Migalhas de Peso

Lei 14.620/23 e o novo direito real decorrente da imissão na posse – O remendo do soneto que jamais existiu

É fundamental que a doutrina reconheça que dentre os apontados direitos oriundos da imissão na posse que passam à categoria de direitos reais não se fez incluir a posse, por seus especiais atributos, evitando-se, por completo, qualquer contaminação dos espaços petitório e possessório.

10/8/2023

É fato que o Direito privado vive um momento turbulento, com diversas modificações, desde a teoria das incapacidades, estrutura das relações obrigacionais e, principalmente, em tema de Direito das Coisas. As mudanças, por regra, são bem-vindas. Possibilitam reflexão e o repensar de assuntos que, secularmente, seguiram uma jornada retilínea, estando hoje aparentemente estabilizados. Diz-se que tal debate é importante, e vale recordar, pois o Direito Civil é milenar, tendo conceitos e instituições que atravessaram séculos e séculos. A propriedade e a posse se alinham dentre tais categorias. Desta forma, quando se repensa a propriedade em dimensões outras que apena a bivalente delimitada por vértices X e Y; quando se discute o tempo como passível de apropriação condominial; enfim, quando são revisitados temas perenes com vistas a atualizar os seus conteúdos, tal se dá em favor de toda a comunidade, não apenas aos estudiosos ou aplicadores do Direito.

Por outro lado, quando se tem uma estrutura de tamanha estabilidade e promovem-se câmbios sem maiores reflexões, sem um arcabouço de necessidade, ou sem uma aplicabilidade prática, a razão de existir da questão, por não se apresentar, esvaziará a utilidade do próprio conceito, legando ao esquecimento algo que já nasceu alheio a um sentido de necessidade, teórico ou prático. Como exemplo, podemos apontar o art. 1.228, §4º do Código Civil que, ao tentar inovar medida especial de política fundiária, criou modelo jurídico controverso (usucapião oneroso ou desapropriação privada) de pouca ou nenhuma utilidade prática, desafiando a diretriz da operabilidade, tão cara a Miguel Reale e a o nosso Código Civil.

Situações como a apontada, contudo, ao menos levantam debates acalorados, gerando ganho acadêmico, possibilitando que, no futuro, avanços outros surjam.

Há, ainda, uma segunda situação – ainda mais imprudente - em que o Legislador, com intenções que se desconhece, cria, modifica ou inova situação/relação jurídica, fazendo isso com total atecnia. Aqui os exemplos são muitos, não apenas na seara do direito privado, mas em todos os demais ramos jurídicos, sendo necessário à doutrina e jurisprudência árduo trabalho para explicar o que se tem como direito posto e operacionalizar efetivação e aplicabilidade para o que se concebeu. Todavia, no mais das vezes, estes casos são inofensivos, sendo corrigidos com advertências como “o Legislador confundiu categorias”, “apesar da previsão como X, é Y” etc. São equívocos tão grotescos que tornam mais simples a sua retificação.

Por fim, sobeja o pior cenário. A circunstância em que o Legislador, pretendendo solucionar um problema que, no mais das vezes, teria solução simples e direta, inova a ordem jurídica com elementos que, se aplicados em sua essência técnica, criarão resultados graves. Em casos tais, o tempo promoverá o decote através da atuação da jurisprudência com o direcionamento da doutrina, mas, até lá, nefastos efeitos poderão ter ocorrido. E, infelizmente, o que nos traz a estes escritos é justamente este cenário, valendo-nos destas linhas para que se apresse o decote do que jamais deveria ter visto à luz do dia.

Carlos Eduardo Elias de Oliveira trouxe, em texto, diversas implicações registrais decorrentes da inovação legal (https://www.migalhas.com.br/coluna/migalhas-notariais-e-registrais/390037/novo-direito-real-com-a-lei-14-620-23). Assim, dada a qualidade do que lá se escreveu no aspecto registral, diferentemente, tomaremos aqui o caminho do direito civil puro, ou de uma teoria pura do direito civil - pura não no recorte que deu Kelsen aos seus escritos - mas sim, evitando-se enviesar o que, macetado pelo tempo, foi devidamente alisado.

Antes, porém, de avançarmos, é necessária uma pequena digressão. O Direito das Coisas, ontologicamente, é composto pelos Direitos Reais, pelos Direitos de Vizinhança e pela Posse. Esta última, tem a conhecida natureza de fato e direito, sem que se alinhe como direito real (não apenas por jamais ter figurado na enumeração legal, como, e mais importante, sua essência a afasta de tais direitos, tendo especiais efeitos que não se confundem com aquele, ao mesmo tempo em que se projeta daquele, enquanto ius possidendi). Daí dizer-se que os direitos reais trazem consigo o direito de obter posse, como o usufruto, a servidão etc.

