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Ozonioterapia, oportunismo midiático e fake news

No caso da lei da ozonioterapia, há relevantes dados suprimidos pelos colunistas e jornalistas quanto a gênese, a cronologia, a discussão e a tramitação da lei, assim como dos personagens principais à sua formulação

10/8/2023

Transformado em lei o projeto legislativo que autoriza a ozonioterapia como “procedimento de caráter complementar” (Lei 14.648/23), constato - com o tédio de quem segue assistindo a infindáveis reprises de filmes ruins - parte da imprensa nacional desinformando acerca do processo legislativo, de modo a colocar a “aprovação” do procedimento como sendo fruto um capricho pessoal, de índole negacionista, do Presidente da República.

Sem entrar no mérito da eficácia ou não do tal “procedimento” ou da qualidade técnica da norma legal, parece até que essa discussão sobre a ozonioterapia é um assunto novo, que se iniciou neste ano (noticias sobre o procedimento, charlatanismo ou não, remontam ao século 19) .

Como ilustração, a destacada colunista Vera Magalhães (que admirava um ex-juiz farda-negra por combater réus como se fossem seus “oponentes”), em sua coluna em O Globo de 9/8/23, veio de esgrimir a manchete: “É um despropósito o negacionismo de Lula sobre a ozonioterapia”. E sinaliza, em subtítulo, que a autorização dada por Lula “não é amparada por explicação técnica ou política e serve apenas para atiçar opositores”.

Esse tipo de abordagem, da maneira que vem sendo feita, revela-se caso clássico de “conteúdo manipulado”, um dos sete tipos de fake news (segundo a classificação da jornalista britânica Claire Wardle). A manipulação opera a partir da distorção e da descontextualização de um fato real, não raramente sugerindo hipertrofia de responsabilidade de alguns personagens que se visa atingir em proporção inversa à minimização protetiva da responsabilidade de outros. O objetivo evidente é o da desinformação da “opinião pública”, cujos reais propósitos subjacentes remanescem inconfessos, já que de índole não jornalística. Trata-se de puro ativismo político, travestido de jornalismo, cuja apito canino editorial direciona a pauta ao desgaste de seu “oponente” da ocasião.

Quando se discute PL das fakes news, não se pode ter em mente apenas aquela produção oriunda de algum “gabinete do ódio”, em que sob a inspiração de Joseph Goebbels, ressuscitado com a ajuda do DNA de Pink e Cérebro, pululam nos esgotos das redes sociais.  Há que se ter em vista, também, a responsabilização dos manipuladores sutis, profissionais, que seguem sem qualquer responsabilização por seus atos de desinformação e de degeneração da informação e cultura da população.

No caso da lei da ozonioterapia, há relevantes dados suprimidos pelos colunistas e jornalistas quanto a gênese, a cronologia, a discussão e a tramitação da lei, assim como dos personagens principais à sua formulação.  

O projeto da ozonioterapia foi de iniciativa inteiramente parlamentar, o que é típico da função legislativa própria às democracias modernas.  Foi apresentado no Senado em 2017 (PLS 227, de autoria do ex-senador Valdir Raupp).  Tramitou por 5 anos, sendo discutido, modificado e aprovado nas duas casas legislativas de forma maciça, em bloco, numa construção política que, tal como edificada, termina por estreitar sobremodo a margem de interferência do órgão executivo sancionador. E disso bem sabem os colunistas e jornalistas especializados e setoristas.

O conteúdo material da lei gerada – seja ele bom ou ruim – se resume a um só artigo: “Fica autorizada a realização da ozonioterapia como procedimento de caráter complementar, observadas as seguintes condições: I - a ozonioterapia somente poderá ser realizada por profissional de saúde de nível superior inscrito em seu conselho de fiscalização profissional; II – (..) somente poderá ser aplicada por meio de equipamento de produção de ozônio medicinal devidamente regularizado pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa); III - o profissional responsável pela aplicação da ozonioterapia deverá informar ao paciente que o procedimento possui caráter complementar”.  A boa imprensa deveria ter se ocupado de acompanhar o tramitar dessa lei. A imprensa responsável deveria se ocupar de buscar especialistas sobre o assunto e informar a população destinatária das leis os eventuais riscos que o que ela prevê pode produzir. Mas uma mídia desqualificada, contente, contenta-se em descobrir uma “pauta de desgaste”.

Enfim, parte da grande imprensa nacional, ao que parece, em verdade, não “descobriu” somente agora a existência de projeto quinquenário sobre ozonioterapia. O que ela esconde, do ponto de vista político, é simplesmente o principal: a autorização da ozonioterapia como abordagem complementar advém da vontade do Poder Legislativo nacional, sendo aprovada - com amplo espaço para debate público, mas sem despertar até então o interesse midiático - maciçamente por seus integrantes. Dentre os quais, até um certo ex-juiz...

Paulo Calmon Nogueira da Gama
Mestre em Teoria do Estado e Direito Constitucional pela PUC-Rio

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