguntas iniciais: Com base no caso narrado, qual a competência para processar e julgar o ocorrido narrado? E, neste sentido, por qual motivo o STF entendeu ter competência para tal?

Conforme o artigo 88 do Código de Processo Penal (CPP) a competência para processar e julgar crimes cometidos por brasileiro no exterior é da Justiça Federal da comarca onde reside o autor.

Apesar de entendermos que o juízo competente é o da Justiça Federal do Estado de São Paulo (JF-SP), pois o grupo suspeito é residente em Santa Bárbara d’Oeste, município do Estado de São Paulo, a interpretação acolhida no auto de investigação diverge da determinação do artigo supracitado.

Em representação3 encaminhada ao STF no dia 16 de julho, o delegado da Polícia Federal responsável pelo caso, Hiroshi de Araújo Sakaki, disse que, “embora os crimes” relacionados às agressões sejam “em tese crimes contra a honra e contra a liberdade pessoal” de magistrado do STF, “há elementos indicando uma possível relação com os fatos apurados no Inquérito 4879, o qual tramita nesta colenda corte, razão pela qual o feito é remetido ao Supremo Tribunal Federal”4.

Neste sentido também foi o entendimento da vice-procuradora-geral da República, Lindôra Maria Araújo, ao dizer que “além da presença de indícios que atingem a esfera individual” de Moraes e seus familiares, “as condutas em apuração podem configurar graves ameaças ao livre exercício das funções constitucionais” dos integrantes do STF.

“O contexto fático apresentado é grave e, em princípio, podem se amoldar aos tipos penais que descrevem crimes de abolição violenta do Estado Democrático de Direito, injúria e lesão corporal”.

Em sentido diametralmente oposto, acreditamos que os crimes cometidos contra o ministro e sua família não guardam qualquer relação com o atentado do dia 08 de janeiro. Em verdade, coadunar com o entendimento de que crimes contra a honra e contra a liberdade pessoal de magistrados do STF podem ser vistos como crime de abolição violenta do Estado Democrático de Direito ou algo parecido é acreditar que os ministros são personificações do Estado – o que não são. A ideia de conceber os ministros como personificações do Estado é problemática e controversa no contexto do sistema judicial.

Essa visão pode dar margem a interpretações autoritárias ou a uma excessiva concentração de poder nas mãos dos magistrados, afastando os princípios constitucionais do Estado Democrático de Direito. Por fim, acreditamos que tal entendimento é arriscado, pois gera um precedente extremamente equivocado sobre a figura de funcionários públicos – em especial a cargos de maior relevância. Corremos o risco de ressuscitar a “jurisdição universal”, utilizada na “Operação Lavajato”, e derrubada pelo próprio Supremo Tribunal Federal.

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1 “Ministro do Supremo Alexandre de Moraes é hostilizado e tem o filho agredido, no aeroporto de Roma”. Disponível em: https://g1.globo.com/jornal-nacional/noticia/2023/07/15/ministro-do-supremo-alexandre-de-moraes-e-hostilizado-e-tem-o-filho-agredido-no-aeroporto-de-roma.ghtml. Acesso em 18/07/2023.

2 Martinelli, João Paulo; De Bem, Leonardo Schmitt. Direito penal parte geral: lições fundamentais, 8. ed. Belo Horizonte, São Paulo: D’Plácido, 2023, p. 438.

3 Referida representação refere-se ao pedido da Polícia Federal para fazer uma operação de busca e apreensão contra o grupo suspeito de cometer os crimes contra o ministro Alexandre de Moares

“PF vê “possível relação” em agressão a Moraes com inquérito no STF ao pedir buscas contra suspeitos”. Disponível em: https://www.cnnbrasil.com.br/politica/pf-associa-agressao-a-moraes-com-inquerito-no-stf-ao-pedir-buscas-contra-suspeitos/. Acesso em 23/07/2023.

João Paulo Martinelli
Advogado Criminalista, Consultor Jurídico e Parecerista; Mestre e Doutor em Direito Penal pela USP, com pós-doutoramento pela Universidade de Coimbra; Autor de livros e artigos jurídicos; Professor.

Gustavo Bezerra de Oliveira
Advogado, Bacharel em Direito pela FAAP, Membro do GEA IBCCRIM e Fundador e Coordenador do Grupo de Estudos em Processo Penal da FAAP.

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