De outro tanto, a summa divisio entre a posse e propriedade recomenda dar àquela natureza própria, evitando-se qualquer contaminação entre o aspecto petitório e o aspecto possessório do ter. É espaço delicado, em que indevidas intromissões podem esfacelar um sistema, até então, harmonioso. Há o espaço e a razão de ser do petitório; há o mesmo para o possessório. Um áspero, mas forte. Outro fluído, mas eficaz. Cada um cobrindo limites específicos e importantes. Não por menos, é conhecida a regra de que se faz impossível discutir propriedade em tutelas de natureza possessória, à exceção da alegação de usucapião.

Dito isso, a posse, de um lado, e os direitos reais, do outro, sempre conviveram de forma pacífica, com sólida jurisprudência e grande proveito para todos. Entretanto, a recente lei 14.620/23, em seu artigo 30, estabeleceu alteração no art. 1.225 do Código Civil, com o seguinte teor:

(...)

XIV - os direitos oriundos da imissão provisória na posse, quando concedida à União, aos Estados, ao Distrito Federal, aos Municípios ou às suas entidades delegadas e a respectiva cessão e promessa de cessão.

(...)

Em um primeiro momento, aparenta o artigo simples déficit técnico, sem maiores embaraços, considerando o que já havia intentado o Legislador em 2015, com a (caduca) MP 700, que trouxe o conceito de direitos decorrentes da imissão provisória na posse, com a inserção do tema no art. 5º, §4º.

Fato é que o Relatório de análise da apontada MP já antecipava quais seriam os direitos decorrentes da imissão na posse, afirmando que “os bens desapropriados por utilidade pública e os direitos decorrentes da respectiva imissão na posse poderão ser alienados a terceiros, locados, cedidos, arrendados, outorgados em regimes de concessão de direito real de uso, de concessão comum ou de parceria público-privada e ainda transferidos como integralização de fundos de investimento ou sociedades de propósito específico” (Relatório da Comissão Mista de análise da MP 700/15, disponível em https://legis.senado.leg.br/sdleg-getter/documento?dm=4586810&disposition=inline)

Nota-se que a imissão na posse, como já consolidado no veio Administrativo, é verdadeira atribuição originária de propriedade, vez que o processo correrá para discutir, por regra, o valor da expropriação.

Assim, como alerta Maria Sylvia Zanella Di Pietro1 e Carlos Eduardo Elias de Oliveira2, trata-se de direito definitivo, com natureza de propriedade. Portanto, a imissão na posse gera direito originário em favor da Administração Pública, podendo esta ceder, transferir, alugar, dar em garantia, enfim, valer-se dos mais diversos mecanismos para satisfação do interesse público.

Atendendo a interesses outros, provavelmente relacionados ao registro, o Legislador, acreditando ser dotado de plena ciência, fez valer sua força e realizou a referida alteração legislativa. Contudo, surge uma dúvida, mote deste escrito. Em que pese atribua propriedade, a imissão na posse tem, por essência, deferir posse ao Expropriante, fazendo acompanhar tal posse a propriedade, dada a lógica do procedimento expropriatório. Como lembra Diógenes Gasparini, “a imissão provisória de posse é a transferência, no início da lide, da posse do bem expropriado para o promotor da desapropriação. É obrigatoriamente concedida pelo juiz se alegada, pelo expropriante ou pelo promotor da desapropriação, a urgência e se depositado no Juízo da Desapropriação, em favor do expropriado, certo valor calculado, conforme o caso, segundo o que estabelece a Lei Geral das Desapropriações ou o decreto-lei 1.075/70” (Direito Administrativo, São Paulo: Saraiva, 17.ed, 2011. Capítulo X item 1.) (grifamos)

Como principal efeito da imissão, assim, está a posse. Objeto principal. Quer quem se imitir deseja, antes de mais nada, posse. Tanto no espectro privado, quanto no público. A qualidade especial de atribuição originária de propriedade, por sua vez, é um efeito específico da imissão decorrente de desapropriação.

Tendo isso em vista, retomamos nossa análise do novel texto de lei. Afirma agora o art. 1.225. XIV, do Código Civil que, são direitos reais “os direitos oriundos da imissão provisória na posse, quando concedida à União, aos Estados, ao Distrito Federal, aos Municípios ou às suas entidades delegadas e a respectiva cessão e promessa de cessão”. A posse, sendo direito como é, é, também, um direito oriundo da imissão provisória, e, desta forma, converter-se-ia em direito real.

A nosso viso, não é possível referendar tal conclusão. Tanto no Código Beviláqua (art. 674) quanto no decorrente do Projeto Reale (art. 1.225) a posse sempre foi tratada de forma especial (que lhe é devida), não por simples capricho, mas pela necessidade técnica e prática que existe em fazer valer a diferenciação. Não se olvide que diversos efeitos dos direitos reais estão presentes na posse, mas isso não faz dela um deles, não apenas por não fazer parte da enumeração legal, porém, e principalmente, pelas razões já apresentadas.

A posse pode ser oriunda de um direito real, mas, para além de ser dele independente (pois tem outras origens), produz efeitos tão especiais (como os interditos) que são inimagináveis para o universo dos direitos reais. Ou seja, em que pese a posse confira efeitos similares aos dos direitos reais, ela os transcende.

Entretanto, tal compreensão não geraria um risco de tornar letra morta o novel inciso XIV do art. 1.225 do Código Civil? Na realidade, tal classificação é absolutamente desnecessária, isso porque “os direitos oriundos da imissão provisória na posse, em benefício do poder público, equiparam-se a direitos próprios de quem é titular do domínio (mesmo antes de pagar a prévia e justa indenização e antes de se efetivar a transferência do bem expropriado para o seu patrimônio): ele já pode fazer a cessão a terceiros, pode oferecer o bem como garantia em contratos de alienação fiduciária; pode oferecer em hipoteca o bem de que não é ainda proprietário (derrogando implicitamente a norma do artigo 1420 do Código Civil, pela qual “só aquele que pode alienar poderá empenhar, hipotecar ou dar em anticrese; só os bens que se podem alienar poderão ser dados em penhor, anticrese ou hipoteca”).3

Daí se tratar de remendo a um soneto que jamais existiu. Se a imissão provisória na posse, em processo de desapropriação, gera direito originário de propriedade e deste defluem os efeitos próprios desejados por quem de direito, a simplificação da possibilidade de registro da imissão não pode acarretar tamanho cisma no sistema Civil, atingindo ponto nevrálgico de toda a estrutura do Direito das Coisas.

Outrossim, observe-se que o pretendido efeito prático (possibilidade de alienação, garantia etc.) já se encontra estampado no decreto Lei 3365/41, a saber:

Art. 5º (...)

§ 4º Os bens desapropriados para fins de utilidade pública e os direitos decorrentes da respectiva imissão na posse poderão ser alienados a terceiros, locados, cedidos, arrendados, outorgados em regimes de concessão de direito real de uso, de concessão comum ou de parceria público-privada e ainda transferidos como integralização de fundos de investimento ou sociedades de propósito específico.

Ao mesmo tempo em que a questão registral já encontra remansosa prescrição legal, considerando-se que “a Lei nº 11.977, de 7-7-09, que instituiu o Programa Minha Casa Minha Vida, inseriu um § 4º no artigo 15 do Decreto-lei nº 3.365/41, para exigir que a imissão provisória na posse seja registrada no registro de imóveis competente”. (PIETRO, Maria Sylvia Zanella D. Direito Administrativo. Rio de Janeiro: Forense, 2023. Item 6.10.10)

Desta forma, é fundamental que a doutrina reconheça que dentre os apontados direitos oriundos da imissão na posse que passam à categoria de direitos reais não se fez incluir a posse, por seus especiais atributos, evitando-se, por completo, qualquer contaminação dos espaços petitório e possessório.

______________

https://www.conjur.com.br/2016-fev-11/interesse-publico-carater-definitivo-imissao-provisoria-posse#:~:text=Os%20direitos%20oriundos%20da%20imiss%C3%A3o,fazer%20a%20cess%C3%A3o%20a%20terceiros%2C

https://www.migalhas.com.br/coluna/migalhas-notariais-e-registrais/390037/novo-direito-real-com-a-lei-14-620-23

(Maria Sylvia Zanella Di Pietro, O caráter definitivo da imissão provisória na posse. Conjur. 11.02.2016, disponível em https://www.conjur.com.br/2016-fev-11/interesse-publico-carater-definitivo-imissao-provisoria-posse#:~:text=Os%20direitos%20oriundos%20da%20imiss%C3%A3o,fazer%20a%20cess%C3%A3o%20a%20terceiros%2C acesso em 03 de agosto de 2023.)”.

Nelson Rosenvald
Professor do corpo permanente do doutorado e mestrado do IDP/DF. Procurador de Justiça do Ministério Público de Minas Gerais. Pós-doutor em Direito Civil na Università Roma Tre (IT-2011). Pós-doutor em Direito Societário na Universidade de Coimbra (PO-2017). Visiting Academic Oxford University (UK-2016/17). Professor Visitante na Universidade Carlos III (ES-2018). Doutor e mestre em Direito Civil pela PUC/SP. Presidente do Instituto Brasileiro de Estudos de Responsabilidade Civil (IBERC) e Associado Fundador do Instituto Avançado de Proteção de Dados (IAPD).

Wagner Inácio Freitas Dias
Mestre em Direito, diretor da Faculdade Presidente Antônio Carlos de Ubá, professor de Direito Civil, advogado.

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